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Experiências Internacionais em Inclusão de Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais
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Publicado em 2006
In: Eduardo José Manzini. (Org.). Inclusão e Acessibilidade. 1ed.Marília: UNESP, v. 1, p. 1-16
Mônica Pereira dos Santos
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Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar as tendências mais recentes relativas à inclusão de pessoas em situação de deficiência em dois países: Índia e África do Sul. Iniciarei com uma breve descrição sobre aspectos geopolíticos de cada país. Em seguida, apresentarei a estrutura do sistema educacional de cada um deles, situando a educação especial nestes contextos. Na seqüência, pretendo mostrar os movimentos em direção à inclusão a partir da legislação sobre o assunto, centralizando o interesse nos documentos mais recentes de cada país. Até aqui, tratarei cada país em separado.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar as tendências mais recentes relativas à inclusão de pessoas em situação de deficiência em dois países: Índia e África do Sul. Iniciarei com uma breve descrição sobre aspectos geopolíticos de cada país. Em seguida, apresentarei a estrutura do sistema educacional de cada um deles, situando a educação especial nestes contextos. Na seqüência, pretendo mostrar os movimentos em direção à inclusão a partir da legislação sobre o assunto, centralizando o interesse nos documentos mais recentes de cada país. Até aqui, tratarei cada país em separado.

Pretendo, a partir de então, apresentar algumas questões comuns relativas a sucessos e insucessos quanto à inclusão educacional de pessoas em situação de deficiência nos países selecionados, do ponto de vista das práticas educacionais e conforme pesquisas e relatórios oficiais as apresentam. Ao longo do artigo, na medida do possível, entrelaçarei a realidade dos países mencionados com as de outros dois países: Alemanha, Escócia e Inglaterra. A finalidade desta apresentação reside no argumento de que, ao conhecermos outras realidades, podemos utilizá-las como fontes de inspiração para pensar nossa própria realidade e transformá-la, ou não, respeitando as especificidades de nosso próprio contexto.

Índia

Aspectos Geopolíticos

De acordo com a sua Constituição, a Índia, cuja independência foi conquistada somente em 1947, é uma República federativa soberana, socialista e democrática, composta por 28 estados e 7 territórios nacionais. O governo central tem grande ascensão sobre os estaduais e locais e procura seguir o padrão do parlamento britânico. Há um presidente, mas que funciona mais como um chefe de estado do que de governo. Assim, o poder nacional executivo real centraliza-se no Gabinete Ministerial ou Conselho de Ministros, liderado pelo Primeiro-Ministro, que por sua vez é indicado pelo Presidente (eleito por 5 anos não renováveis através de um Colégio Eleitoral Especial) em acordo com legisladores do Partido Político ou da Aliança política que detenha a maioria no Parlamento. O Parlamento indiano é constituído por duas Câmaras: uma “superior”, denominada Conselho dos Estados, e outra, abaixo em hierarquia, denominada Casa do Povo, cuja responsabilidade é do Gabinete Ministerial.

Em termos populacionais, a Índia conta hoje com 1.027.015.247 habitantes (dados do Censo 2001), o que a torna o segundo país mais populoso do mundo em uma extensão territorial considerada como a sétima maior do mundo.

Pode-se dizer, sem susto, que a Índia constitui um verdadeiro calidoscópio de herança cultural, com suas diferentes castas, credos, cores e cerca de 1.700 línguas e dialetos. Um de seus principais lemas atuais, em termos de propaganda, tem sido “Unidade na Diversidade”.
Em maio de 2004, com a indicação do atual Primeiro-Ministro, o país lançou o Programa Mínimo de Governo da Índia, e formou uma União Aliada Progressiva, com a qual se comprometeu, publicamente, com seis princípios:

  • Preservar, proteger e promover a harmonia social e implementar a lei sem medo ou favoritismo para lidar com todos os elementos obscurantistas e fundamentalistas que buscam perturbar a paz e a amabilidade social.
  • Assegurar que a economia cresça pelo menos de 7 a 8% ao ano de modo sustentável ao longo e além de uma década e de modo que gere emprego, de forma que cada família seja provida de uma vida segura e viável.
  • Aumentar o bem-estar de fazendeiros, trabalhadores rurais e trabalhadores, especialmente aqueles que pertençam a setores não organizados e assegurar um futuro seguro para suas famílias em todos os aspectos.
  • Empoderar integralmente as mulheres política, econômica, educacional e legalmente.
  • Prover total igualdade de oportunidades, particularmente na educação e no trabalho, para as castas e tribos atrasadas e minorias religiosas.
  • Liberar as energias criativas dos empreendedores, empresários, cientistas, engenheiros e todos os outros profissionais e forças produtivas da sociedade.

