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Pela estimulação precoce em Libras para crianças surdas: Testemunho de um pesquisador
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Publicado em 2009
II Congress Baiano de Educação Inclusiva / III Fórum Internacional para pessoas com surdocegueira e deficiência múltipla sensorial, UFBA
Omar Barbosa Azevedo
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Resumo

No presente artigo, argumento a favor da preservação das instituições públicas especializadas no atendimento de crianças surdas da cidade de Salvador. A argumentação desta defesa, parte da minha própria vivência como pesquisador da comunicação em sala de aula com estas crianças. Durante a coleta de dados em vídeo, que fundamenta minha pesquisa sobre os estilos comunicativos de professoras ouvintes e surdas, testemunhei fatos nestas instituições que quero compartilhar com as comunidades acadêmica e educacional, para mostrar que a estimulação precoce em LIBRAS é um atendimento lingüisticamente desejável para crianças surdas de 4 a 7 anos. São instituições que merecem ser conservadas, bem como, merecem atenção da universidade pública, seja através da pesquisa comprometida com a melhoria da qualidade, seja através de atividades curriculares em campo que envolvam os atores sociais implicados, ou através do ensino para a qualificação de seus professores. Procuro fazer uma descrição densa da cultura escolar destas instituições e interpretá-las como produtora de um bem comum de valor inestimável para a Educação de Surdos: a possibilidade a comunicação entre as famílias ouvintes e seus filhos. O uso habitual da LIBRAS para o acolhimento humano e lingüístico das crianças surdas e de suas famílias, é o alicerce desta cultura escolar. O interesse pela aprendizagem e pela difusão da língua de sinais, entre professores, funcionários e familiares, proporciona um ambiente sociolingüístico favorável ao desenvolvimento da linguagem das crianças surdas nestas instituições.

Vivências de pesquisa como fundamentos do testemunho

Quero testemunhar a favor da estimulação precoce em LIBRAS para crianças surdas de 4 a 7 anos de idade, a partir da minha vivência cotidiana como pesquisador ouvinte. Desejo que este exercício de descrição densa (Geertz, 1989) do contexto de pesquisa, possa propositadamente mostrar aspectos da realidade lingüística que são pouco conhecidos para pessoas que não convivem de perto com a comunidade surda. Entendo que não há qualquer inconveniente em identificar esta instituição pública, pois se trata da única especializada em estimulação precoce para crianças surdas na cidade. Estou defendendo a preservação desta instituição, justamente pelo valor social e lingüístico que testemunhei, por parte de seus professores e de seu pessoal administrativo. Se eu omitisse o nome ou atribuísse um nome fictício a esta instituição, qualquer leitor vinculado ao nosso universo local, saberia de qual instituição eu estaria falando. Estou me referindo a uma comunidade educativa marcada pelo esforço pessoal e diário de todos os implicados com a sua existência e funcionamento: familiares dos alunos, professores, diretores, coordenadores, merendeiras, pessoal da limpeza, seguranças e funcionários administrativos. Trata-se do Centro de Educação Especial da Bahia (CEEBA), localizado no bairro de Ondina, em Salvador, Bahia.

Em sua maioria, as mães e os pais das crianças surdas que freqüentam o CEEBA moram nos bairros periféricos da cidade e chegam ao CEEBA em transporte público. O ponto de ônibus ao lado de um conjunto residencial militar e um outro situado do outro lado da rua, em frente à portaria da própria Universidade Federal da Bahia, ambos na avenida Ademar de Barros, constituem uma referência lingüística pouco conhecida dos moradores desta cidade, incluindo as pessoas que freqüentam os meios acadêmicos. Na chegada ou na saída da escola, mães ouvintes e filhos surdos se encontram nestes pontos de ônibus e ali conversam em LIBRAS, aprendem sinais novos com seus próprios filhos, que interagem entre si em língua de sinais. Uma festa para os olhos de quem reconhece a beleza da expressão lingüística do corpo humano, apesar da perplexidade que muitos sentem, inclusive eu, diante deste mundo de comunicação rápida e muitas vezes, incompreensível na primeira aproximação...

