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Henrique Arnoldo Junior
Henrique Arnoldo Junior
Professor/Investigador
O uso do multiplano por alunos surdos e o desenvolvimento do pensamento geométrico
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Publicado em 2013
Cadernos CEDES, Campinas, v. 33, n. 91, p. 387-409
Henrique Arnoldo Junior
Maurivan Güntzel Ramos
Adriana da Silva Thoma
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Resumo

O artigo analisa a contribuição do Multiplano para a aprendizagem de geometria por alunos surdos. Remete-se ao desenvolvimento do pensamento geométrico e à criação de sinais matemáticos em Libras a partir de classificadores elaboradas pelos alunos. As análises dialogam com estudos sobre a cultura surda e a teoria de van Hiele sobre o pensamento geométrico. Competências geométricas e linguísticas foram avaliadas antes e depois da realização de uma unidade de aprendizagem com uso do Multiplano, que se mostrou um recurso didático adequado às necessidades da cultura surda para a aprendizagem em Matemática.

Introdução

Muitos estudos têm demonstrado que, tanto em espaços bilíngues quanto em situações de inclusão escolar em turmas de ouvintes, os surdos estão vivenciando barreiras comunicativas, 1 produzidas em grande parte pelas diferenças linguísticas e culturais entre a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a língua portuguesa. Em relação ao ensino de Matemática, tem-se observado que grande parte dessas barreiras são impostas por conceitos que não possuem sinais, pela ausência de itens lexicais da Libras que denotam termos específicos desta área de conhecimento (ANTUNES; SEIBERT, 2010; BASTOS; PEREIRA, 2009; OLIVEIRA, 2005; GUIMARÃES, 2011). Esses autores têm empregado materiais concretos para o desenvolvimento de itens lexicais da Libras a partir da transposição sígnica de classificadores, processo que será explicado no decorrer deste trabalho.

Este artigo apresenta um estudo sobre o uso do Multiplano 2 no ensino de geometria com alunos surdos. A pesquisa teve por objetivo analisar as contribuições desse material para a aprendizagem de geometria e para o desenvolvimento do pensamento geométrico desses alunos. A pesquisa ocorreu entre os anos de 2008 e 2010 e foi realizada com alunos do ensino fundamental de uma escola de surdos da Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Neste artigo faz-se um relato da prática realizada durante a pesquisa, problematizando a empregabilidade do recurso referido, em diálogo com outros trabalhos desenvolvidos em Matemática que também remetem à ausência de sinais matemáticos para o ensino dessa área para surdos. Semelhante aos professores anteriormente mencionados, o Multiplano pode ser uma alternativa para a criação de sinais matemáticos.

Para que não seja apenas um retrospecto e evitando generalizações, tensionamos nossos próprios propósitos. O recurso concreto tem sido um enunciado que têm circulado como um imperativo 3 para o ensino de Matemática (JARDINETTI, 1996).

Em matemática, disse o filósofo francês Michel Foucault que as verdades e seus efeitos são absolutos, formando "domínios científicos" (FOUCAULT, 2003, p. 233). Um estudo, uma teoria, uma menção nunca é definitiva, mas provisória. Foucault reconhece que há uma ruptura com a verdade: "são as 'práticas' concebidas ao mesmo tempo como modo de agir e de pensar que dão a chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do objeto" (FOUCAULT, 2006, p. 238). Materiais concretos são tomados como a salvação do ensino (JARDINETTI, 1996). Nesse sentido, procuramos mostrar que o Multiplano, apesar contribuir para o desenvolvimento de conceitos e teorias de caráter sistematizado e conclusivo, pode estar dotado de incertezas. Não queremos dizer com isso que estejam certos ou errados, mas mostrar que os significados são inventados, 4 produzidos e construídos historicamente (FOUCAULT, 1995, 2006a). Nesse contexto, inserem-se os surdos como grupo histórico-cultural.

Para atingir tal propósito, organizamos este estudo em três partes: na primeira, sob o título A construção de classificadores por meio de recursos visuais, tratamos de uma estrutura gramatical da Libras conhecida por classificador, ponto de partida para o entendimento dos propósitos da análise; na segunda, denominada Fundamentos metodológicos, descrevemos a metodologia empregada e as concepções assumidas na pesquisa; por fim, em Dados obtidos e discussão dos resultados, analisamos a empregabilidade do Multiplano, buscando entender as interações e a relevância da visualidade para a educação de surdos. Encerramos com as Considerações finais, em que apresentamos possibilidade de respostas ao problema de pesquisa em relação às diversas situações em sala de aula, em que se aplicou o material como recurso visual.