De fato, no que tange à Educação, tais princípios parecem estar congruentes com os textos legislativos e relatórios oficiais lançados a partir de então. Vejamos alguns aspectos na próxima seção.

O Sistema Educacional

Existem cerca de 888.000 instituições educacionais na Índia, com cerca de 179 milhões de alunos. A Educação Fundamental é a segunda maior do mundo em número de crianças, com quase 150 milhões (82% da população em idade escolar) de crianças matriculadas e cerca de 3 milhões de professores.
O sistema educacional indiano é de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento de Recursos Humanos. Este, no tocante a assuntos educacionais, subdivide-se em dois principais Departamentos: o Departamento de Educação Fundamental e Alfabetização e o Departamento de Educação Secundária e Superior.

O sistema divide-se nos seguintes níveis de educação: pré-primário, primário, intermediário, secundário e superior 2. O nível pré-primário é composto pelo que chamamos no Brasil de Creches e Pré-escolas, sendo que a segunda tem como proposta desenvolver as habilidades de leitura e escrita. A escola primária engloba crianças de 6 a 11 anos, organizadas por ano (do primeiro ao quinto). A escola intermediária é composta por alunos de onze a quatorze anos, organizados por grupos do sexto ao oitavo ano e a escola secundária abrange jovens de 14 a 17 anos, organizados nas classes do nono ao décimo - segundo ano. O nível superior, por sua vez, para jovens a partir de 18 anos, abrange as Escolas Técnicas, os Politécnicos e as Universidades.

Em prosseguimento aos princípios assinalados na seção anterior, o governo indiano comprometeu-se, no que tange à Educação, a aumentar seu orçamento em pelo menos 6% do seu PIB, sendo que pelo menos metade do valor será gasto com a Educação Primária e Secundária. Este compromisso será cumprido gradualmente, adotando-se as seguintes medidas:

  • Cessão de parte dos impostos federais para financiar o compromisso com a universalização do acesso a uma educação básica de qualidade;
  • Reversão da tendência à padronização do currículo escolar;
  • Assegurar com que as instituições de ensino superior e de educação profissional retenham sua autonomia e que a ninguém seja negada a educação profissional com base em suas condições sociais;
  • Universalizar os Serviços Integrados de Desenvolvimento Infantil de modo a prover uma Educação Infantil funcional em cada localidade e assegurar que todas as crianças tenham acesso. Para tanto, o governo pretende apoiar integralmente todos os esforços do setor não governamental no tocante à Educação Primária;
  • Criação de infra-estrutura apropriada nas escolas.

Em termos de legislação educacional relativa a pessoas em situação de deficiência, destacam-se as seguintes:

 

  • A Política Nacional de Educação, de 1986, que inaugura a menção a pessoas em situação de deficiência nos textos legais e defende a integração de crianças com deficiências leves nas escolas regulares;
  • O Ato para Pessoas com Deficiências (Igualdade de Oportunidades, Proteção de Direitos e Participação Total), de 1995, que recomenda mudanças no currículo e na avaliação e a remoção de barreiras arquitetônicas para apoiar a inclusão, além de recomendar a distribuição gratuita de livros e uniformes a crianças com deficiências;
  • A Emenda Constitucional de 2001 que torna a educação um direito fundamental para crianças entre 6 e 14 anos, incluindo as com deficiências; e
  • A Lei do Direito à Educação, de 2005.

O ano acadêmico possui um mínimo de 200 dias letivos e os períodos são organizados diferentemente entre os estados, de acordo com as fases de agricultura. A maioria dos estados oferece educação gratuita em suas escolas, dos anos 1 ao 12º de escolaridade.

Educação Especial e o Movimento pela Inclusão 3

Tradicionalmente, na Índia, não se educava pessoas em situação de deficiência, com exceção de poucas, cuja educação era provida em escolas especiais. A primeira iniciativa legal referente à educação de pessoas em situação de deficiências veio com a já mencionada Política Nacional de Educação, de 1986, que introduziu os seguintes aspectos inovadores ao contexto indiano:

  • Educação de crianças com deficiências leves na escola regular;
  • Crianças com deficiências severas em escolas especiais com facilidades de acomodação em pontos centrais de cada localidade;
  • Início da educação profissional;
  • Reorientação dos programas de formação de professores no sentido de incluir a educação de crianças com deficiências;
  • Encorajamento a todas as iniciativas voluntárias.