Durante todo o ano letivo de 2003, convivi nesta comunidade para filmar a comunicação em sala de aula com os alunos surdos de três diferentes turmas, regidas por três professoras ouvintes, auxiliadas por duas pessoas surdas adultas exercendo o papel de professoras de LIBRAS. De junho de 2007 a setembro de 2008, voltei a conviver semanalmente com a comunidade do CEEBA, com o objetivo de tomar autorizações para o uso científico das imagens filmadas em 2003 e gravar DVDs de recordação devidamente entregues às professoras e aos responsáveis pela instituição. Os pedidos de autorização implicaram na identificação dos endereços atuais dos quarenta alunos que aparecem nas filmagens. Contactei todos os responsáveis pelos alunos para solicitar as referidas autorizações, tendo encontrado a metade deles numa reunião que marcamos na própria escola ou visitando pessoalmente aqueles que não puderam comparecer à reunião realizada.

O CEEBA até hoje mantém cinco turmas de estimulação precoce de crianças surdas e naquele ano, em algumas sessões de filmagem, era comum que duas professoras reunissem suas turmas para sessões de contação de histórias em LIBRAS. Devido a este fato, também tive que pedir autorizações a todos os responsáveis, mesmo para aqueles pais e mães de crianças surdas que não estavam participando das filmagens da pesquisa, mas que aparecem na tela devido à junção de turmas em certos dias de filmagem que coincidiam com as sessões de contação de histórias. Observei que contação de histórias em LIBRAS, muitas vezes realizada pelas professoras surdas, é um dispositivo fecundo para o ensino desta língua, pois ao solicitar à criança que reconte a história com seus próprios sinais, a contadora cria a oportunidade de verificar a expressão em LIBRAS da criança e corrigi-la quando necessário. O contato com livros infantis contendo textos em português escrito e ilustrações, também serve como introdução para a existência da língua oral escrita para as crianças.

Além destes motivos, consultei os arquivos da instituição à procura dos casos confirmados de surdez ocasionada por rubéola gestacional, bem como as fichas de avaliação semestral dos alunos, para identificar possíveis casos de alunos que já eram usuários de língua de sinais, estruturada ou composta por sinais caseiros, antes de freqüentar o programa de estimulação precoce do CEEBA. Em ambas as ocasiões, testemunhei diretores lutando por reformas na estrutura física do prédio e organizando eventos de confraternização de toda comunidade escolar, tais como: exposição da arte produzida pelos alunos, festas junina e natalina, etc.. Nas diversas vezes que pedi um cafezinho na cantina, presenciei as merendeiras zelando pela higiene, pela qualidade e pela quantidade do alimento oferecido aos alunos, esforços que denotam sensibilidade humana com o processo educativo vivido na instituição e compromisso social a partir do uso correto dos insumos adquiridos com recursos públicos. Nestes períodos de convivência, sempre observei o empenho do pessoal da limpeza para manter o ambiente condições de uso, no início e no final dos turnos. Com relação à segurança, eu também colocava o crachá de plástico no pescoço, obedecendo ao ritual estabelecido pelos responsáveis e seus cuidados com todos os visitantes. O ritual foi perdendo o sentido à medida que as semanas passavam e eu fui dispensado de colocar o crachá de visitante quando minha presença tornou-se habitual e meu papel como pesquisador “das filmagens e do arquivo”, tornou-se claro para as pessoas.

Freqüentando habitualmente a instituição, tanto em 2003 quanto entre 2007 e 2008, convivi com funcionários administrativos freqüentes e pontuais, pessoas que cuidaram dos arquivos necessários à atividade dos pesquisadores. Presenciei o trabalho de assistentes sociais contactando escolas regulares e empresas, para conseguir de forma adequadamente supervisionada, a tão sonhada inclusão de pessoas com necessidades especiais em novos ambientes de trabalho e de aprendizagem. Registrei durante um ano letivo, o esforço lingüístico de três professoras ouvintes e o trabalho pouco conhecido das auxiliares pedagógicas surdas, que em minha pesquisa denomino de professoras de LIBRAS, uma vez que é isto que elas fazem: ensinam língua de sinais para as crianças. Verificando os arquivos, encontrei fichas de triagem devidamente preenchidas e pude achar o dado documental da rubéola que causou muitos casos de surdez congênita nos anos 90. Encontrei também as fichas de acompanhamento do aluno, criadas no próprio CEEBA e cujos aspectos registrados pelas professoras ao fim de cada semestre, permitiram-me verificar se a criança já conhecia a LIBRAS antes do programa de estimulação precoce. Todos estes dados serão informados com precisão na redação final da tese de doutoramento.