A construção de classificadores por meio de recursos visuais

Na atualidade, com o aumento do nível de escolarização dos sujeitos surdos nas últimas décadas, observamos a emergência dos sinais matemáticos. Estes, assim como sinais de outras áreas do conhecimento, vêm sendo criados pela necessidade de comunicação que se coloca diante das demandas por uma educação bilíngue. Esta educação considera a língua de sinais como a primeira língua dos surdos, por meio da qual eles podem compreender melhor os conhecimentos que fazem parte do currículo escolar. Nesse contexto, seria um equívoco, senão um preconceito linguístico pressupor que a língua de sinais é uma língua incompleta por ainda não ter sinais para todos os conceitos já nomeados em língua portuguesa (GESSER, 2009). Data de 1960 o reconhecimento das línguas de sinais como idioma, quando William Stokoe argumenta que as línguas de sinais são equiparáveis às línguas orais, publicando a obra Sign language structure. Sinais, para ele, não são meras figuras, mas "símbolos abstratos com uma estrutura interna complexa" (SACKS, 1999, p. 89). Stokoe demonstrou que as línguas de sinais possuíam estruturas linguísticas similares às das línguas orais e, fazendo um paralelo com estas, concluiu que as línguas de sinais são constituídas de pares mínimos (configurações de mãos, movimento, localização e expressões não manuais - faciais e corporais), tendo sintaxe, semântica/pragmática e, portanto, gramática própria, contrariando a concepção expressa pelas atas do Congresso de Milão, 5 no qual educadores de surdos de institutos da Europa do século XIX consideraram as línguas de sinais formas de comunicação não verbais, pobres, sem estruturas e rudimentares.

Com o reconhecimento do status linguístico das línguas de sinais, a partir de estudos que iniciaram no Brasil na década de 1980, a escolarização dos surdos passou a ser pensada a partir da concepção da surdez como uma diferença linguística e cultural que, uma vez reconhecida, tem mobilizado as lutas em prol de uma educação bilíngue, não mais uma educação especial que investe apenas em processos de normalização pelo aprendizado da língua da maioria ouvinte. Nesse cenário de mudanças, que possibilitou o aumento da escolarização dos surdos, passamos a ver a necessidade de criação de sinais para áreas específicas, de modo a garantir o respeito à diferença surda.

Logo, como resolver a questão da ausência de sinais? Da mesma forma como os ouvintes empregam sinônimos para denotar palavras que desconheçam em um determinado momento, os surdos empregam uma estrutura linguística conhecida por classificador, abreviada por CL. Na falta de um sinal, os surdos utilizam um CL para comunicar algo até que se convencionem sinais específicos para termos específicos, que são gradativamente incorporados a língua de sinais.

A criação de um CL consiste em elaborar um possível sinal para o que se quer comunicar. Os CL são configurações de mãos que associadas a expressões faciais são empregadas para definir, classificar pessoas e objetos quando estes não puderem ser ou ainda não são representados por sinais (BRITO, 1997). Os CL são desenhados no espaço sinalizante 6 e refletem a imagem mental do conceito. Metaforicamente falando, representam a imagem do pensamento (KOJIMA; SEGALA, 2008).

Para expressarmos CÍRCULO, por exemplo, o sinalizante articula o sinal como se estivesse desenhando um "círculo" com as extremidades do indicador. Esse processo é denominado sinalização por formatos. No ensino da Matemática, muitas vezes pode ocorrer a apropriação de um CL, vindo a tornar-se um sinal posteriormente (OLIVEIRA, 2005), mas este "sinal" levará consigo sempre uma descrição particular. Trata-se então de uma combinação entre professor e aluno surdo, intérprete de sinais-surdo ou surdo-surdo, ou seja, um processo de convenção do qual o surdo sempre fará parte.

O emprego de CL para comunicar algo é bastante comum em Libras. Os surdos conseguem expressá-los naturalmente. Isso de deve ao fato de a Libras ter uma modalidade visual-espacial (QUADROS, 1997). O canal de recepção/produção dos sinais é o visual/motor (espacial), ao contrário da língua portuguesa que é auditiva/oral (acústica).

A Libras como meio de comunicação e expressão foi reconhecida em 24 de abril de 2002, pela Lei n. 10.436 (BRASIL, 2002), mas somente em 2005 é que foi regulamentada (BRASIL, 2005). Sob esse aspecto, ao contrário do que ocorre com a língua portuguesa, grande parte dos CL são desconhecidos nas comunidades surdas. Por isso, tanto os professores sentem-se impotentes e angustiados, por não conseguirem estabelecer uma comunicação efetiva com os alunos, quanto as famílias, por terem dificuldades na interação e no diálogo com os filhos (OLIVEIRA, 2005).

Inúmeras pesquisas em matemática têm abordado a elaboração de CL. Mencionamos neste estudo aquelas que podem ser úteis para nossa análise.

Janine Soares de Oliveira (OLIVEIRA, 2005) empregou o origami, dobraduras em papel, para ensinar geometria para alunos surdos do ensino fundamental na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Constatou, no decorrer de suas pesquisas, que muitos sinais eram criados pelos surdos a partir dos CL, visando à diminuição de barreiras comunicativas. Um dos origamis empregados foi o Decorative Box, que permitiu aos alunos a apreensão da figura espacial cubo. O recurso permitia estudar a forma geométrica e o modo como o cubo era construído e moldado, à medida que as dobraduras eram realizadas. CL como "cheio", "caixa guarda coisas" e "gordo" foram alguns entre outros obtidos pelo estudo para descrever conceitos e objetos desprovidos de sinais específicos durante o manuseio do material.

Bastos e Pereira (2009) analisaram a aprendizagem de matemática por alunos surdos de ensino médio mediante o emprego de situaçõespro blemas. Empregaram recursos visuais, como fotos e gravuras, para promover a aprendizagem de conceitos matemáticos. Enfrentaram a barreira da falta de sinais específicos para comunicar conceitos matemáticos como: função, domínio, imagem, entre outros. Constataram que os alunos apresentavam barreiras comunicativas com relação à escrita da língua portuguesa. Ocorria a apropriação de notação matemática sem a apropriação da expressão verbal, o sinal, afirmam os autores. Minimizaram essas barreiras pelo emprego de textos e enunciados elaborados nos contextos dos alunos, ao nível da língua que eles conheciam. Não criaram CL, mas apontaram a necessidade sígnica.

