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Uéslei Paterno
Uéslei Paterno
Professor
A Política Lingüística da Rede Estadual de Ensino em Santa Catarina em Relação à Educação de Surdos
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Publicado em 2007
Universidade Federal de Santa Catarina
Uéslei Paterno
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Resumo

O Estado de Santa Catarina implantou uma nova política lingüística em relação à educação das pessoas surdas. Na anterior política os surdos eram ensinados a partir de uma perspectiva monolíngüe do português tanto na forma oral quanto escrita. Essa perspectiva educacional era embasada a partir de uma visão clínica da surdez. A nova política lingüística adota a perspectiva cultural do povo surdo e um ensino bilíngüe com libras e português dentro da rede estadual de educação. Para a implantação desta política lingüística houve um primeiro momento de planificação com o estudo dos problemas e dificuldades que os portadores de necessidade especial apresentavam nesta rede de ensino. A partir dos resultados obtidos dessa pesquisa, dos novos estudos sobre as línguas de sinais e sobre os surdos, que deram o embasamento teórico para essa propostas, e pelo movimento e luta da comunidade surda, planejou-se uma nova política de educação. A nova política do Estado de Santa Catarina prevê turmas em libras para as séries iniciais do ensino fundamental e a atuação de um intérprete de libras/português para as séries finais e para o ensino médio. O português é ensinado com segunda língua na modalidade escrita. Entretanto a coexistências de duas línguas no mesmo espaço não é pacífica, havendo uma zona de conflito. Para analisar esta zona de conflito entre a libras e o português dentro da escola estudou-se a atitude lingüística dos professores e funcionários dentro do espaço escolar e o status lingüístico da libras. Os resultados obtidos foram que os professores embora apresentem uma tendência de reação positiva em relação à libras e ao educando surdo ainda persistem informações equivocadas sobre ambos que podem comprometer o processo de ensino e aprendizado. Também verificou-se que aparentemente o status lingüístico da libras está aumentando, pois ela passou de uma circulação restrita entre os pares surdos para estar circulando em outros espaços, com uma projeção futura de ampliação desses espaços. Todavia o português se apresenta como uma língua de prestígio maior do que a libras. Para a atual política fica o desafio de desenvolver ações que busquem sanar alguns dos problemas encontrados, como a não capacitação do corpo docente como um todo, os preconceitos advindos de falta de informação e a desigualdade de forças entre a libras e o português.

O Estudo

Neste presente trabalho procuro analisar a nova política lingüística em relação à língua brasileira de sinais, libras, que foi implantada na rede estadual de ensino do Estado de Santa Catarina.

Quando se consulta a bibliografia referente sobre políticas lingüísticas produzida por Perret (2001), Appel e Muysken (1996) e Calvet (1997) esses autores apresentam várias ferramentas que possibilita uma análise para o planejamento, implantação e avaliação de uma política lingüística.

Entre as ferramentas disponíveis, neste trabalho selecionei duas delas, o estudo do status lingüístico da libras, focando o Estado de Santa Catarina e a análise das atitudes lingüísticas dos professores e funcionários das escolas pólo. A primeira ferramenta permite o mapeamento dos locais onde a libras circula e permite verificar se há uma expansão do uso da libras. A segunda ferramenta, a análise da atitude lingüística, possibilita identificar se há algum preconceito e/ ou resistência em relação ao uso da libras na escola e em relação a presença da pessoa surda pelos profissionais destas. Outro motivo para a seleção destas duas ferramentas foi que o status lingüístico de uma língua influi nas atitudes lingüísticas (APPEL E MUYSKEN, 1996, p. 34 – 35).

Esta análise pode fornecer dados para uma planificação que vise diminuir o preconceito e/ou resistência existente para que a nova política lingüística continue a ser implantada e efetivada.

Assim, este trabalho tem como objetivo geral:

  1. A análise da política lingüística em relação a libras implantada na rede estadual de ensino de Santa Catarina.

Os objetivos específicos são:

  1. Analisar o status lingüístico da libras;
  2. Verificar a atitude lingüística dos professores e funcionários das escolas pólo do Estado de Santa Catarina;
  3. Verificar se a política lingüística implantada contribui com a elevação do status lingüístico da libras e se proporciona a alteração da atitude lingüística.

Para realizar este estudo trago uma revisão bibliográfica que embasa a discussão sobre a política lingüística do Estado, nesta há argumentos que corroboram com a necessidade e importância da criação desta política lingüística pelo Estado de Santa Catarina.

Antes de iniciar esta pesquisa ficava me perguntado sobre como se dava a formação do grupo cultural dos surdos, pois a maioria dos surdos são filhos de pais ouvintes e não são destes que aprendem os valores culturais do Povo surdo e nem a libras. Também me inquietava a questão da polaridade entre a visão clínica e a visão cultural sobre os surdos. Essas questões para mim são importantes, pois me auxiliam a delimitar a que grupo cultural estou me referindo.