Ninguém pode negar que é uma instituição que presta um serviço público extremamente humano, tanto aos demais portadores de necessidades educativas especiais (pessoas com paralisia cerebral, retardo mental, problemas motores, etc.) como para as crianças surdas que ali permanecem até no máximo os sete anos de idade, antes de seguirem para o ensino fundamental em outra instituição, em regime especial ou inclusivo. No caso das crianças surdas, o CEEBA funciona como um ambiente lingüístico singular para pessoas oriundas de baixa renda desta cidade, e que dificilmente têm acesso a serviços de atendimento fonoaudiológico. Efetivamente, algumas famílias conseguem atenção fonoaudiológica para seus filhos em serviços universitários mantidos por cursos de Fonoaudiologia como os da UFBA e o da UNIME, este último, no município de Lauro de Freitas, vizinho a Salvador.

Quero destacar o valor social do serviço público prestado pelo CEEBA às famílias atendidas, evidenciando a preciosidade de seus esforços lingüísticos que tanto beneficiam os responsáveis ouvintes (mães, pais, portadores, irmãos, primos e avós) das crianças surdas atendidas em regime de estimulação precoce em LIBRAS. É o tipo de instituição pública que atende pessoas de baixa renda, e que se fechasse as portas, deixaria um enorme vazio na cidade e traria um grande prejuízo para a maioria das famílias que não poderia pagar uma escola especial particular para seus filhos surdos. Em 2003, uma das professoras participantes da minha coleta dados, informou que a instituição atendia a um número total de aproximadamente 500 famílias e é muito provável que este número se mantenha. Por que motivos uma instituição pública seria tão importante para as famílias ouvintes de crianças surdas?

A experiência da escola de pais e do coral sinalizado

No ano de 2003 o CEEBA era uma instituição dirigida por uma pessoa extremamente sensível à realidade dos surdos. Encontrei e ainda está em funcionamento, um “Coral Sinalizado” na “Escola de Pais”, serviço voltado para os responsáveis pelas crianças surdas atendidas neste centro e no CAS-Wilson Lins, outra instituição de atendimento especializado para surdos, localizada ao lado do CEEBA. Em 2003 a “Escola de Pais” era coordenada por uma psicóloga que trabalhava no centro e hoje o serviço continua funcionando sob a coordenação de uma professora da casa que foi preparada pela colega anterior para assumir esta função. Desde o tempo da coordenadora anterior, o objetivo principal da “Escola de Pais” já era, dentre outros, o ensino da LIBRAS para os familiares dos alunos surdos que freqüentam a escola (mães, alguns pais sem atividade fixa, primos, irmãos e avós). A “Escola de Pais” ainda funciona numa sala devidamente equipada com espelhos nas paredes, o que permite às pessoas a visualização delas mesmas para conferir e acompanhar a sinalização ao ritmo da música. O fato de inserir o vocabulário sinalizado em LIBRAS na cadência de uma canção popular de sucesso ajuda os adultos a perderem o medo de se comunicar com as mãos e a utilizarem a expressão facial - fatores fundamentais para a aquisição da fluência em língua de sinais.

Trata-se de uma estratégia inteligente de criação de um ambiente lingüístico apropriado para as crianças surdas que estavam nas salas ao lado em estimulação precoce realizada predominantemente em LIBRAS, com o uso de material didático de apoio, devidamente marcado com palavras escritas em alfabeto latino. Ensinar uma forma de comunicação viso-gestual para adultos não é uma tarefa fácil, e graças ao dispositivo do “Coral Sinalizado” as coordenadoras da “Escola de Pais” conseguem vencer a resistência inicial dos aprendizes adultos. Eu mesmo participei do coral em 2003, ensaiando semanalmente nos intervalos das filmagens, com o objetivo de aprender LIBRAS, bem como de me impregnar da cultura escolar com a qual eu estava convivendo. Conservo no armário a camisa azul e um par de luvas brancas que adquiri de uma das mães, para uma apresentação pública do coral da qual cheguei a participar.