Com base nesses dois estudos, o primeiro autor desse texto, Arnoldo Junior (2010) emprega outro recurso visual: o Multiplano. Este texto relata o estudo que procurou analisar de que forma os CL podem ser obtidos por meio da manipulação do recurso concreto. Com o grupo de alunos, que fez parte do estudo, constatou-se que o processo ocorria por transposição sígnica. 7 Obtiveram-se alguns CL em geometria, criados e convencionados pelos alunos surdos e empregados nas interações em sala de aula, como: Círculo, 8 Geometria, Lado, Losango, Multiplano, Paralela, Paralelo, Paralelogramo, Perpendicular, Ponto, Quadrado, Reta, Retângulo, Trapézio, Triângulo-Retângulo e Triângulo. Se tomarmos o CL Quadrado, empregado em Arnoldo Junior (2010), podemos observar que a sinalização difere do sinal no dicionário de Capovilla e Raphael (2001b), o que evidencia que a emancipação, ou seja, tornar os CL reconhecidos por todas as comunidades surdas brasileiras, é um processo emergente.

Fundamentos metodológicos

A pesquisa que dá origem a esse artigo constitui-se em um estudo de caso, uma pequena unidade social de um todo (YIN, 1994), de cunho etnográfico, por estar relacionada a uma cultura: a surda. Empregou-se a etnografia não como foco, mas como opção teórico-metodológica, evitando qualquer forma de estigmatização dos sujeitos envolvidos. Foram observados dois alunos, um menino e uma menina, FE 9 e CA, respectivamente, ambos usuários fluentes da Libras. O primeiro tinha 18 anos, filho de pais empresários, que também sabiam a Libras. Já CA tinha 35 anos, residia com a avó que não sabia Libras e as condições econômicas eram menos favoráveis. A professora RA, ouvinte, estava terminando sua licenciatura em Matemática e não era fluente em Libras. A escola KI contava com 15 professores ouvintes e dois surdos; trabalha na perspectiva bilíngue de ensino, Libras como primeira língua (L1) e a língua portuguesa como segunda língua (L2).

A contextualização dos sujeitos da pesquisa, do ambiente de aprendizagem e da possibilidade de interações sociolinguísticas constitui a base para o início de uma pesquisa com enfoque etnográfico (ANDRÉ, 2008). A etnografia permitiu, além da contextualização, verificar que barreiras comunicativas não decorriam apenas das diferenças estruturais entre a Libras e a língua portuguesa, como inicialmente se pensou, mas advinham também de outras variáveis: 1) o contexto familiar, em que se inserem as interações entre pais e filhos; 2) o contexto educacional, em que a professora, não tendo fluência em Libras, contribuía expressivamente para um aumento de barreiras na comunicação, apesar da escola trabalhar a abordagem bilíngue.

O estudo teve a duração de 17 encontros letivos, sendo que em dez deles empregou-se efetivamente o Multiplano. Ambos os alunos foram observados em relação ao uso do recurso. Escolheu-se um conteúdo que não tivesse relação com as atividades que estavam sendo desenvolvidas no momento, optando-se pela geometria. Por não haver um método específico para atuar com o Multiplano, foi necessário recorrer a teorias que tratam sobre o desenvolvimento do pensamento geométrico. Além disso, foi proposta uma metodologia para empregar o Multiplano, pois sua aplicabilidade com surdos era inédita. Assim, recorreu-se a teoria de van Hiele (1986) para analisar a evolução do pensamento geométrico. Para empregar o Multiplano, foi utilizada como base a dissertação de mestrado do professor Rubens Ferronato, inventor do Multiplano (FERRONATO, 2002) e o manual de aplicação do recurso (idem, 2008). Para entender as relações sociointeracionistas recorreu-se à teorização vygotskyana (VYGOTSKY, 2002, 2005), pois necessitávamos de um ponto de partida.

Assim, visando a avaliar as competências geométricas iniciais dos alunos, aplicou-se um pré-teste com base em van Hiele. Usou-se o Teste de van Hiele elaborado pela professora Lilian Nasser (NASSER, 1992). O recurso permite identificar em qual dos níveis de van Hiele (VAN HIE-LE, 1986) o aluno se encontra: Nível 1 - Reconhecimento: reconhece e diferencia formas geométricas por sua aparência global; Nível 2 - Análise: descreve as figuras em termo de suas componentes; Nível 3 - Abstração: estuda-se a geometria euclidiana, como o cálculo de perímetros e de áreas; Nível 4 - Dedução: em que se estudam teoremas, postulados e axiomas; Nível 5 - Rigor: em que se estudam as geometrias não euclidianas. Foram apresentadas três questões referentes a cada um dos níveis aos alunos, totalizando nove questões. A metodologia de van Hiele (1986) sugere que o aluno progride em níveis de compreensão e evolui de um nível para outro pela vivência com as atividades propostas trabalhadas, independendo da sua idade biológica.