Com a delimitação do que é o Povo surdo inicio uma discussão sobre os direitos lingüísticos dos surdos. Faço isso através de uma análise da produção de discursos sobre os surdos numa literatura especializada, tendo uma grande expressão em materiais relacionados à educação e às línguas de sinais. Nesses textos encontramos ouvintes escrevendo sobre os surdos e também os textos produzidos por autores surdos.

Ao trazer os estudos dos autores procurei discutir e analisar com o intuito de evidenciar as discussões presentes na literatura especializada e as possíveis influências dessas nas políticas lingüísticas adotadas no Estado de Santa Catarina.

Após essa discussão, procurando lançar uma base para a análise da nova política lingüística no Estado de Santa Catarina, apresento e utilizo duas ferramentas: a análise do status lingüístico da libras e as atitudes lingüísticas dos professores e funcionários das escolas pólo em relação a libras e ao surdo.

Para analisar o status lingüístico foi elaborado um questionário fechado que procura verificar a língua que os surdos estão usando, nos diferentes locais de interação social. A construção desse questionário foi embasada nas considerações feitas por Fishman (1965) e trazidas por Appel e Muysken. Eles trazem:

El ámbito adopta la organización social como base conceptual. Cuando los hablantes usan dos lenguas, es obvio que no usan las dos en todas las circunstancias: en determinadas situaciones emplearán una lengua, y, en otros momentos, la otra. Esta percepción general ha sido analizada por Joshua Fishman en varios artículos, en los que estudiaba a los puertorriqueños de Nueva York, y este trabajo se convirtió en el conocido informe Bilingualism en the Barrio (Fishman et al. 1968a). El punto de partida para Fishman (1965) fue la pregunta: ¿quién habla qué lengua, con quién y cuándo? (Appel e Muysken, 1996 p. 38).

Foi pensando nessa pergunta feita por Fishman, ao elaborar o seu trabalho de pesquisa, que me embasei para a construção do questionário sobre as situações e as línguas usadas nestas situações para obter o status lingüístico da libras. Esse questionário apresenta situações relacionadas à educação, à família, à religião, ao trabalho, aos amigos, às associações e às instituições. Esses locais foram selecionados, pois apresentam uma gradação das situações de interação social, desde as menos formais até as mais formais. Com isso procura-se detectar possíveis especializações funcionais das línguas envolvidas. (Appel e Muysken, 1996 p. 47).

Em conjunto faço uma série de perguntas relacionadas sobre a libras e o português e sobre o ensino da libras. Essas questões têm o objetivo de analisar as percepções dos entrevistados sobre as línguas envolvidas, sobre a proficiência deles nessas línguas, sobre a relação entre eles, as línguas e as interações sociais. A base inicial da formulação destas questões foi o estudo que Quadros (2006) fez sobre a proficiência dos alunos surdos da rede Estadual de Educação de Santa Catarina. Tive conhecimento dessa análise durante a sua execução que objetivava o acompanhamento da implantação da proposta das Escolas Pólo no Estado. Na elaboração destas perguntas acrescentei outras não realizadas pela autora com o intuito de conseguir retirar deles as percepções que eles tinham sobre as línguas dessa análise. Assim, parte das questões possibilita uma comparação com os dados obtidos por Quadros (2006).

O questionário foi aplicado com alguns alunos surdos que estão fazendo o curso de licenciatura em Letras Libras pela UFSC, curso este que é realizado na modalidade à distância e conta, agora em 2007, com 500 alunos distribuídos em nove pólos pelo Brasil. Destes alunos, mais de 450 são surdos e 28 deles colaboraram comigo nesse estudo. Os surdos entrevistados, em sua maioria do pólo da UFSC, eram de Santa Catarina e Paraná, com alguns poucos dos outros Estados. Ao se observar o perfil dos entrevistados, entretanto, nota-se que a educação que eles tiveram na infância é diferente da que os alunos de hoje estão tendo nas Escolas Pólo de Santa Catarina. A princípio, eu tinha visto que as crianças que hoje estão estudando ainda são pequenas, estão cursando o ensino fundamental, principalmente nas séries iniciais. Essas não têm uma grande mobilidade social, o que dificultaria fazer uma análise desse grupo. Assim eu selecionei os alunos do curso de licenciatura em letras libras, pois são surdos adultos. Muitos dos alunos do curso de letras convidados a fazerem essa entrevista já são professores e são líderes nas comunidades surdas de sua região. Eles apresentam uma grande mobilidade social e participam em vários espaços. Alguns estão fazendo a sua segunda graduação e já trabalham na educação. Assim, são pessoas que têm grande influência na formação dos discursos dos surdos e que dialogam com os educadores de surdos dessas comunidades. Todavia a realidade destes surdos provavelmente é diferente da grande maioria das pessoas surdas de Santa Catarina. Dessa forma os dados apresentados não podem ser indiscriminadamente aplicados a todos os surdos, eles representam a realidade do grupo estudado. Mas mesmo assim esses dados são relevantes, pois nos dão um indicativo da circulação da libras, seu status, possibilitando discutir com outros estudos. Além disso o material coletado nos dá indícios para o acompanhamento e avaliação da implantação e continuidade da nova política lingüística que está sendo implantada. Esses questionários, podem ser visualizado no anexo 2.

