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A Criança Surda e o Desenvolvimento da Literacia
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Publicado em 2007
Universidade de Aveiro, Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa
Maria José Duarte Freire
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

O presente trabalho propõe-se estudar o contexto de crescimento de um grupo de jovens surdos, de modo a conhecer e compreender os factores que contribuíram, ou não, para o desenvolvimento da sua literacia. A base teórica deste estudo é constituída pela filosofia da educação bilingue e bicultural das crianças e jovens surdos e parte de dois pressupostos fundamentais: a primeira língua da criança surda é a língua gestual do seu país, essencial para o seu desenvolvimento emocional, linguístico e cognitivo, e a segunda língua é a língua falada no seu país, ensinada à criança como língua não materna, privilegiando as vertentes da leitura e da escrita, fundamentais para a sua inserção na sociedade e para o seu progresso académico e profissional. Para a realização do presente estudo, foi adoptada uma metodologia qualitativa e descritiva, tendo a recolha de dados sido realizada por intermédio de um inquérito por questionário. Os dados foram recolhidos junto de um grupo de jovens surdos do concelho de Lisboa, entre os 15 e os 30 anos. Da análise dos resultados foram retiradas algumas conclusões que confirmaram as premissas defendidas no enquadramento teórico deste trabalho: a importância de uma educação bilingue e bicultural e o envolvimento da família no desenvolvimento da literacia das crianças e jovens surdos.

Introdução

«Como é que te chamas? Eu chamo-me Emmanuelle e falo a língua gestual. Entendes?»
Não obtenho resposta. Com os olhos esbugalhados, o outro fita as minhas mãos como se eu estivesse a falar chinês. Nenhum deles aprendeu a gramática, as inversões, as devoluções, toda a estrutura do meu idioma, como a configuração do gesto, a orientação, a colocação, o movimento da mão, a expressão do rosto. A partir desta estrutura, desta gramática, posso exprimir milhares de gestos, do mais simples ao mais complicado. Basta por vezes modificar ligeiramente um dos parâmetros, a orientação ou a colocação, ou ambos, etc. É infinito. (Laborit, 2000: 85)

1. A educação bilingue e bicultural e o desenvolvimento da literacia na criança surda

O desenvolvimento da literacia na criança surda foi escolhido como tema central da nossa investigação, por se tratar de um assunto de extrema importância para a comunidade surda, da qual a investigadora faz parte integrante desde que nasceu. Sendo filha de pais surdos e ouvinte bilingue, fluente em língua gestual portuguesa (LGP), acompanhou, ao longo dos anos, a evolução da comunidade surda portuguesa, tendo participado, mais recentemente, em todo o processo de luta desta comunidade que culminou no reconhecimento oficial da língua gestual portuguesa pela Assembleia da República, aquando da 4ª revisão constitucional, aprovada em 20 de Setembro de 1997.

Este reconhecimento oficial da LGP foi um primeiro passo, muito importante, no reconhecimento do direito das pessoas surdas à sua língua, a língua gestual, e de a verem ser incluída no processo educativo das crianças e jovens surdos. A educação bilingue e bicultural de surdos é reconhecida como sendo a melhor forma de terminar com as dificuldades que os surdos têm enfrentado, ao longo dos anos, no seu percurso educativo e que têm resultado em níveis de literacia muito baixos, insucesso escolar e fracos níveis de escolaridade média.

A língua gestual portuguesa e a cultura da comunidade surda constituem um património valioso dos surdos portugueses. O reconhecimento das entidades oficiais apenas veio reforçar o valor que a língua e a cultura dos surdos já representava para os membros da comunidade surda portuguesa. Diz-se, entre os surdos, que a sua língua surgiu a partir do momento em que os dois primeiros surdos se encontraram. Indetectável no tempo e na história, este encontro é, no entanto, citado com muito orgulho, como reforço do valor atribuído à língua gestual, um dos elos mais fortes da “identidade surda”. Os registos mais antigos que encontrámos sobre a língua gestual portuguesa datam do final do século XV. Outros mais antigos existirão, certamente.

A educação bilingue e bicultural das crianças e jovens surdos pressupõe que a língua gestual portuguesa seja adquirida naturalmente pela criança surda, como primeira língua, por contacto diário e permanente com falantes de LGP, assumindo uma função linguística e cognitivamente estruturante. A língua portuguesa (LP) será a sua segunda língua e deve ser aprendida com o apoio da LGP, privilegiando-se a leitura e a escrita. A LP assumirá uma função de inserção na sociedade ouvinte e servirá como instrumento de acesso à formação académica e profissional.