Cabe destacar que o critério proposto por Zalman Usikin (1982, p. 23) para avaliar o estágio em que o aluno se encontra em van Hiele é "3 corretos a cada 5", ou 60% como propõem Nasser e Tinoco (2004). No entanto, neste estudo, adotou-se um critério mais rigoroso: 100%. Com base nesse critério, no teste inicial nenhum aluno situou-se em van Hiele.

Da mesma forma, elaborou-se um pré-teste de CL, buscando saber se os alunos compreendiam alguns elementos em geometria. Ao todo, 11 CL foram solicitados no teste. Tomamos como base para a avaliação as sinalizações no dicionário de Libras de Capovilla e Raphael (2001a; 2001b). Também foram considerados sinais regionais adotados por intérpretes da região onde a escola está situada. Alguns sinais apresentados pelo intérprete coincidiam com os dicionários. Como resultado dessa avaliação, os sujeitos não associaram os sinais aos conceitos.

O modelo van Hiele é empregado também para orientar a prática pedagógica. Para progredir, o aluno necessita perpassar cinco fases sequenciais (VAN HIELE, 1986): 1º) interrogação, que se refere à informação, saber os conhecimentos prévios dos alunos; 2º) orientação dirigida, em que os alunos trabalham com base nos materiais selecionados pelo professor; 3º) explicação, fase em que os alunos aprendem por si mesmos, tendo o professor como mediador; 4º) orientação livre, em que o professor oferece tarefas complexas, os alunos elaboram novas soluções, trabalham de modo autônomo por meio da experiência; e 5º) integração, em que o professor visa a consolidar o já apreendido. Esses passos podem ser empregados como guia para o professor, como propõe van Hiele.

Teoria é um construto hierarquicamente sistematizado, conclusivo, composto por leis e princípios que denotam uma racionalidade (VEIGA-NE TO; LOPES, 2010). Nesse sentido insere-se a teoria de van Hiele. Neste estudo, o modelo van Hiele foi tomado em um sentido de teorização (ibid.), uma reflexão aberta e inconclusiva sobre o que consideramos etnograficamente analisado. Consideramos os diferentes tempos e posições de aprendizagem dos alunos observados. Atribuímos um caráter não conclusivo ao estudo, mas provisório.

Justifica-se o exposto frente à heterogeneidade dos sujeitos da pesquisa. FE e CA, além de terem diferentes idades biológicas, possuíam diferentes concepções, histórias de vida e domínios de língua, entre outros aspectos. Qualquer tentativa de homogeneidade que tente caracterizá-los deve ser colocada sob suspeita. Intencionalidades como esta é que têm produzido discursividades, que ganham estatuto de verdade (FOUCAULT, 1995). Teorias podem produzir "modos específicos e corretos de se fazer a matemática" (SOUZA; FONSECA, 2010, p. 316; grifo do autor), definitivos, tomados como verdadeiros para a educação. Com isso, neste estudo atribuímos caráter de provisoriedade às teorias aplicadas, visto que por mais que se tente, elas não podem ser universais.

Assim, a teoria de van Hiele foi tomada no sentido de uma pedagogia com vistas aos avanços em aprendizagem. Trata-se de trabalhar os conteúdos curriculares a partir dos saberes dos sujeitos e de acordo com o que eles sabem e o que não sabem, estabelecendo os conteúdos a serem ministrados (VAN HIELE, 1986). Os resultados alcançados na avaliação com os alunos, indicando pouca compreensão dos conteúdos geométricos, apontaram para o trabalho com tais conteúdos desde o primeiro nível.

Foram elaborados planos de aulas utilizando-se livros didáticos de Matemática disponíveis na escola e os conteúdos foram organizados em uma Unidade de Aprendizagem (UA). 10

Numa visão cultural, o surdo se desenvolve e pode aprender da mesma forma que o ouvinte, sem que haja necessidade de adaptações ou flexibilizações de conteúdo, avaliação ou prognóstico (LOPES, 2007; LO-PES; FABRIS, 2005). A UA foi desenvolvida em Libras, condicionada ao grau de conhecimento dessa língua pela professora, e abrangeu conteúdos pertinentes aos três primeiros níveis de van Hiele.

Para trabalhar com o Multiplano, empregou-se a associação de signos proposta por Pais (1996). Conforme o autor, o aluno passa por um processo de conceitualização. O conceito (teoria) passa por representações (experiência), rumo às imagens mentais (intuição). Quando o aluno consegue representar algo na mente em lugar de outra coisa, diz-se que formou uma representação mental. Nessa etapa se recorre aos sentidos como o tato e a visão. Quando não há mais essa necessidade, diz-se que formou imagens mentais (STERNBERG, 2008).

Desse modo, a abstração matemática, por ser uma concepção particular e intuitiva de cada aluno, representa a etapa mais complexa de representação mental (PAIS, 1996). Cada pessoa apreende imagens mentais associadas a um mesmo conceito, por isso são intuitivas. A UA com uso do Multiplano teve como objetivo elevar o nível de pensamento geométrico pela formação de imagens mentais. Durante o desenvolvimento das atividades, percebeu-se que o Multiplano, além de ser um material concreto, de apoio ao ensino, possibilitou também transpor a materialidade da representação.