A outra ferramenta para análise da política lingüística é o estudo sobre a atitude lingüística dos professores e funcionários das escolas pólo em relação a libras e ao surdo. Para realizar o estudo sobre as atitudes lingüísticas foram realizados entrevistas semi-estruturada e um teste de atitude lingüística. O uso destes dois instrumentos se justifica pela dificuldade de conseguir mensurar as atitudes.

Para detectar as atitudes eu e meu orientador sentamos e conversamos sobre as possibilidades existentes, inicialmente planejamos a aplicação de um teste de atitude lingüística, o teste de Lambert. Em conjunto aplicando uma entrevista semi-estruturada, com questões relacionadas à libras, aos surdos e à educação.

O teste de Lambert foi concebido para verificar as atitudes que a pessoa tem sobre outra pessoa através da língua apenas, assim retirando outros estereótipos ligados a aparência física da pessoa. Para esse teste se utiliza gravações da voz, geralmente a leitura de um pequeno texto e é feito questionamentos à pessoa estudada estimulando-a a fazer julgamentos de personalidades, como seria a pessoa a qual ela estava escutando a voz, se ela é bela, é sagaz, é gorda, etc. Esse teste é muito eficiente e traz resultados plausíveis e diretos sobre a atitude das pessoas em relação à língua e ao grupo analisado (LAMBERT & LAMBERT, 1975, p. 108).

A dificuldade da aplicação deste teste está justamente na modalidade da libras, pois, esta sendo uma língua viso-espacial não tem como mostrá-la a uma outra pessoa desvinculando a língua da imagem do sinalizador. Dessa forma o teste teve que sofrer modificações. Conversando com Ronice de Quadros achamos uma proposta interessante para ver as atitudes das pessoas em relação à libras. Existem alguns mitos que fazem parte do senso comum das pessoas na sociedade e que ainda persistem, pois os educadores de surdos e os intérpretes de língua de sinais com relativa freqüência são questionados sobre esses mitos e precisam fazer esclarecimentos aos leigos. Quadros e Karnop (2004) em seu livro descrevem seis mitos e fazem as argumentações lingüísticas que os desmistificam. Esses mitos são:

  1. A língua de sinais seria uma mistura de pantomima e gesticulação concreta, incapaz de expressar conceitos abstratos.
  2. Haveria uma única e universal língua de sinais usada por todas as pessoas surdas.
  3. Haveria uma falha na organização gramática da língua de sinais que seria derivada das línguas de sinais, sendo um pidgin sem estrutura própria, subordinado e inferior às línguas orais.
  4. A língua de sinais seria um sistema de comunicação superficial, com conteúdo restrito, sendo estética, expressiva e lingüisticamente inferior ao sistema de comunicação oral.
  5. As línguas de sinais derivariam da comunicação gestual espontânea dos ouvintes.
  6. as línguas de sinais, por serem organizadas espacialmente, estariam representadas no hemisfério direito do cérebro, uma vez que esse hemisfério é responsável pelo processamento de informação espacial, enquanto que o esquerdo, pela linguagem (QUADROS & KARNOPP, 2004, p. 31-37).

Utilizando destes mitos elaborei um questionário que provocasse respostas que dirigiam a eles, também sobre o educando surdo e sobre a libras para ver as atitudes que as pessoas têm. No teste de Lambert se faz perguntas onde o entrevistado faz juízos sobre a pessoa de quem está escutando a voz. Com essa alteração mostro um vídeo em libras e devido a modalidade não consigo esconder o locutor, entretanto as perguntas são direcionadas em relação à língua de sinais e aos surdos e não sobre a pessoa que está sinalizando. O questionário ficou estruturado da seguinte forma:

  1. Informações gerais sobre o entrevistado;
  2. Leitura de um texto em português e a visualização da tradução desse texto em libras. O texto usado foi o de Daniel 8:20-22. Nesse vídeo em libras o sinalizador estava vestido de terno;
  3. Em seguida eram respondidas as sete primeiras questões;
  4. Via-se um segundo vídeo, onde o sinalizador V.B. faz uma descrição do seu trabalho, montagem de carroceria de ônibus.
  5. Respondiam-se as 15 restantes perguntas, num total de 22.

O questionário do teste de atitude estão no anexo 3.

A outra forma de obtenção de dados foi através de uma entrevista com o objetivo de obter mais elementos sobre a atitude lingüística em conjunto com informações do relacionamento dela com a escola, com a intérprete e com os surdos. Essa etapa foi abordada com uma entrevista semi-estruturada, gravada em fita cassete e posteriormente transcrita.