De volta à instituição para novos procedimentos de pesquisa em 2007 e 2008, muitas mães me perguntavam na portaria e nos corredores da escola se eu não iria voltar para o “Coral”. Era uma pena dizer que “não” pois naquele momento, a transcrição de cenas dos vídeos que eu estava realizando, consumia muitas horas semanais em companhia de dois intérpretes de LIBRAS, alunos da UFBA e bolsistas de iniciação científica. Estes bolsistas auxiliavam a então professora da Faculdade de Educação, Dra. Nídia Regina Limeira de Sá, que num gesto de interesse científico e coleguismo institucional, inseriu minha pesquisa lingüística em sua linha de pesquisa sobre políticas públicas para a Educação de Surdos. Registro nestas breves linhas, minha gratidão à Dra. Nídia Regina, bem como aos tradutores/intérpretes Thalita Chagas Silva Araújo e Roberto César Reis da Costa.

Como pude perceber a influência positiva do “Coral Sinalizado” na vida das crianças surdas? Em muitas ocasiões, tanto em 2003, quanto nos anos seguintes, eu estive pacientemente sentado nos bancos de espera da entrada da instituição, aguardando a chegada de alguma pessoa da escola a quem eu deveria solicitar algum tipo de informação. Também esperei por professoras e responsáveis para solicitar autorizações. Nestas horas de espera nos ambientes comuns do centro, eu observava os portadores das crianças surdas interagirem com seus filhos, utilizando a língua de sinais que aprendíamos no “Coral Sinalizado da Escola de Pais”. Fazia sentido e era inteligente, oferecer um espaço de aprendizagem e socialização para pessoas que ficariam ociosas à espera da saída de suas crianças surdas das salas de estimulação precoce. O CEEBA continua oferecendo este serviço público, procurado até mesmo pelas pessoas que trazem seus filhos para as instituições vizinhas: o Instituto Pestalozzi e o CAS-Wilson Lins. A “Escola de Pais” também funciona como um espaço de socialização interessante, devido à horizontalidade de suas relações: as pessoas se solidarizam, conversam sobre seus sofrimentos e vitórias, comercializam produtos de beleza, compartilham merendas coletivas e acima de tudo, sentem-se ativas na educação de suas crianças.

Toda esta realidade social insuspeita é possível graças ao fato de que estas crianças recebem atendimento numa instituição pública especializada. Dispersar, arbitrariamente, pessoas portadoras de necessidades educativas especiais em classes regulares, pode ser uma forma de economia perversa de um Estado acostumado a não dar a contrapartida correspondente à alta carga tributária arrecadada. Ao não investir na criação e modernização de instituições de Educação Especial, o estado deixa de gastar onde mais deveria. Para onde vão estes recursos? A pergunta que simplesmente não quer calar é a seguinte: porque uma professora de estimulação precoce não ganha o mesmo que um vereador, deputado, senador ou professor universitário? Instituições públicas de excelência, a exemplo do Hospital Sarah, remuneram bem seus funcionários e em contrapartida, exigem a dedicação exclusiva de quem tem que encontrar o sentido da vida no exercício da profissão.

As crianças surdas das classes de baixa renda de todo país, necessitam de instituições criativas como o CEEBA, cujas experiências inovadoras como a “Escola de Pais” e o “Coral Sinalizado”, devem ser multiplicadas e aprimoradas. Porque faço esta afirmação de forma tão contundente e convicta? Porque testemunhei com meus próprios olhos o valor humano, comunicativo e pedagógico, que estas instituições têm para as crianças atendidas e suas famílias. Onde mais os familiares ouvintes daquelas crianças surdas poderiam aprender o vocabulário em LIBRAS necessário para os mais simples momentos da convivência familiar? Sem este suporte lingüístico, muitas crianças surdas que não podem freqüentar as salas de atendimento fonoaudiológico, estariam se sentindo lingüisticamente excluídas dentro de suas próprias casas. Esse é o ralato clássico de muitos surdos como Emmanuelle Laborit (2001), que em seu livro El Grito de la Gaviota narra como se sentia, alienada do que seus pais estavam conversando. A maioria dos surdos, inclusive os de famílias de melhor poder aquisitivo, contam a mesma história: sentiam-se excluídos das interações verbais em casa e descobriram um “mundo novo” quando tiveram contato com a comunidade surda e com a língua de sinais.