Um signo se convertia em outro signo (SANTAELLA, 2007), isto é, os alunos, com base na representação na placa, associavam a representação a imagens mentais. Esse processo permitiu que eles externalizassem articulações específicas para denotar as imagens de sua mente sob a forma de classificadores. FE produziu, por exemplo, o CL para Losango e Paralelogramo. A Aluna CA produziu CL para Perpendicular. Uma ação externa, com uso de instrumento, o Multiplano, foi convertida em ação interna, língua, um discurso interno que passa a atuar sobre as ações do aprendente. Por isso, foi importante também trabalhar com atividades que não recorressem ao Multiplano com os alunos, buscando consolidar a transposição (PAIS, 1996). Esperava-se que os alunos fossem capazes de realizar as tarefas sem recorrer ao material concreto.

Após o desenvolvimento da UA em geometria, analisaram-se os rendimentos dos alunos. De forma análoga ao teste inicial, elaborou-se um teste final de van Hiele. A diferença entre esses dois testes fornece um indicativo de evolução (NASSER; TINOCO, 2004). Elaborou-se também um teste final de CL, com base nos conteúdos trabalhados com os alunos. A análise necessita ainda de uma avaliação subjetiva, afirmam os autores. Essa avaliação, de modo narrativo, não pode ser confundida com parecer pedagógico ou diagnóstico, mas entendida como um registro dos possíveis alunos, evitando qualquer prescrição ou rotulação. Descentralizando-se o sujeito, registram-se outras variáveis que interferem no processo.

Como resultado, o aluno FE obteve classificação em van Hiele, estando no nível 1, e apreendeu todos os CL desenvolvidos; já a aluna CA não obteve classificação em van Hiele e apreendeu apenas dois CL: Círculo e Matemática. Esses resultados mostram avanços.

A UA também permitiu integralizar alguns conhecimentos para a aluna CA, evidenciando avanços. Talvez ela necessitasse de maior explicação acerca dos conteúdos, como prevê a própria teoria de van Hiele (op. cit.). Percebeu-se que o que se diferenciou entre ambos os alunos não foi a média, mas os tempos de aprendizagem.

Ressaltamos que a precisão em van Hiele, a captura dos sujeitos por esse discurso e o enquadramento do aluno como estando em algum nível estão suscetíveis a incertezas, trata-se de uma invenção de significação (FOUCAULT, 1995, 2006a). Não há como afirmar que determinado sujeito é inerente a um nível em especifico, até porque a avaliação elaborada para tal constatação não engloba todas as possíveis situações matemáticas existentes. Ciente disso, esse estudo não visa a fornecer um "parâmetro numérico", mas mostrar que uma pedagogia, que não a de corrigibilidade, 11 pode ser empreendida pelo professor, com vistas ao desenvolvimento do aluno. Não é o "índice" que vai rotulá-lo como aprendente ou não aprendente.

Dados obtidos e discussão dos resultados

Organizamos os dados obtidos e os analisamos sob a forma de assertivas, com pretensão de mostrar o que o Multiplano possibilitou no estudo, bem como exemplos concretos de situações observadas ao longo da UA, dispostos no Quadro 1, nas próximas páginas. Essas identificações foram fruto da observação e dos testes realizados.