A transcrição do das entrevistas foi fiel as falas, não se fazendo alteração para o padrão escrito do português culto. Nesta transcrição há as pausas prolongadas com o uso das reticências (...), se mantendo fiel a entrevista falada. Quando eu, enquanto entrevistador, faço inserções durante a fala do entrevistado, esta foi transcrita entre colchetes em caixa alta. Tanto o esboço da entrevista quanto as transcrições estão disponíveis no anexo 4.

Para selecionar os entrevistados, fui a uma escola pólo, a Escola 01, conversei com a direção que liberou minha permanência para estudo na escola. Alguns dos professores que trabalham na educação de surdos já são familiares, pois temos contatos em diversos espaços de formação. Esses professores me apresentaram os outros professores que eu não conhecia. Conversando sobre o meu trabalho na UFSC e sobre a minha pesquisa que tinha por alvo fornecer, posteriormente, elementos que ajudassem na educação de surdos consegui sensibilizar quatro professoras e um funcionário a colaborarem com o estudo por aceitarem fazer a entrevista e/ou o teste. Nem todos se dispuseram a fazer o teste e a entrevista. Tanto a entrevista quanto o teste foram previamente agendados e realizados em horário que os professores e o funcionário tinham disponível e podiam me atender.

Após a aplicação desse teste e a transcrição das entrevistas, não me senti seguro para fazer uma mensuração sobre os dados obtidos, pois havia conseguido aplicar o instrumento para apenas três pessoas, uma vez que eu precisava estar junto para apresentar os vídeos, o que tornava o trabalho muito moroso. Na aplicação dos testes, vi que o vídeo em libras apenas situava a entrevista a qual língua estava me referindo, a libras, e a que tipo de surdo estava falando. Como as perguntas do questionário não estavam pautadas sobre a pessoa, pois se estava vendo a imagem da pessoa que sinalizava, foi possível excluir o vídeo em libras e mesmo assim os entrevistados sabiam de qual surdo se estava falando e de qual língua se estava perguntando. No modelo de teste realizado por Lambert, não se via a pessoa, apenas se ouvia a gravação com a língua e se fazia juízos sobre essa. Devido a modalidade viso-espacial da libras não é possível fazer algo similar. Os filmes apenas situavam a pessoa a que língua que estava me referindo. Entretanto, as pessoas a quem se dirige a entrevista, trabalham diretamente, ou indiretamente, com surdos usuárias da libras, o que tornava a referência do vídeo redundante, pois o vídeo objetivava mostrar a libras para o entrevistado saber de qual língua ele estava sendo questionado, mas como essa língua está presente no seu ambiente de trabalho mesmo sem o vídeo o entrevistado têm a referência quando se lhe pergunta sobre a libras . Em algumas situações a pessoa se constrangia por ter que admitir para mim que não tinha entendido nada do vídeo em libras, principalmente do segundo vídeo onde V. B. fala sobre seu trabalho e a pessoa não tem nenhuma referência em português previamente, igual a que se tem com o primeiro vídeo. Assim elaborei um questionário similar a esse primeiro, retirando o vídeo e acrescentando algumas novas questões referentes ao relacionamento que a pessoa aceitaria a ter com um surdo e sobre a aceitabilidade da ampliação de difusão da libras em meios de comunicação. Esse novo questionário, como não exigia a presença do pesquisador para a visualização dos vídeos, permitiu-me a aplicação dele a um número maior de pessoas. No total treze pessoas de três escolas pólo colaboraram com esse estudo e responderam aos questionários. Três responderam a primeira versão do questionário que apresentava dois vídeos em libras e outras dez responderam a segunda versão onde não havia mais vídeos a serem vistos. Os questionários de 1 a 3 são da Escola 01, que são da primeira versão. Os questionários de 04 a 09 são da Escola 02 e os questionários 10 a 13 são da Escola 03. As escolas 01 e 02 possuem turmas em libras nas séries iniciais do ensino fundamental e surdos em turmas mistas nas outras séries de escolarização. Estas duas escolas também contam com a presença de um professor surdo. A escola 03 não possui turmas em libras e nem professor surdo. Os questionários podem ser encontrados no anexo 3.

A organização deste trabalho foi feita para conduzir o leitor a veja primeiramente os argumentos que evidenciam a necessidade e a importância desta política lingüística implantada na rede estadual de ensino do Estado de Santa Catarina. Para isso no capítulo I faço uma discussão sobre a cultura, a identidade e a língua do Povo surdo. Nessa discussão delimito a que grupo cultural estou me referindo no presente trabalho e mostro os argumentos que Strobel (2007) traz sobre a existência de um Povo surdo. No capítulo II fiz uma revisão bibliográfica sobre as concepções que as pessoas não surdas têm sobre os surdos, mostro a influência da filosofia aristotélica, a visão clínica sobre a pessoa surda e sobre a família ouvinte da pessoa surda. Nesta revisão procuro evidenciar que por muito tempo pessoas não surdas ditam como deve ser a vida e qual língua a pessoa surda deve usar. Em seguida, no capítulo III, trago as falas dos próprios surdos para contrapor o que foi explanado anteriormente. Desta forma procuro mostrar a perspectiva do surdo sobre si e sobre sua língua. Estes três primeiros capítulos têm por objetivo mostrar os surdos enquanto um grupo cultural, enquanto povo, trazendo as concepções que os não surdos tinham/têm sobre eles e a posição dos surdos. Assim busco mostrar a relevância da política lingüística implantada que vai ao encontro com as solicitações dos surdos.