Diversos investigadores nacionais e internacionais defendem a educação bilingue e bicultural das crianças surdas. Na fundamentação teórica deste trabalho teremos oportunidade de citar e analisar alguns dos seus trabalhos. Não podemos, sobretudo, esquecer a voz da comunidade surda, aqui representada nas palavras de Markku Jokinen, actual presidente da Federação Mundial de surdos.

Uma ideia, filosofia básica da abordagem bilingue, é que se deveria deixar as crianças surdas serem crianças. Não há necessidade de mudá-las, pois não são anormais. A ênfase não deveria ser sobre a própria criança. Ao contrário, deveria ser sobre o ambiente onde a criança pode usar a língua de forma livre e espontânea sem atrasos ou obstáculos desde o nascimento. E onde ela seja tratada como uma pessoa de valor e aceite como tal. (Jokinen, 1999: 126)

Diversos documentos de organizações internacionais referem igualmente a importância de respeitar os direitos à igualdade de oportunidades das pessoas surdas, especificando as linhas gerais do que deve ser um modelo educativo adequado para as crianças e jovens surdos. Documentos como a Resolução A/RES/48/96 de 4 de Março de 1994 da ONU, a Declaração de Salamanca, editada pela UNESCO, em Junho de 1994 e o documento “Education Rights for Deaf Children” da Federação Mundial de Surdos defendem a língua gestual como primeira língua dos surdos e a sua inclusão no sistema educativo. Reproduzimos um excerto de um destes documentos.

As políticas educativas devem ter em conta as diferenças individuais e as situações distintas. A importância da língua gestual como o meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deverá ser reconhecida, e garantir-se-á que os surdos tenham acesso à educação na língua gestual do seu país. (Declaração de Salamanca – Política e Organização, ponto 21)

No nosso país, existe alguma legislação que prevê a educação bilingue e a língua gestual portuguesa mas a sua implementação tem apresentado algumas dificuldades. Este tema será aprofundado no ponto 3 do capítulo 2 da nossa fundamentação teórica, onde faremos uma análise da legislação existente, da qual destacamos o despacho 7520/98 de 6 de Maio que versa sobre o funcionamento das Unidades de Apoio a Alunos Surdos.

A nossa investigação irá debruçar-se sobre os contextos familiar, escolar, e de crescimento de um grupo de jovens surdos que, com o seu testemunho, nos darão a oportunidade de constatar se a sua experiência se aproximou ou se afastou das condições de educação e acesso à literacia que defendemos na parte que dedicaremos à fundamentação teórica deste trabalho.

2. Enquadramento na Didáctica de Línguas – especialidade de Português Língua Não Materna

O nosso estudo insere-se na Didáctica de Línguas, numa abordagem da língua portuguesa como língua não materna, ou língua segunda, como defendemos que deve surgir na educação bilingue e bicultural de surdos. Pensamos que se trata de uma vertente inovadora no panorama dos estudos sobre português língua segunda, pois, habitualmente, estes estudos têm como grupo alvo os filhos de imigrantes que trouxeram para as escolas portuguesas uma grande diversidade linguística e cultural ou, ainda, situações de aprendizagem do português em contextos de forte diglossia, como em África ou em Timor.

Não é, no entanto, sobre estas populações que este estudo se debruça, mas sim sobre aquelas crianças e jovens que, não tendo acesso natural à língua portuguesa, falada no seu país, poderão beneficiar largamente de uma abordagem ao português como língua não materna: as crianças e jovens surdos, cuja língua natural é a língua gestual portuguesa.

Na educação de surdos, a língua portuguesa como língua segunda, implica alguns pressupostos que envolvem não apenas o contexto educativo mas também, de forma muito relevante, nos primeiros anos de vida, o contexto familiar. Para que resulte com sucesso, a educação bilingue e bicultural de surdos tem a língua gestual portuguesa como primeira língua das crianças surdas e a língua portuguesa como segunda língua, sobretudo na vertente de leitura e escrita.

3. Objectivos do estudo e questões investigativas

Partindo dos pressupostos teóricos que apresentaremos na Parte I do nosso trabalho, iremos desenvolver uma investigação que procura, através do testemunho de um grupo de jovens surdos, entre os 15 e os 30 anos, recolher dados que nos permitam analisar o seu percurso familiar e educativo e identificar a presença ou ausência de elementos propiciadores do desenvolvimento da sua literacia.