ASSERTIVAS SITUAÇÕES CONCRETAS OBSERVADAS AO LONGO DA UA
1 Criar classifi cadores da Libras: a representação na placa possibilitou emergir um CL icônico, aquele que se assemelha com seu referente. Um signo convertido em outro (SANTAELLA, 2007); 1.1 Necessidade de usar um CL para representar Reta-Inclinada, sinal que não existe no léxico da Libras.
1.2 A aluna CA, partindo da representação na placa, sinaliza por formatos a figura “paralelogramo”.
1.3 A professora RA cria um sinal icônico para Reta, tentando diferenciar “retas paralelas” de “perpendiculares”.
 1.4 Os sinais apreendidos e os criados nos processos comunicativos aumentavam as trocas sociais e enriqueciam as relações. Além disso, permitia aos alunos a apropriação do materialismo cultural: a simbologia matemática, a geometria,
a escrita e a Libras.
2 Estimular o pensamento por sinais: o sinal, item lexical da Libras, pode ser tomado como equivalente estrutural à palavra, item lexical do Português (FELIPE, 2009);  2.1 A aluna CA percebe que o “retângulo” possui forma global diferente de “quadrado”.
2.2 CA ao representar “paralelogramo” no Multiplano, sinaliza os números 1, 2, 3 e 4, referindo-se aos lados do paralelogramo. Havia a necessidade de a aluna olhar para o sinal para associar o seu signifi cado ao número.
2.3 O aluno FE, depois de representar na placa do Multiplano um “triângulo-retângulo” e um “losango”, consegue sinalizar ambas as formas.
2.4 A sinalização por formatos da aluna CA para representar “paralelogramo” é indicativo de que ela estava operando por sinais.
2.5 O aluno FE, ao realizar operações aritméticas usando os dedos, visualizava a forma geométrica antes de responder às questões.
2.6 CA necessitou ver o sinal para “sete” para entender que havia representado sete pontos na placa do Multiplano.
3 Trabalhar a concretude e uma série de situações didáticas: concretude dos conceitos matemáticos, otimizar o tempo de aula e os materiais didáticos. Trabalhar conteúdos matemáticos em diferentes níveis (FERRONATO, 2002), infi nitas situações que podem ser elaboradas pelo professor;  3.1 Os conteúdos geométricos ganham forma com as representações no Multiplano, o aluno conseguia perceber a concretude dos conceitos geométricos.
3.2 Manipulação, representação de formas geométricas, possibilidade de trabalhar a visualização, revisão, apreensão do conceito de área e unidade de área. As representações por meio do Multiplano podiam ser montadas e desmontadas quantas vezes fosse necessário, otimizando a ação e intervenção docente, economizando materiais como borracha e papel. O processo é reversível, ou seja, uma nova representação não gastava material, contribuindo para a preservação ambiental, além de otimizar o tempo de aula.
4 Formar imagens mentais: a representação mental ocorre quando o aluno associa o objeto ao seu desenho (PAIS, 1996; STERNBERG, 2008), recorrendo ao “ver para crer” no Multiplano. Logo, quando o aluno for capaz de imaginar a situação sem recorrer à visão, órgão de sentido, formará imagens mentais;  4.1 As representações dos alunos foram aperfeiçoando à medida que a UA se desenvolvia. O sujeito FE formou imagens mentais, pois conseguia realizar algumas tarefas sem recorrer aos dedos ou ao Multiplano. CA necessitava visualizar o sinal ou ainda necessitava recorrer ao Multiplano, o que indica que a aluna estava apenas formando representações mentais. Diferentes posições de aprendizagem devido à heterogeneidade dos sujeitos.
5 Possibilitou a aprendizagem do princípio de contagem e das apreensões dos sinais numéricos: os alunos procediam à contagem do número de pinos e, a partir desse princípio, apreendiam os sinais e o sistema numérico. A ação externa convertida em ação interna desenvolvia o pensamento (VYGOTSKY, 2002, 2005), entre eles infere-se: o pensamento matemático e o pensamento geométrico;  5.1 A aluna CA usa os dedos como instrumentos para contar.
5.2 O aluno FE conta o número de pinos representado por “quadradinhos” que preenchiam um quadrado e um retângulo.
5.3 O aluno FE conta os pinos do retângulo representado no Multiplano com auxílio da lapiseira.
5.4 O aluno FE usa simbologia matemática para realizar a multiplicação, visando a obter o número de pinos de suas representações.
5.5 De forma análoga, a aluna CA procede à contagem dos pinos, substituindo-os ainda por “pauzinhos”, que se somando contabilizam o número de pinos.
6 Atuar como instrumento cultura que permeia a cultura surda: os instrumentos de mediação são instrumentos culturais (VYGOTSKY, 2002), pois estão permeados pela cultura à qual foram propostos. O Multiplano é instrumento de mediação dos cegos (FERRONATO, 2002) e mostrou-se efi ciente ao permear outra forma cultural: a cultura surda;  6.1 O uso do Multiplano foi permeado pela cultura surda, que não foi propósito de sua criação, pois este instrumento foi inventado para ser utilizado com sujeitos cegos. Logo, o Multiplano foi objeto de manipulação de dois alunos surdos e o estudo do pensamento geométrico de ambos permitiu analisar o contexto social em que o Multiplano pode ser empregado: os surdos usam esse instrumento de forma diferenciada dos ouvintes e também dos cegos. O Multiplano demonstrou potencial para a aprendizagem de alunos surdos.
7 Possibilitar uma compensação sígnica, estabelecendo um “elo” de comunicação entre o professor e o aluno: o uso do instrumento cultural Multiplano promoveu compensação sígnica (GARCIA, 1998) ou ainda linguística, por substituir os signos linguísticos por signos visuais. Estes por sua vez, formavam “elos comunicativos” decorrentes da difi culdade em explicar noções geométricas pela falta de sinais.  7.1 A professora RA não tinha fl uência em Libras; por conseguinte, existiam barreiras comunicativas, que foram amenizadas com uso do Multiplano, uma compensação sígnica. Assim, o recurso atuou como mediador, estabelecendo um “elo” entre a professora e os alunos. A professora comunicava uma ação no Multiplano que era correspondida por outra ação no mesmo instrumento e a interpretação dessas ações é que dizia se o aluno tinha compreensão dos conteúdos.
8 Atuar como recurso didático concreto (FERRONATO, 2002, 2008): este estudo mostrou sua efi cácia para surdos, pela diminuição das barreiras comunicativas entre professor e aluno. Essa assertiva apóia-se na recomendação do Multiplano para todos os alunos (BRASIL, 2006);  8.1 Ferronato (2002) desenvolveu o Multiplano para Atendimento Educacional Especializado do Cego (AEE). Porém, analisando-se as ações dos alunos surdos com o Multiplano, propôs-se o emprego desse recurso também para alunos surdos.
9.2 A professora RA recomenda empregar o Multiplano como recurso de apoio às aulas de Matemática, não devendo ser usado continuamente nas aulas, sob risco de os alunos perderem a motivação. A diretora AA ressalta que o Multiplano trabalha o visual, logo, também indica a sua utilização para surdos.

Quadro 1: Exemplos de situações observadas ao longo da UA

Considerações finais

Este estudo possibilitou observar que os CL não têm apenas função comunicativa, pois são indispensáveis para a formação e estruturação do pensamento (assertivas 1 e 2).