No capítulo IV, entro na discussão sobre política lingüística e alguns elementos que a constitui como a demanda por essa política e a existência de um discurso teórico que embasa teoricamente a proposição desta política. Para fazer um mapeamento da política lingüística, nos dois capítulos seguintes discuto os dados obtidos. No capítulo V, falo sobre bilingüismo e status lingüístico e, no capítulo VI, falo sobre as atitudes lingüísticas. Para finalizar, no capítulo VII, retomo a discussão da política lingüística com as discussões feitas nos capítulos V e VI e analiso as implicações que as informações obtidas têm sobre a política lingüística realizada pelo Estado de Santa Catarina apontando questões que poderiam ser repensadas e replanejadas na política lingüística implantada.

Cultura, Identidade e Língua do Povo Surdo

O conceito de surdez é um conceito clínico e tem como modelo a normalidade ouvinte. A surdez, dentro desse paradigma, é uma classificação “relacionada com a perda média em decibéis na zona da fala” oral (INES, 2005). Nessa classificação, não se vê sujeitos, os indivíduos são apenas rotulados como tendo uma deficiência. Além dessa classificação patologizante, o termo surdo no senso comum abrange uma grande variedade de situações, em sua maioria o que se descreve é a partir de uma normalidade ouvinte, onde esse é o padrão ideal a ser seguido e o surdo é aquele que perdeu algo, que não tem a capacidade de audição.

Através das falas das pessoas, da repetição de que uma pessoa que não escuta “é surda”, “é deficiente”, que seria a descrição de um fato, essa repetição, passa a ter caráter performativo. A repetição dessa proposição faz com que algo se efetive. As pessoas que ouvem, o nós, que tem uma identidade ouvinte, identidade esta, que é criada no encontro com o outro diferente, o outro surdo, atribuem a eles uma identidade estigmatizada “você é surdo”, “você é deficiente auditivo” e, ao ‘nós’ ouvintes, como sendo normais.

Silva fala sobre essa normalização, ele diz:

Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação à quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Paradoxalmente, são as outras identidades que são marcadas como tais. Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado uma identidade étnica ou racial. Num mundo governado pela hegemonia cultural estadunidense, “étnica” é a música ou a comida dos outros países. É a sexualidade homossexual que é “sexualizada”, não a heterossexual. A força homogenizadora da identidade normal é diretamente proporcional à sua invisibilidade. (SILVA, 2000, p. 83).

As pessoas surdas usuárias de uma língua de sinais freqüentemente têm um conceito e um ponto de vista sobre si diferente dos ouvintes sobre a sua situação, elas se vêem como pessoas sinalizantes, usuárias de uma língua de sinais e as pessoas que falam com a boca como falantes, ouvintes. Quando alguém é apresentado a um surdo quase sempre ele pergunta “você é surdo ou ‘fala’?”. No meio acadêmico da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os surdos têm discutido sobre o termo que melhor os designaria em português, pois os termos geralmente usados foram cunhados por ouvintes e os rotulam como pessoas que tem uma perda. Os termos geralmente usados são: “surdo-mudo”, que eles, decididamente, repudiam ; “deficiente auditivo”, que os expõem como pessoas que são incapazes; “surdo”, o termo que é menos agressivo, mas que não os define corretamente, pois ainda pode os estar comparando com uma normalidade ouvinte. Eles discutem, mas não encontraram um termo adequado ainda.

Alguns autores estadunidenses para diferenciar no texto o termo surdo de quando se refere à audiologia de quando se refere a um grupo de pessoas específico, utilizam a diferenciação do termo deaf de Deaf conforme citado por Padden & Humphries, uma diferenciação viável em inglês como segue:

Antes de iniciarmos nossa jornada através da imagem e dos padrões dos significados que constituem as vidas das pessoas surdas, devemos identificar a comunidade de pessoas “surdas” das quais nos referimos. Seguindo uma convenção proposta por James Woodward (1972), usamos a palavra surdo em letras minúsculas quando nos referirmos à condição audiológica de não ouvir, e em letras maiúsculas a palavra Surdo quando nos referirmos a um grupo particular de pessoas surdas que compartilham uma lingua — Língua Americana de Sinais (ASL) [no nosso caso a Língua Brasileira de Sinais (Libras)] — e uma cultura. (PADDEN & HUMPHRIES, 1988 p. 5).

Embora em português não seja usual usar-se desta diferenciação, para o presente estudo o interessante dessa definição é que ela se vale da cultura para definir o grupo de surdos. Esses formando um grupo e compartilhando uma língua irão também desenvolver mecanismos de identificação. Abaixo tento mostrar como se dá a formação de identidade no grupo de surdo e da aculturação desses para poder delimitar melhor a quem se está referindo esse trabalho.