Mas é com o Ato para Pessoas com Deficiências, de 1995, que as provisões educacionais tornam-se mais organizadas. Em termos educacionais, o Ato aponta para os seguintes aspectos:

  • Toda criança com deficiência deverá ter direito à educação gratuita até a idade de 18 anos em escolas integradas ou especiais;
  • Nos sistemas de avaliação, há que se assegurar transporte apropriado, remoção de barreiras arquitetônicas e modificações curriculares em prol do benefício das crianças com deficiências;
  • Crianças com deficiências deverão ter direito a livros gratuitos, bolsas escolares, uniformes e outros materiais de aprendizagem;
  • As escolas especiais para crianças com deficiências deverão estar equipadas com facilidades de treinamento profissional;
  • Educação não-formal deverá ser oferecida a crianças com deficiências;
  • Centros de formação de professores deverão ser estabelecidos com vistas a desenvolver os recursos humanos necessários.

Assim sendo, pode-se dizer, em linhas gerais, que a inclusão escolar de pessoas em situação de deficiência tem percorrido uma trajetória bastante semelhante à de muitos países: do não reconhecimento desses sujeitos como pessoas, ao enclausuramento dos mesmos em instituições especializadas, à tentativa de integrá-los em certas arenas sociais até o momento mais atual, em que se tenta pensar transformações de ordem mais sistêmica, com mudança de paradigmas. Fato é que hoje, a população de crianças e jovens com deficiência em idade escolar fica em torno de 40 milhões, 85% das quais, estima-se, estão, ainda, fora das escolas.

Em que pese o contexto indiano, para o qual o Ato de 1995 constitui-se em instrumento progressista, há críticas. Para começar, vale ressaltar, uma curiosidade: enquanto que a educação como um todo encontra-se sob os auspícios do Ministério do Desenvolvimento de Recursos Humanos e seus respectivos Departamentos de Educação, a educação de pessoas em situação de deficiência é totalmente regida pelo Ministério da Justiça Social e Empoderamento, que lhe confere, segundo a opinião de alguns estudiosos indianos, o caráter assistencial-paternalista.

Nos sistemas nacionais de avaliação, apesar das concessões asseguradas por lei (como por exemplo, isenção de fazer exame de uma terceira língua no provões indianos, permissão para acionar um ledor e um escriba, tempo adicional de uma hora para completar as provas e assim sucessivamente), não são poucos os casos na justiça que alegam o não cumprimento de tais concessões. Além disso, argumenta-se que tais concessões não tocam a raiz do problema: uma sociedade organizada em torno de padrões excludentes e um sistema educacional que fomenta a competição entre as escolas ao ranqueá-las em escores nacionais.

África do Sul

Aspectos Geopolíticos

A África do Sul, embora tenha iniciado seu processo de independência em 1910, somente a conquistou em 1961, quando tornou-se República. Seu sistema político também é parlamentar, mas seu Presidente exerce tanto o papel de chefe de estado quanto de governo. O presidente é eleito da mesma forma que no sistema indiano, e o parlamento também é bicameral, dividido entre a Assembléia Nacional e o Conselho Nacional de Províncias.

A África do Sul possui 9 províncias e uma população de 43.647.658 habitantes, sendo o 24º. país em tamanho. Existem 11 línguas oficiais e uma boa diversidade cultural, na qual destacam-se marcantes diferenças entre a população de origem européia, mais rica, e a população de origem africana, mais pobre.

É impossível, ao se falar na África do Sul, não nos remetermos à história do apartheid, ainda que brevemente, para compreendermos seu momento atual. O apartheid 4 definiu-se a partir de 1902 e vigorou até 1991. Foi criado como uma política de segregação racial que contribuía para a manutenção do domínio dos colonizadores sobre a população nativa. O Ato de Terras Nativas e as Leis do Passe são exemplos de legislação apartheidista.

O “Ato de Terras Nativas” forçou o negro, maioria de 97,5% da população, a viver em reservas especiais que representavam 13% do território nacional, enquanto a minoria branca de 2,5% ocupava 87% do território. Como a lei proibia que negros comprassem terras fora da área delimitada, assegurava-se, assim, mão-de-obra barata para os latifundiários brancos.