O Multiplano, assim como o origami, as fotos, as gravuras, entre outros recursos visuais, estimula o pensamento por sinais (assertivas 2 e 4). CL emergem a partir desses materiais. Em grande parte icônicos, os CL permitiram estabelecer elos entre a língua portuguesa e a Libras. Assim, obter CL ou sinais específicos passou a ser desafio para grande parte dos pesquisadores e educadores, bem como para o estudo com o Multiplano. Em 1980, com a adoção mundial da abordagem de Comunicação Total (CT), em que qualquer forma comunicativa podia ser empregada para atuar com surdos, iniciou-se o emprego de recursos visuais na educação. Como exemplo, tal prática materializou-se por meio de métodos para ensino de Matemática para surdos (SOUZA; FONSECA, 2010). No estudo com o Multiplano, foi possível estabelecer um elo comunicativo entre o professor e o aluno (assertiva 7), uma compensação sígnica, consonante com a CT, mas promovida pela falta de fluência em Libras por parte do educador. Em grande parte das interações promoveu-se mais um espaço de CT do que bilíngue. Pode ter sido da CT que o discurso do recurso visual como ideal para a educação de surdos tenha se instaurado nas práticas pedagógicas como um modo possível e adequado de ensinar a Matemática, corroborando a crença de que os materiais concretos sejam a salvação do ensino (JARDI-NETTI, 1996). Falsificamos algo que muito se veicula como verdadeiro, como propõe Foucault (1995, 2006a, 2006b). Podemos observar recorrências desse discurso e seus delineamentos em diversos momentos históricos, em diversos livros para a educação de surdos, no estudo com o Multiplano (assertivas 3 e 7), bem como em documentos oficiais.

Constatamos mais uma vez a empregabilidade de recursos visuais. Esse discurso tem conduzido a prática pedagógica. O Multiplano foi um recurso criado para cegos e, ao ser usado com outros sujeitos, surdos, obtiveram-se resultados satisfatórios (assertivas 6 e 8), mostrando-nos que, como já apontava Foucault (2003) acerca dos domínios científicos, os materiais concretos matemáticos estão dotados de incertezas.

O recurso, quando tomado como material concreto, pode ser empregado tanto para o ouvinte como para o surdo, sem distinções identitárias (assertiva 8). "A visualidade é o meio que os surdos dispõem para aprender e se relacionar com as coisas do mundo, visto que o meio de aquisição de informação obrigatoriamente passa pelo canal visual" (VALES, 2008, p. 19), relaciona-se com o canal receptivo de língua. O que se pode observar com o emprego de recursos concretos é que, muitas vezes, exagera-se em sua empregabilidade, como se fosse algo milagroso (JARDINETTI, 1996), como ocorreu com o Multiplano. Constatou-se que o emprego contínuo desmotivava os alunos (assertiva 7). Com isso, podemos inferir que o Multiplano (ARNOLDO JUNIOR, 2010), o origami (OLIVEIRA, 2005), as fotos e gravuras (BASTOS; PEREIRA, 2009) são recursos produtivos tanto para o ouvinte como para o surdo, mas que a visualidade por eles proporcionada é potencial para o surdo, por estimular o canal receptivo de suas informações.

Prosseguindo, perguntamos: Como os recursos visuais podem contribuir para o desenvolvimento de sinais em Libras? Percorrendo assertivas conclusivas deste estudo, constata-se que a visualidade pode ser proporcionada pelo uso de materiais concretos que denotem os conceitos que estão sendo estudados. Um signo transpõe-se para outro signo, neste caso linguístico, pelo processo de internalização, uma ação externa convertida em ação interna, que depois conduzirá as ações e decisões dos sujeitos (VYGOTSKY, 2002, 2005), como já mencionamos. Em contagem, por exemplo, os alunos necessitavam recorrer à visualização de sua sinalização para associar o número ao seu significado, da mesma forma como os ouvintes fazem quando contam empregando os dedos (assertiva 5).

No processo de internalização pela manipulação do concreto e visual se produz o CL, como detalhado num momento anterior. Os CL são entes gramaticais da Libras que, agrupados, formam as frases. Um CL só pode não possuir sentido ou ser incorretamente empregado se não conhecermos o contexto da sua enunciação. Por isso, fala-se mais em Libras em contexto do que apenas Libras (FELIPE, 2009). Estes CL convencionados em uma comunidade podem não ser reconhecidos por outras comunidades. Emancipá-los é um desafio para a educação. Quando difundidos em outras comunidades, passam a ser instaurados em dicionários, recebendo o estatuto de sinal da Libras.

O ciberespaço tem sido um dos ambientes promovedores desta difusão. O Dicionário Digital de Libras (ACESSIBILIDADE BRASIL, 2006), elaborado pelos pesquisadores Guilherme Lira e Tanya Felipe com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), é um exemplo de software que permite consultar os sinais praticados no contexto brasileiro.

Concluindo a discussão, é emergente a convenção de CL e a emancipação de sinais em educação matemática. Antunes e Seibert (2010), baseadas em algumas concepções de pesquisa de Arnoldo Junior (2005), Arnoldo Junior e Ramos (2008) e Arnoldo Junior (2010), analisaram e empregaram alguns sinais obtidos nessas pesquisas e verificaram a emergência da criação de sinais matemáticos. A educadora surda Bruna Antunes empregou algumas concepções dessas pesquisas em sala de aula, obtendo resultados positivos (ANTUNES; SEIBERT, 2010). Ela criou alguns sinais, que foram divulgados, porém não publicados.

