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A Educação de Surdos na Perspectiva da Educação Bilingue: Uma análise da Lei de LIBRAS à luz da politica nacional
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Publicado em 2014
XIII Congresso Internacional XIX Seminário Nacional do INES, Rio de Janeiro
Juliana da Silva Bezerra
Simone Ferreira da Silva Domingues
Resumo

As discussões e os resultados parciais apresentados neste trabalho são parte de um processo de pesquisa em nível de mestrado na área das Politicas Publicas, com foco na educação de alunos Surdos. Nesse sentido os resultados aqui expostos objetivaram refletir sobre o acesso da pessoa com surdez a educação de qualidade, tecendo uma analise da Lei de LIBRAS 10.436/2002 à luz da Politica Nacional. Metodologicamente partimos de um breve levantamento referente às principais legislações que promovem o acesso dos Surdos à educação, em especial foi analisado a Declaração de Salamanca, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 e o Documento “Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”. Foi realizado um paralelo entre os discursos presentes nestas legislações e as concepções contidas na Lei de LIBRAS e seu Decreto regulamentador 5626/2005. Os resultados demonstraram que a concepção de surdez que pressupõe a Política Nacional esta pautada na anormalidade, e ainda contempla uma identidade ouvintista, que desconsidera o multiculturalismo Surdo. Por vezes a Politica Nacional diverge das concepções presentes na Lei de LIBRAS e seu decreto regulamentador, e assim os anseios da comunidade Surda, não são corroborados no cotidiano escolar. A escola que o sistema organiza e a escola que os Surdos desejam são conflitantes em sua gênese. Em suma, compreende-se que “Escola Bilíngue” e “Escola Especial" são conflitantes em sua organização política. Os Surdos não querem uma “Escola Especial” e sim uma Escola Bilíngue conforme determina a Lei de LIBRAS e o Decreto 5626/2005.

A Lei 10.436/2002, conhecida também como Lei de LIBRAS, reconhece como meio legal de comunicação a Língua Brasileira de Sinais e outros recursos de expressão a ela associados como a segunda língua oficial de nosso país. Seu decreto regulamentador 5626/2005 aponta diretrizes para a oficialização dessa lei garantindo o uso e difusão da referida língua em âmbitos educativos, sociais e de saúde. Determina ainda que a LIBRAS deverá constituir-se como disciplina obrigatória nos curso de formação de professores e ainda efetiva o direito de acesso dos Surdos a uma educação bilíngue de qualidade.

Assim, esta lei, juntamente com seu decreto regulamentador, tece o pano de fundo dessa pesquisa. Contudo, temos o objetivo de discutir esta legislação à luz da Política Nacional de Educação, dialogando-a com outras legislações nacionais. Compreendemos que isso auxiliará na compreensão dos resultados obtidos.

Compondo o cenário da política nacional, gostaríamos de iniciar nossa discussão tendo em vista o documento denominado “Declaração de Salamanca”. Ele foi promulgado na Espanha em Junho de 1994 e contou com a presença de 88 governos e 25 organizações internacionais, incluindo o Brasil que hoje é signatário deste documento. Ali foram congregados governos com programas de cooperação internacional, agências financiadoras como UNESCO, UNICEF, UNDP e o Banco Mundial.

O documento deixa claro que agregar todos os alunos (principalmente aqueles com necessidades especiais) em um ambiente comum, ou seja, na escola regular, é mais viável em relação ao custo benefício quando diz:

A experiência, principalmente em países em desenvolvimento, indica que o alto custo de escolas especiais significa na prática, que apenas uma pequena minoria de alunos, em geral uma elite urbana, se beneficia delas (...). Além disso, a experiência sugere que escolas inclusivas, servindo a todas as crianças numa comunidade são mais bem sucedidas em atrair apoio da comunidade e em achar modos imaginativos e inovadores de uso dos limitados recursos que sejam disponíveis. (BRASIL, 1994, p.6)

Chama-nos a atenção que a concepção de base esteja atrelada ao custo-benefício e não ao processo de ensino- aprendizagem de forma significativa. Outro ponto importante, é que o próprio documento aponta que será requerido das escolas formas imaginativas e inovadoras de driblar os limitados recursos disponíveis. É curioso pensar em formas “imaginativas” de acesso qualitativo de educação, pois os professores que estão na atuação docente cotidiana necessitam de recursos concretos e não imaginativos. Os alunos matriculados carecem com urgência de ações que lhes garantam permanência e sucesso escolar de forma efetiva.

Embora cercado por esse contexto, acreditamos que este documento traz uma nova concepção para a educação quando sustenta a necessidade de qualidade na oferta dos serviços prestados, conforme podemos ler:

Escolas inclusivas devem reconhecer e responder às necessidades diversas de seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e assegurando uma educação de qualidade a todos através de um currículo apropriado, arranjos organizacionais, estratégias de ensino, uso de recurso e parceria com as comunidades. (BRASIL, 1994, p.5, grifo nosso)

Nesse sentido, esta pesquisa concebe a educação inclusiva como um movimento mundial intencional de educação de qualidade para todos, sem distinção, e busca avaliar a atual Educação ofertada aos Surdos sob o prisma dessa qualidade.