Martins (2004), discutindo sobre a identificação nos surdos, através de uma leitura psicanalítica, faz algumas considerações importantes sobre o tema, vejamos:

Identificar-se e, ou, representar-se a partir dos objetos, condições do narcisismo secundário, torna-se, pelas contingências, um processo extremamente limitado para os surdos que não dispõe de uma língua de sinais. A realidade dos objetos, em nossos pensamentos, é uma realidade de linguagem, ou seja, uma realidade virtual, onde os objetos, uma vez incorporados pela linguagem, constituem-se na medida que estão ausentes enquanto realidade. Os objetos de pensamento são, portanto, diferentes dos objetos do mundo. As possibilidades de identificação passam, necessariamente, pela capacidade de interpretação do outro. Mesmo que o traço seja uma forma, uma forma de olhar, um sorriso, por exemplo, este há de ter uma significação. A significação da incorporação de um traço, mesmo que inconsciente, é a de oferecer ao eu, como constituinte, um objeto de amor, que de externo passa a condição de interno. Se o visual destes traços fosse o resultado da tradução de uma língua oral para uma língua de sinais, as dificuldades seriam de outra ordem e magnitude, pois as línguas de sinais, como sabemos, têm capacidades análogas às línguas orais. Praticamente tudo que se produz numa modalidade pode ser traduzido noutra com as mesmas dificuldades que toda a tradução impõe. Mas, salvo nas famílias onde os pais são surdos e utentes da língua de sinais, o que ocorre, como regra, é, em primeiro lugar, a ausência de uma língua comum, em segundo, conseqüência lógica da primeira, a ausência de tradução. Não existindo duas línguas, praticamente não existirá o que traduzir. (MARTINS, 2004 p. 201-202).

Como conseqüência é preciso, pois, reconhecer a importância e os lugares da linguagem, da língua, dos processos de identificação e de exclusão, para que se entenda como se constituem os sujeitos. As normatizações apressadas e incautas, interditando a língua de sinais, têm contribuído negativamente com a educação dos surdos e agido de forma nefasta sobre estes sujeitos. Isola-os e inibe-se o desenvolvimento pessoal e a circulação social.

Em primeiro lugar está o sujeito, que é efeito da linguagem, suas potencialidades dependem, fundamentalmente, do acesso e aquisição de uma língua que possa ser utilizada como primeira língua. É a partir desta que se pode ter o acesso à cultura e a outras línguas, pois, como diz Eco (1991), “só é possível acender à mensagem quando se conhece o código”. (MARTINS, 2004 p. 205).

As identidades se estabelecem numa relação de oposição entre nós e eles, essa distinção, como em muitas outras, não apresenta uma relação equivalente de poder entre as partes. Uma das partes detém o poder enquanto a outra é inferiorizada. Silva discute sobre esse assunto:

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer “o que somos” significa também dizer “o que não somos”. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre "nós" e "eles". Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder."Nós" e "eles" não são, neste caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes "nós" e "eles" não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por relações de poder. (SILVA, 2000 p. 82).

No contato entre ouvintes e surdos, formam-se dois grupos, “fortemente marcados por relações de poder”, os ouvintes detêm o poder econômico, político e o poder para impor a sua língua oral aos surdos. Há muito tempo os surdos estão à mercê do que os ouvintes acham que seja melhor para eles, sendo que a quase totalidade das decisões foram tomadas sem serem consultados, como é o caso da fatídica decisão em 1880 no Congresso de Milão, onde se decidiu por um método oralista na educação dos surdos (MOURA, 2000 p. 44-49). Muito anterior a isso, na antiga Grécia e Roma os surdos eram considerados incapazes, pois não podiam falar e, ou não tinham nenhum direito, ou, ainda, eram mortos (MOURA, 2000 p. 17).

Wilcox e Wilcox em seu livro discutem sobre o que é cultura surda, eles fazem uma boa exemplificação de como ocorre a aculturação no mundo surdo, vejamos:

Pode-se supor que para os surdos, assim como para todas as pessoas, existem pelo menos dois tipos de pessoas: “nós” e “eles”. As crianças começam a vida assumindo que todos são iguais. As culturas a ensinam a diferenciar-se: algumas pessoas são como nós, mas a maior parte do mundo é diferente. A tarefa da criança, em seu processo de aculturação, é o de descobrir quem “nós” somos e quem “eles” são.
Para a criança surda, a tarefa não é diferente. Em seu livro maravilhoso sobre cultura surda, Deaf in América: Voices from a Culture, Carol Padden e Tom Humphries (1988) contam a história de uma criança que adquire esse senso de “nós” e “eles”. Eles falam de Sam Supalla, que hoje é um educador surdo e professor na Universidade do Arizona. Sam nasceu em uma família de surdos com vários irmãos surdos mais velhos.