Os dados recolhidos serão analisados segundo a filosofia de educação bilingue e bicultural de surdos, adoptada há muitos anos em diversos países do Norte da Europa, nos E.U.A. e, pontualmente, em outros países, entre eles Portugal.

Dos resultados desta análise, serão retiradas algumas conclusões e apontadas algumas recomendações que esperamos possam contribuir para a melhoria dos níveis de literacia e escolaridade das crianças e jovens surdos portugueses.

As questões investigativas procurarão abarcar diversas situações no âmbito familiar e escolar que podem contribuir para o desenvolvimento da literacia. O instrumento de recolha de dados que escolhemos foi o do inquérito por questionário e deverá reflectir as seguintes questões:

  • Como se desenvolveu a aquisição da primeira língua dos inquiridos na sua família, constituída por ouvintes ou por surdos?
  • Qual o papel da língua gestual portuguesa no desenvolvimento linguístico dos inquiridos?
  • Como se desenrolou e desenrola a comunicação com os pais ouvintes e com os irmãos, surdos ou ouvintes? E com pais surdos?
  • Quais as atitudes dos pais dos inquiridos perante o uso da língua gestual?
  • Os pais tiraram partido do uso da língua gestual para enriquecer os conhecimentos dos seus filhos surdos?
  • Os pais usaram estratégias para desenvolver a literacia dos seus filhos surdos? Quais?
  • Quais as expectativas dos pais em relação ao futuro dos filhos surdos?
  • Até que ponto, o modo de regulação dos comportamentos no contexto familiar influenciou o percurso académico e o domínio da língua portuguesa pelos inquiridos?
  • Quais os métodos de comunicação usados nas escolas frequentadas pelos inquiridos?
  • Na opinião dos inquiridos, de que modo os métodos de ensino limitam ou favorecem o prosseguimento de estudos das pessoas surdas?

4. Organização do estudo

O nosso trabalho encontra-se dividido em três partes, precedidas de uma introdução. São elas: Fundamentação Teórica, Metodologia da Investigação e Conclusão.

A primeira parte é constituída por três capítulos que contêm os aspectos que considerámos relevantes para a fundamentação teórica deste trabalho. O capítulo 1 apresenta os pressupostos teóricos que rodeiam uma abordagem bilingue e bicultural da educação de surdos, dos quais destacamos o acesso e o desenvolvimento da literacia pelas crianças e jovens surdos, o reconhecimento e valorização das línguas gestuais,
perspectivas sobre o desenvolvimento linguístico e cognitivo da criança surda e a relevância do contexto familiar. O capítulo 2 debruça-se sobre o tema do português como segunda língua e o seu enquadramento na Didáctica de Línguas. São ainda abordados temas como a diversidade linguística e cultural, estudos sobre didáctica do português como segunda língua e é feita uma revisão da legislação pertinente ao nosso estudo. O capítulo 3 versa sobre a educação bilingue e bicultural, qual a posição das comunidades surdas nacional e internacional sobre esta questão e como se implementa a sua aplicação noutros países. São ainda apresentados diversos modelos de educação bilingue e de como se adaptam ou não à educação de surdos e seus modos de aplicação prática. Neste capítulo, dedicamos ainda um ponto à revisão de alguma literatura, nacional e internacional, no âmbito do nosso estudo, apresentando alguns casos reveladores de boas práticas na educação bilingue e bicultural de surdos.

A segunda parte do nosso trabalho trata dos aspectos metodológicos. É composto por dois capítulos. O primeiro aborda os princípios metodológicos que regeram a nossa investigação e as etapas seguidas na preparação da mesma e na elaboração do instrumento de recolha de dados que utilizámos: o inquérito por questionário. O capítulo 2 da metodologia ocupa-se da descrição e análise dos dados recolhidos durante o estudo. São ainda feitos alguns comentários ao trabalho realizado nesta etapa da investigação.

A terceira e última parte do trabalho é constituída pela conclusão da nossa investigação, onde são apresentados os resultados e conclusões das várias partes em que se dividia o nosso questionário. Num segundo ponto, são retiradas conclusões gerais e feitas algumas recomendações. Num último ponto são apresentadas algumas sugestões para estudos futuros que, na nossa opinião, são necessários e darão continuidade à nossa investigação.

 

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