De forma fortuita em nosso país, apoiado na Declaração de Salamanca, a inclusão é entendida como a necessidade de matrícula compulsória de todos os alunos na escola regular, ou seja, “inclusão total”. Porém, o próprio documento aponta que existem casos específicos em que os alunos poderão ser atendidos fora do contexto da escola regular.

O encaminhamento de crianças a escolas especiais ou a classes especiais ou a sessões especiais dentro da escola em caráter permanente deveriam constituir exceções, a ser recomendado somente naqueles casos infrequentes onde fique claramente demonstrado que a educação na classe regular seja incapaz de atender às necessidades educacionais ou sociais da criança ou quando sejam requisitados em nome do bem-estar da criança ou de outras crianças. (BRASIL, 1994, p.5)

Ainda dentro deste contexto, aponta que um dos casos para atendimento fora do sistema de ensino comum é a situação dos alunos Surdos.

Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signos como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso à educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares. (BRASIL, 1994, p.7)

Ou seja, cada país em sua política de atendimento deveria ajustar as determinações da Declaração de Salamanca conforme a realidade local e real. No Brasil a Lei de Diretrizes e Bases – LDB 9394/1996 aponta em seu capítulo quinto considerar esta hipótese quando diz:

Art. 58º: O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. (BRASIL, 1996)

Portanto, conforme a declaração de Salamanca em que o Brasil é signatário, e ainda segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, não é inconstitucional ou ato discriminatório uma política de atendimento bilíngue em salas/escolas apenas de Surdos, pelo contrário, esse tipo de política viabilizaria uma oferta educacional de qualidade considerando as especificidades linguísticas destes sujeitos.

A LDBEN 9394/1996, aponta que é dever do Estado ”assegurar acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um” (Artigo 4º inciso V). O termo “segundo a capacidade de cada um” atribui uma marca ao educando de responsabilização por seu sucesso ou fracasso escolar, porém entendemos que estes são mecanismos resultantes das oportunidades e não intrínsecos apenas ao ser humano. Nesse sentido, Surdos que evadem do sistema escolar ou não acompanham os conteúdos não podem ser responsabilizados ou rotulados como “incapacitados”. Seu sucesso escolar depende das condições ofertadas pelo processo de ensino-aprendizagem e ainda da mediação realizada entre ele o conhecimento.

Nesse contexto, no ano de 2007, atendendo as determinações da Declaração de Salamanca e ainda contemplando a LDBEN 9394/1996, é publicado em nosso país o seguinte documento: “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”, propondo o delineamento de ações educativas que visem superar a discriminação e exclusão.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva tem como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas escolas regulares, orientando os sistemas de ensino para promover respostas às necessidades educacionais especiais. (BRASIL, 2007, p. 8)

(...)

O movimento mundial pela educação inclusiva é uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação. A educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola. (BRASIL, 2007, p. 01)

Ao lermos os objetivos primários desta Política, temos a sensação que esta buscará garantir uma oferta educacional de qualidade a todos sem distinção, não obstante, ao analisarmos integralmente este documento, podemos perceber que ele difere das aspirações de documentos como a Declaração de Salamanca, LDBEN 9396/1996 e ainda pressupõe objetivos para a Educação de Surdos que ferem as determinações da Lei de LIBRAS 10.436/2002 e seu Decreto regulamentador 5626/2005, como veremos a seguir:

O Decreto 5626/2005 promulga o direito do Surdo a uma educação em sua língua, ou seja, em Língua de Sinais, tendo o Português como segunda língua na modalidade escrita. Educação bilíngue vai além da questão puramente linguística, ela abrange questões sociais, culturais e de identidade que são consideradas em todo o processo, conforme aponta Quadros:

Bilinguismo na educação de surdos representa questões políticas, sociais e culturais. Nesse sentido, a educação de surdos em uma perspectiva bilíngue deve ter um currículo organizado em uma perspectiva visual espacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua da criança, a língua de sinais brasileira. É a proposição da inversão, assim está-se reconhecendo a diferença. A língua passa a ser, então, o instrumento que traduz todas as relações e intenções do processo que se concretiza através das interações sociais. (QUADRO, 2005, p. 7)

Não obstante, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva preconiza inclusão, porém exclui veladamente os sujeitos dessa pesquisa, que são os Surdos, quando aponta:

Para o ingresso dos alunos surdos nas escolas comuns, a educação bilíngue – Língua Portuguesa/Libras desenvolve o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para alunos surdos, os serviços de tradutor/intérprete de Libras e Língua Portuguesa e o ensino da Libras para os demais alunos da escola. O atendimento educacional especializado para esses alunos é ofertado tanto na modalidade oral e escrita quanto na língua de sinais. Devido à diferença linguística, orienta-se que o aluno surdo esteja com outros surdos em turmas comuns na escola regular. (BRASIL, 2007, p. 11)

Esta Política vigente reduz a Educação Bilíngue a um espaço onde acontecerá livremente o uso de duas línguas, LIBRAS e Português. Dessa forma, desconsidera as especificidades linguísticas dos Surdos e a necessidade de metodologias especificas para o seu processo de ensino e aprendizagem, conforme aponta o Decreto 5626/2005 em seu artigo 14º.