O que estou querendo dizer é que instituições como o CEEBA e o CAS-Wilson Lins aproximam estes mundos, criando um ponto de encontro e convivência lingüística para as pessoas implicadas com a criança surda, e esta atuação evita a tragédia que muitos surdos ainda vivem: a falta de uma linguagem estruturada seja em LIBRAS, seja em língua portuguesa escrita ou oral. Já acostumado a identificar pessoas nesta condição, tenho encontrado pessoas surdas trabalhando nos supermercados da cidade, onde eu geralmente procuro praticar a conversação usando meu pequeno vocabulário em LIBRAS. Algumas destas pessoas surdas não pronunciam qualquer palavra em português oral, bem como não mantém um diálogo social em LIBRAS, respondendo sempre “LIBRAS, NÃO” (eu não falo LIBRAS) quando eu pergunto a localização da prateleira de algum produto. Estes surdos geralmente apontam para outro surdo sinalizador, apontam para os cartazes numerados das próprias sessões ou simplesmente vão chamar algum funcionário que possa conversar comigo. Estas pessoas entendem escassamente que estou perguntando algo, mas são incapazes de responder e por isso, procuram me encaminhar a quem possa dialogar a partir de uma simples pergunta. Já me dediquei a observar que estes surdos com pouca linguagem estruturada, estão ali realizando tarefas repetitivas como recolher e agrupar as cestas de compras ou reunir carrinhos no estacionamento. Estes são surdos não tiveram a sorte de passar por instituições públicas como o CEEBA quando crianças.

A presença de surdos adultos nos centros especializados

Hay que convencer a todos los padres de niños sordos para que los pongan en contacto lo antes posible con adultos sordos, desde el nacimiento. Es necesario que se mezclen los mundos: el del ruido y el del silencio. El desarrollo psicológico del niño sordo se hará más deprisa y mucho mejor. Se formará desprovisto de la angustiosa sensación de sentirse solo en el mundo sin un pensamiento construido y sin un porvenir... (Laborit, 2001 , p.47) 2

Além do “Coral Sinalizado da Escola de Pais” outro fato que testemunhei e que é digno de referência a favor do modelo de sócio-educativo praticado pelo CEEBA (e também pelo CAS-Wilson Lins) é a presença de surdos adultos em ambos os centros. Estas pessoas surdas exercem o papel de auxiliares pedagógicas das professoras ouvintes em tarefas diversas do cotidiano escolar. Estas pessoas trabalhavam anteriormente em setores extintos da administração pública estatal (como a BahiaFarma) e foram encaminhadas para estas escolas. Na prática, estas pessoas surdas são as que ensinam LIBRAS às crianças oferecendo um modelo “nativo” de comunicação, cultura e identificação. Trata-se de uma iniciativa inspirada na literatura da Educação Bilíngüe para Surdos e que deve ter sido implementada graças ao compromisso de uma diretora que foi uma pioneira na utilização da LIBRAS para a educação de surdos na cidade, somada à influência de um líder surdo bilíngüe que trabalha na Secretaria de Administração do Estado da Bahia.

Qual a importância da presença destes surdos adultos nestas instituições especializadas? Eles são membros ativos da Comunidade Surda de Salvador e além de ensinar às crianças, também interagem em LIBRAS com as professoras ouvintes. Em junho de 2007, eu também pedi a autorização por escrito das professoras para transcrever as imagens com ajuda de intérpretes de LIBRAS e na ocasião, aproveitei para entrevistar as professoras ouvintes com o objetivo de reconstruir o histórico lingüístico delas. Nestas entrevistas, fiquei sabendo que além dos cursos de capacitação em língua de sinais, elas também aprenderam LIBRAS em contato direto com as auxiliares pedagógicas surdas. Ou seja, além das crianças surdas, as professoras ouvintes também aprendem com as auxiliares pedagógicas, que em minha pesquisa eu efetivamente denomino de professoras surdas de LIBRAS. A presença destes surdos adultos, assegura a zona de contato lingüístico e a prática da conversação em língua de sinais, mantendo uma cultura institucional de comunicação visual e sinalização que afeta a todos dentro do CEEBA. O que é mais importante em termos de aquisição de uma língua para crianças surdas, é o fato de que elas podem interagir com pessoas surdas adultas, que além de ensinar LIBRAS, atuam como modelos de identificação lingüística e cultural. Tudo isto se constitui num bem comum de valor inestimável, produzido pelo esforço e pelo compromisso de todos os atores sociais implicados.