Guimarães (2011), professor surdo, constatou a necessidade de aprendizagem de novos CL, com vistas à redução de barreiras comunicativas. Trabalhou aspectos da divisão de polinômios com alunos de ensino médio de uma escola de surdos de Santa Maria (RS). Ele destaca que "é preciso pensar em materiais, recursos e metodologias que facilitem e ajudem o professor no ensino dessa área, especialmente no ensino de divisão de polinômios" (GUI-MARÃES, 2011, p. 10). O professor considera relevante a aproximação: matemática, línguas de sinais e experiências visuais. Quanto à visualidade, percebemos que o discurso do recurso visual como ideal para os surdos está longe de se tornar absoluto, um domínio científico (FOUCAULT, 2003), devido às incertezas e limites próprios das teorias e práticas.

Lucila Vales, professora surda, constatou a emergência de CL e sinais para a disciplina de Artes (VALES, 2008): Artista, Monocromia, entre outros. Assim, podemos observar que não só em Matemática, mas também em outras áreas de conhecimento, é eminente a criação de sinais, assim como é emergente a difusão desses sinais para a Educação.

Notas

1 O artigo 2º, inciso II da Lei n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, define barreira como "qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança das pessoas" (Brasil, 2000). Tais barreiras podem ser arquitetônicas, urbanísticas, de transportes e de comunicação.
2 Placa de plástico com diversos furos e relevos em Braille. O kit Multiplano é composto por duas placas: uma retangular e outra circular. O dispositivo conta com elásticos, pinos, hastes e outros componentes, usados para ensinar conceitos matemáticos para alunos de todos os níveis de ensino: fundamental, médio e superior. Desenvolvido pelo professor Rubens Ferronato (FERRONATO, 2008) para ensinar alunos cegos, foi aplicado por Arnoldo Junior (2010) com alunos surdos. O Multiplano é uma marca registrada, mas, por questões estéticas, o símbolo® não será usado ao longo do trabalho.
3 Em seu livro A verdade a as formas jurídicas, Michel Foucault explica que o termo Erfindung (invenção) é usado por Nietzsche para referir-se a algo que não possui uma origem, mas que é inventado de acordo com sua necessidade. "Nietzsche afirma que, em um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar do universo, animais inteligentes inventaram o conhecimento" (FOUCAULT, 2002, p. 14). Nesse sentido, as práticas pedagógicas, os sujeitos, as identidades podem ser tomadas como invenções.
4 Imperativo é uma noção kantiana que se refere a algo bom e necessário para todos.
5 Em 1880 foi realizado o Congresso de Milão, famoso na história da educação de surdos por ter sido um momento em que, reunidos, cerca de cem diretores dos institutos de surdos existentes em vários países da Europa, nos quais os surdos desenvolviam e usavam sinais para se comunicar, decidiram pela proibição dos sinais e a favor do oralismo, ou seja, pelo uso exclusivo da oralidade na educação dos surdos. O Brasil, seguindo a tendência mundial, adotou o oralismo em 1911 para educar surdos (GOLDFELD, 2002).
6 Espaço que delimita a sinalização, localizado à frente do sinalizante (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001a). É isso que diferencia o classificador de mímica. A mímica envolve o emprego de outras partes do corpo como os pés, por exemplo. Os classificadores atendem as regras gramaticais da Libras.
7 Transposição sígnica consiste no uso de um recurso sígnico, como materiais concretos para, a partir deles, obter outros signos (SANTAELLA, 2007) que podem ser inclusive os linguísticos.
8 Os itens lexicais da Libras são escritos em letras maiúsculas. Quando se tratarem de tradução da L1 para L2 devem ser escritos entre aspas e em letras minúsculas (FELIPE, 2009). Neste caso, o sinal CIRCULO refere-se à palavra portuguesa "círculo".
9 Para manter o anonimato dos sujeitos e instituição na qual a pesquisa foi realizada, utilizamos duas letras maiúsculas, registrando a primeira e última letra do primeiro nome (cf. procedimento adotado na dissertação de mestrado por Arnoldo Junior, 2010).
10 Abreviada por UA, consiste num conjunto de atividades escolhidas pelo professor para trabalhar um determinado tema em sala de aula e baseia-se no princípio do educar pela pesquisa (DEMO, 1998; MORAES, GALIAZZI; RAMOS, 2004; RAMOS, 2004). Proposta pedagógica usada de forma alternativa ao currículo escolar tradicional, que permite ao professor trabalhar com flexibilidade, desvinculado de planos de aulas lineares ou grades curriculares que não são passíveis de se cumprir. A UA em geometria foi desenvolvida entre os meses de maio a julho de 2008. Abrangeu a noção de ponto, reta, plano, ângulo, o reconhecimento de figuras planas pela sua aparência global e o estudo da área do quadrado e do retângulo. A análise da UA ocorreu entre março de 2008 a julho de 2010.
11 "Jeito de se apresentar ou ser apresentado, um modo de estar no mundo relacionado com a condição de não aprendente" (ARNOLD, 2006, p. 58). No campo pedagógico, sujeitos em estado de corrigibilidade são aqueles que ficam abaixo ou próximo da média escolar. O desvio ocorre em função de problemas neurológicos ou cognitivos como, por exemplo, as dificuldades de aprendizagem - DA. Os desvios são materializados em pareceres pedagógicos. Os mais graves acabam por encaminhar alunos para serviços de reforço ou apoio especializados, na expectativa de normalizá-los (ARNOLD, 2006).

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