Como podemos ver, educação bilíngue pressupõe mudanças ideológicas e conceituais no currículo e atuação escolar, não simplesmente inclusão de um tradutor intérprete de LIBRAS na sala comum ou apenas a circulação livre de duas línguas em um mesmo ambiente sem considerar os aspectos sociais e culturais dos sujeitos envolvidos nesse processo.

O processo de ensino e aprendizagem é dialético e não acontecerá se professor e aluno não falarem a mesma língua. Onde estará a dialeticidade da educação em manter em um mesmo espaço pessoas que não falam a mesma língua? Ou ainda como o Surdo aprenderá se a didática e metodologia empregada é pensada em pessoas ouvintes? Apenas a presença de um intérprete não modificará os pressupostos metodológicos do professor.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva ainda é contrária ao Decreto 5626/2005 quando pressupõe que a língua oral poderá ser trabalhada no atendimento educacional especializado, pois, de acordo com o decreto que regulamenta a Lei de LIBRAS, esta é uma responsabilidade da saúde e não da educação, conforme aponta o artigo 16º:

A modalidade oral da Língua Portuguesa, na educação básica, deve ser ofertada aos alunos surdos ou com deficiência auditiva, preferencialmente em turno distinto ao da escolarização, por meio de ações integradas entre as áreas da saúde e da educação, resguardado o direito de opção da família ou do próprio aluno por essa modalidade. . (BRASIL, 2005, p. 5)

As inconsistências presentes entre esta Política e a Lei de LIBRAS foram percebidas também pela autora Ana Claudia Balieiro Lodi que declara:

Embora a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva tenha sido tecida por meio de um discurso que busca uma aproximação com os princípios de educação bilíngue para surdos constitutivos do Decreto 5626/2005 (aceitação da LIBRAS nos espaços escolares e do ensino do português como segunda língua), a analise dos enunciados que a fundamentam, postos em diálogo com as propostas defendidas, mostra inconsistência e um olhar para a educação de surdos que não se desloca do plano discursivo, na medida em que reproduz, na proposição das práticas inclusivas, o passado que excluiu as pessoas surdas dos processos educacionais/sociais. (LODI, 2013, p. 8, grifo nosso)

A escola que o sistema organiza e a escola que os Surdos desejam são conflitantes, pois a Política Nacional de Educação Especial não considera os fatores determinantes no multiculturalismo Surdo. Ao considerar o Surdo como um sujeito deficiente, enquadra-o em um sistema de educação especial que não favorece sua identidade e língua. Ser Surdo é diferente de ser deficiente auditivo, os Surdos desejam ser vistos pelo prisma da diferença linguística e não da anormalidade.

Escola Biligue e Escola Especial são conflitantes em sua organização política. Os Surdos não querem uma “Escola Especial” e sim uma Escola Bilíngue conforme delibera a Lei de LIBRAS e seu decreto regulamentador.

Entendemos que a concepção de surdez que pressupõe a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva esta pautada na anormalidade, e ainda contempla uma identidade ouvintista que desconsidera o multiculturalismo Surdo.

Declaramos que não compactuamos em conceber que muitos alunos Surdos estejam em escolas comuns onde seus direitos a uma educação bilíngue não sejam respeitados ou ainda em saber que muitos interromperam seus estudos por não encontrarem escolas de ensino médio que respeite sua especificidade e língua.

Concluímos aqui pedindo licença acadêmica (se é que ela existe) para utilizarmos as palavras da pesquisadora Quadros (2005), “A escola que os Surdos querem e a escola que o sistema ‘permite’, estão longe de serem convergentes”. E ainda: “É necessário uma aproximação entre o ‘querer’ e o fazer na educação”.

Bibliografia

BRASIL. Declaração de Salamanca: sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais. Brasília: CORDE, 1994. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. Acesso em: 16 Jan. 2014

______. MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9.394/96. Brasília, DF: MEC, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 16 Jan. 2014.

_______. Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Diário Oficial [da Republica Federativa do Brasil], Brasília, DF, 25 abr. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10436.htm>. Acesso em: 23 jan. 2012.

______. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm>. Acesso em: 12 abr. 2012.

____________. Ministério da Educação. Politica Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008). Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial nº 555, de 5 de junho de 2007, prorrogada pela Portaria nº 948, de 09 de outubro de 2007.

QUADROS, R. M. A escola que os Surdos querem e a escola que o sistema “permite” criar: estudo de caso do Estado de Santa Catarina. Trabalho apresentado na 25ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Caxambu, 2008. Disponível em: http://28reuniao.anped.org.br/textos/gt15/gt151544int.pdf. Acesso em: 10 Jun. 2013.

LODI, A.C.B. Educação bilíngue para surdos e inclusão segundo a Política Nacional de Educação Especial e o Decreto nº 5.626/05. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, Vol. 39 nº1, p. 1-11, 2013.

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