Este é o meu testemunho enquanto pesquisador da comunicação em sala de aula com crianças surdas: esta instituição pública especial cria, proporciona e mantém ambientes lingüísticos dentro e fora da sala de aula, fundamentais para o desenvolvimento destas crianças. Sem a “Escola de Pais” e sem a presença de surdos adultos nestas instituições, como seria possível ensinar a língua de sinais para os adultos ouvintes que interagem com crianças surdas? Sem adultos capazes de se comunicar com as crianças surdas, como seria possível assegurar a Zona de Desenvolvimento Proximal (Vygotsky, 1991) que possibilita aprendizados sócio-historicamente referenciados, bem como o desenvolvimento cognitivo destas crianças?

Por presenciar e sentir com a sensibilidade da minha pele e dos meus olhos, o funcionamento desta instituição, que alberga em suas dependências tantos processos de interação linguística e de solidariedade humana, suponho que fenômenos sócio- lingüísticos semelhantes aconteçam com instituições homônimas em outras regiões do país e do mundo. Instituições de Educação Especial para os casos que requerem atenção especializada, são pontos de encontro que agregam as famílias e suas lutas. Não são locais de segregação, especialmente no caso das famílias ouvintes de crianças surdas. São em pontos de encontro como estes, que a socialização acontece e a comunicação em outra língua encontra espaço para ganhar vida entre seus usuários. Além das associações de surdos adultos, os centros de educação especial também se constituem num destes pontos de encontro. O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), localizado no Rio de Janeiro, é o maior exemplo de como uma instituição especializada é capaz de produzir e disseminar cultura surda em LIBRAS, lançando mão de dispositivos institucionais baseados nas mesmas pautas: participação ativa de pessoas surdas da comunidade, muitas delas ex-alunos da casa e a oferta de cursos para os implicados com a educação de surdos, incluindo um curso de nível superior. Instituições como estas precisam ser multiplicadas em diversos pontos do país, para evitar o êxodo dos surdos que procuram melhores oportunidade educacionais no INES do Rio de Janeiro.

Argumentos em defesa das instituições especializadas

Quem foi que disse que os Centros de Educação Especial são de alto custo para o Estado brasileiro em seus níveis federal, estadual e municipal? A arrecadação tributária é crescente num país de dimensões continentais e os gastos orçamentários em diversos setores é sempre questionável. Quem foi que disse que o Estado brasileiro não dispõe de recursos para cumprir seu papel ativo como promotor do bem estar social? É claro que os recursos existem! Que uso será feito destes recursos, caso eles não sejam investidos na melhoria e na multiplicação de instituições especializadas? A coletividade de pessoas com necessidades educacionais especiais é muito heterogênea, e a diversidade de opções de atendimento desta população é a melhor opção para uma sociedade democrática.

As instituições que oferecem atendimento educacional especializado para as crianças surdas não devem nem podem ser extintas. O mesmo é válido para instituições como o CASWilson Lins que dão suporte aos alunos surdos do ensino fundamental. Estas instituições deveriam, isto sim, agregar serviços para o benefício daqueles a quem estamos interessados em educar: as crianças surdas. Acima das disputas teóricas e curriculares presentes no campo dos estudos sobre a educação de surdos, devemos pensar que os alunos surdos têm o direito de disfrutar de uma escolaridade de turno integral, encontrando no mesmo espaço de estimulação precoce em LIBRAS, serviços fonoaudiológicos para o aproveitamento de percentuais auditivos, sempre que estes existam e seja o desejo da criança participar de tais atividades.