“Conforme seus interesses se voltavam para o mundo fora de sua família, ele percebeu uma garota que vivia ao lado e que parecia ser da sua idade. Depois de algumas tentativas de encontro, eles se tornaram amigos. Ela era uma companheira agradável, mas havia o problema da sua “estranheza”. Ele não podia falar com ela da mesma forma que falava com seus irmãos e seus pais. Ela parecia ter uma dificuldade extrema de compreender até mesmo os gestos mais elementares. Após umas poucas tentativas frustrada de conversa, ele desistiu e passou a apontar quando queria ir a algum lugar. Ele ficou curioso sobre essa enfermidade estranha que a amiga tinha, mas uma vez que eles haviam encontrado uma forma de interagir, ele contentou-se em se acomodar às necessidades peculiares da garota. Um dia, Sam, lembra-se claramente, ele finalmente compreendeu que sua amiga era de fato excêntrica. Eles estavam brincando na casa dela, quando de repente sua mãe chegou até eles e começou a mover sua boca animadamente. Como que num passe de mágica, a garota pegou a casinha de bonecas e levou-a para outro lugar. Sam ficou intrigado e voltou para casa para perguntar a sua mãe de que mal, exatamente, a sua amiga vizinha sofria. Sua mãe explicou que ela era OUVI1TE e, por esse motivo, não sabia sinalizar; ao invés disso, ela e sua mãe FALAVAM, elas moviam suas bocas para se comunicarem. Sam então perguntou se essa garota e sua família eram as únicas pessoas “desse tipo”. Sua mãe explicou que não, na verdade, quase todos eram como seus vizinhos. Sua própria família que era incomum. Foi um momento memorável para Sam. Ele lembra-se de ter pensado como era esquisita a garota ao lado e, se ela era OUVINTE, como as pessoas OUVINTES deviam ser esquisitas também (PADDE1 & HUMPHRIES, 1988 p.15-6)”.

Conforme crianças surdas como Sam vão se tornando adultas, elas aprendem valores culturais surdos de outros membros da comunidade. (WILCOX & WILCOX, 2005 p. 89-91 – grifos em caixa alta é dos autores, o texto em itálico é para diferenciar a fala dos Wilcox de Padden e Humphries).

Uma outra história contada por Padden e Humphries, ao discutirem como crianças surdas se aculturam e se descobrem enquanto surdas pertencentes a um grupo, é a história do surdo Howard:

Podemos ver crianças aprendendo a respeito das mentes dos outros em histórias que os surdos adultos contam sobre suas infâncias. Um amigo surdo nosso, Howard, um importante membro de sua comunidade, fez um comentário revelador para uma audiência mista de pessoas ouvintes e pessoas surdas. Todos os membros de sua família — seus pais e irmão, como também suas tias e tios — são surdos. Ele disse à audiência que ele havia passado sua precoce infância entre pessoas surdas mas que quando ele chegou aos seis anos de idade seu mundo havia mudado: seus pais o haviam levado a uma escola para crianças surdas . “Você acreditaria”, ele disse, pausando sabiamente pelo efeito, “Eu nunca soube que eu era surdo até eu entrar para a escola?”.
O comentário de Howard causou intencionalmente uma agitação na audiência, mas estava claro para nós que algumas pessoas pensariam que isto significava que Howard tornou-se consciente de sua deficiência audiológica primeiramente quando ele chegou aos seis — que nunca havia aceito antes que ele não podia ouvir os sons. Mas isto não era o que ele quis dizer, absolutamente. Howard certamente sabia o que “surdo” significava. O sinal SURDO era parte de seu vocabulário diário; ele referia-se às pessoas SURDAS sempre quando ele precisava falar sobre sua família e seus amigos, muito da mesma forma que Vicki mencionou que Michael era SURDO. Quando Howard chegou à escola, ele descobriu que os professores usavam o mesmo sinal que ele usava para si próprio em casa, SURDO. Mas não levou muito tempo para ele detectar uma sutil diferença nas maneiras que eles usavam o sinal.
A criança usa SURDO para significar “nós”, porém ela encontra outras crianças as quais “surdo” significa “eles, não como nós”. Ela acha que SURDO significa “amigos que se comportam como se espera”, mas para os outros significa “uma condição notável”. Em casa ele tem o ato de sinalizar como garantia de uma atividade que dificilmente tem seu valor notado, porém ele aprenderá na escola que isto é algo para se falar a respeito e comentar. Dependendo de qual escola a criança freqüenta, ela pode ser proibida de usar a língua de sinais na presença de seus professores. Ela então terá de aprender como realizar suas atividades familiares dentro de novos limites, aprender novos contextos sociais para a sua linguagem. As habilidades ela aprendeu em casa, tais como contar histórias com detalhes sobre pessoas e acontecimentos, e não são adequadas para serem recompensadas por professores que não conhecem a linguagem. A linguagem dela será subordinada à outras atividades consideradas mais importantes, aprender notavelmente “usar sua audição” e “falar”. (PADDEM & HUMPHRIES, 1988).