Estamos vivendo outra circunstância sigular: a existência de um curso de graduação em Letras com habilitação em LIBRAS, oferecido pela Universidade Federal de Santa Catarina em modalidade de Educação à Distância, com pólos em pelo menos 18 universidades do país. Participam desta graduação, surdos adultos e tradutores/intérpretes ouvintes de LIBRAS. As universidades que acolhem estes pólos, poderiam montar uma modalidade de estágio supervisionado que promovesse o encontro dos alunos da graduação em Letras-LIBRAS, com os alunos dos níveis fundamental e médio. Que surdos adultos e intépretes pudessem ajudar alunos dos níveis anteriores em suas tarefas escolares, seria uma forma belíssima de cooperação entre a universidade pública e as instituições especializadas que atendem os surdos. Desta forma, entendo que estaríamos criando um grande estímulo, para que os alunos surdos dos níveis fundamental e médio, sentissem o desejo de ingressar na universidade, a partir do esforço legítimo de superação de suas dificuldades linguísticas. Vejo que estamos diante da possibilidade de criação de um círculo virtuoso de Educação.

Quanto a oferta de serviços fonoaudiológicos que poderiam acontecer no mesmo espaço físico das instituições especializadas, também entendo que seria uma interessante articulação entre os sistemas estadual e federal de ensino. Interessante porque criaria um espaço de estágio curricular para os alunos de Fonoaudiologia. Interessante porque traria para as famílias de baixa renda, a possibilidade de realizar audiometrias ou sessões terapêuticas de baixo ou nenhum custo, diminuindo também o percurso desgastante percorrido pelos familiares obrigados a conduzir suas crianças surdas para diferentes lugares onde estes serviços podem ser encontrados. Aqui em Salvador, as audiometrias solicitadas por inúmeras outras instituições, podem ser feitas no Hospital Universitário da UFBA e em outros núcleos universitários de atendimento fonoaudiológico.

As crianças surdas que deixarem de receber serviços de estimulação precoce educacional em LIBRAS, muito provavelmente virão a desistir da escolaridade, pois uma base lingüística é necessária para a aquisição de novas aprendizagens e até mesmo a aquisição da língua portuguesa, seja em sua modalidade oral, seja em sua modalidade escrita. A falta de interação com interlocutores competentes em LIBRAS pode levar a criança e o jovem surdo à evasão escolar. São as pessoas surdas com escasso nível de linguagem e comunicação coartada, as que só conseguem postos de trabalho recolhendo cestas de compras e agrupando carrinhos nos supermercados. A melhor prevenção para que fatos como este venham se tornar um fenômeno de maior escala entre a população surda, especialmente entre pessoas surdas nascidas em famílias de baixa renda, é a manutenção e a melhoria dos serviços de estimulação precoce em LIBRAS.

Pessoalmente, estou realizando meu trabalho de pesquisa para oferecer uma sólida contribuição científica à legitimação da LIBRAS, felizmente já reconhecida legamente como língua da comunidade surda brasileira. Os dados em vídeo que registrei com a inestimável colaboração destas instituições, tanto servem para o estudo observacional dos estilos comunicativos das professoras, quanto para demonstração da importância da língua, da cultura e da identidade no currículo e na docência com alunos surdos. Como aluno de doutorado da Universidade Federal da Bahia, tenho dado meu apoio solidário às primeiras mestras surdas formadas em nosso estado, bem como, tenho procurado apoiar os intérpretes em suas lutas por reconhecimento social e remuneração digna pelos serviços prestados institucionalmente. Que este meu testemunho a favor da estimulação precoce em LIBRAS para crianças surdas, possa contribuir na luta pela preservação e melhoria das instuições públicas especializadas de Salvador e de todo Brasil.

Notas

2 Deve-se convencer todos os pais de crianças surdas para que as coloquem em contacto, o quanto antes, com surdos adultos, a partir do nascimento. É necessário que os mundos se misturem: o do ruído e o do silêncio. O desenvolvimento psicológico da criança surda acontecerá mais rápido e muito melhor. A criança surda se formará sem a sensação angustiante de se sentir sozinha no mundo sem um pensamento construído e sem um porvir...

Bibliografia

GEERTZ, Clifford. “Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura”. A Interpretação das Culturas. Tradução: Gilberto Velho. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

LABORIT, Emmanuelle. El grito de la gaviota. Barcelona: Editora Seix Barral, 2001.

VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e linguagem. Terceira Edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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