As crianças vão aprendendo quem é o “nós” e quem são “eles” conforme vão entrando em contato com as pessoas e interagindo com elas, a descoberta do outro não é tranqüila, há um estranhamento exemplificados pelas narrativas de Sam e Howard.

As narrativas acima exemplificam como o processo da aculturação, que ocorre com todos nós, se realiza com os surdos filhos de pais surdos. Entretanto para os surdos que são filhos de pais ouvintes esse processo é mais complicado de ser descrito, pois pode haver diferentes vieses dependendo da orientação que os pais tiveram sobre como educar o seu filho. Também se deve ter em mente que adultos que perderam a audição ou crianças que ficaram surdas após a aquisição de uma língua já tiveram um longo período de aculturação com seus pares ouvintes, por isso a situação desses é diferente dos surdos congênitos ou surdos desde pequenos, antes da aquisição de uma língua oral.

Padden e Humphries trazem novamente a história de um surdo, Tony, sobre sua infância e de como ele se via enquanto surdo. Tony ficou surdo aos seis anos de idade devido a um tratamento médico. Tony conta:

Eu não lembro de nenhum momento quando pensei comigo, “eu não consigo ouvir”.
Foi preferível que isto foi vagarosamente assimilando uma combinação de coisas diferentes. Estive doente por um longo tempo. Eu lembro as repetidas visitas ao médico, até que finalmente, de alguma maneira, eu senti uma permanência ao que tinha estado acontecendo a mim. Eu lembro de meus pais se preocupando sobre mim, e em algum momento todos pareciam preocupados com minha doença. E foi naquele momento que me senti mudado, e quando eu pensava como eu havia mudado, meu pensamento era: “eu sou o único deste jeito”.
Eu tinha uma segunda prima que era surda, mas decidi que eu não era como ela de jeito algum. Ela usava suas mãos, ela usava os sinais. Eu não era como ela — Eu falei e eu era como qualquer outro, exceto que eu não podia ouvir. Não havia ninguém mais em minha cidade natal que fosse surdo, exceto eu imagino, esta mulher rua abaixo que chamamos de “muda”, que viveu com sua irmã. Ela não falava, e ela e sua irmã tinham sua particular língua de sinais caseira que usavam entre si. Eu não era nenhuma delas. (PADDEN & HUMPHRIES, 1988)

Para Tony, ser surdo significava estar longe de sua família e amigos, ele era “surdo” e teve uma “doença”. Em contraste, Sam, a criança surda de pais surdos, pensava que ser “surdo”, não era uma conseqüência de algum acontecimento, mas simplesmente uma atribuição. Para Sam, a palavra “surdo” não era um termo usado para referir-se a ele pessoalmente, mas apenas uma maneira normal de descrever a si mesmo e a todos que ele conhecia.

Ao se referir a um grupo cultural surdo, pode-se analisar aspectos desse grupo que possibilita em falar-se em um Povo surdo. Nesta perspectiva, os surdos deixam de apenas comporem alguns grupos isolados, eles passam a compor uma unidade, um Povo. Strobel (2007)5 discute sobre o que é o Povo surdo e de como ele é composto, em suas palavras.

Se o conceito de ‘povo’ é :

(...) conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes, história e tradições comuns. (...) conjunto de pessoas que vivem em comunidade num determinado território; nação, sociedade (...) conjunto de indivíduos de uma mesma ou de várias nacionalidades, agrupados num mesmo Estado. (...) conjuntos de pessoas que não habitam o mesmo país, mas que estão ligadas por uma origem, sua religião ou qualquer outro laço. (dicionário Houaiss 2005)

Então quando dizemos ‘povo surdo’, o mesmo seria o grupo de sujeitos surdos que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por uma origem, por um código ético de formação visual, independente do grau de evolução lingüística, tais como a língua de sinais, a cultura surda e quaisquer outros laços.
Se uma língua transborda de uma cultura, é uma maneira de organizar uma realidade, um grupo que fala a mesma língua tem tendência de a ter elementos em comum que tem a ver com a própria realidade (ALISEDO, 1994, p.17). A cultura surda e a língua de sinais seriam uma das referências do povo surdo. (STROBEL, 2007; o texto em itálico é para diferenciar a citação de Houaiss, 2005, da fala da autora).

Com essa consideração pode-se dizer que ao falar-se dos surdos nesse texto, não se está, simplesmente, tratando-se de um indivíduo, de um pequeno grupo isolado, mas de um povo. Povo este que possui uma história constituída, que desenvolve uma cultura e onde as pessoas surdas se identificam umas com as outras e como pertencentes a esse povo.

Com a exposição acima espero ter conseguido explicar a que se refere o termo “surdo” e a que grupo de pessoas eu estou me referindo. Também tentei mostrar que o ponto de vista que os ouvintes têm sobre os surdos e o ponto de vista que os surdos têm sobre si mesmos são diferentes e que deveríamos levar isto em conta quando lemos uma narrativa de um surdo, para percebermos de que local ele está falando.

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