As “Leis do Passe” obrigavam os negros a apresentarem o passaporte para poderem se locomover dentro do território, para obter emprego.

Essa política de segregação racial ganhou força e foi oficializada em 29 de junho de 1948, ironicamente no ano em que as Nações Unidas proclamavam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A segregação chegou a ponto tal que passou-se a catalogar a raça de toda criança recém nascida.

O apartheid atingiu arenas sociais como a habitação, o emprego, a educação e os serviços públicos. Qualquer mistura entre pessoas de raças diferentes era considerada ilegal, a menos que fossem relações trabalhistas, mais assemelhadas a um regime de escravidão. Os negros, quando providos de emprego, eram comandados por capatazes brancos e viviam em guetos miseráveis e superpovoados.

Foi neste contexto que surgiu o CNA - Congresso Nacional Africano (CNA), uma organização negra clandestina, que tinha como líder Nelson Mandela, preso em luta armada em 1962 e condenado à prisão perpétua. A partir daí, o apartheid tornou-se ainda mais forte e violento.

Nos anos 70, com o fim do império português na África, e nos anos subseqüentes, com o aumento da pressão, por parte da comunidade internacional e da Organização das Nações Unidas (ONU), contra o apartheid, em 1991 o então presidente Frederick de Klerk condenou oficialmente o apartheid e libertou líderes políticos, entre eles Nelson Mandela.

O Sistema Educacional 5

Existem cerca de 28.000 instituições educacionais na África do Sul, incluindo-se as especiais (cerca de 390), públicas e particulares, somando cerca de 12 milhões de alunos no país. A maior parte destas escolas (22.000) é de Educação Fundamental, sendo as 6.000 restantes de Ensino Médio.

O tempo médio de escolarização é de 13 anos, e ao contrário de muitos países do “Sul”, a educação na África do Sul recebe 20% de seu orçamento nacional, anualmente. Mesmo assim, há uma grande variação, entre as escolas, quanto à qualidade, recursos financeiros, tamanho e ethos. A maioria das escolas é pública, mas o setor privado vem se fortalecendo e crescendo nos últimos 6 anos, sendo, atualmente, responsável pela educação de cerca de 2% do alunado.

Diferentemente de nossa realidade, as escolas públicas são parcialmente financiadas pelo governo, que provê o “mínimo” (estrutura física e recursos humanos) e os pais contribuem para cobrir o “básico” (material escolar e contribuem com as refeições) e os extras. O valor desta contribuição varia de acordo com aspectos como tamanho da turma, facilidades oferecidas pela escola e qualidade do ensino oferecido.
O sistema educacional africano do sul é de responsabilidade do Departamento de Educação, liderado pelo Ministro, e com representatividade e autonomia locais. Este, no tocante a assuntos educacionais, subdivide-se em várias Agências: de Financiamento, de Planejamento, de Promoção e Desenvolvimento da Qualidade, de Educação Geral, de Educação Continuada e Profissional e de Educação Superior.

Para fins do presente artigo, centraremos nossa atenção na Agência de Educação Geral, que é responsável pelo desenvolvimento e implementação de políticas educacionais e de educação inclusiva, dentre outras 6. Além destas funções, a Agência também tem a função de liderá-las por meio da administração e acompanhamento de programas voltados para “alunos com necessidades especiais” e outros.

Dentre os objetivos-chave da Agência encontram-se:

  • Substituir o currículo do apartheid por um novo currículo, que tenha como foco contemplar as necessidades de uma África do Sul democrática para o século XXI;
  • Aprimorar a qualificação de milhares de professores que anteriormente estavam sem qualificação ou com fraca qualificação;
  • Estabelecer uma administração democrática em todas as escolas;
  • Oferecer a alfabetização e a educação e formação básica a cerca de 1,4 milhões de adultos.

À uma primeira vista, tudo o que se pesquisa sobre a África do Sul deixa a impressão de que a educação especial está inteiramente contida no sistema educacional geral, pois que se encaixa neste Departamento e quase não se vê documentos em separado. Entretanto, conforme a própria página do Departamento diz, uma das prioridades da Agência é “desenvolver e expandir um verdadeiro sistema de educação inclusiva, incluindo a consolidação de escolas especiais”. E, de fato, ao se consultar o documento-referência sobre o assunto (White Paper 6; África do Sul, 2001b), vê-se que inclusão está diretamente associada a deficiências, conforme veremos a seguir.

Educação Especial e o Movimento pela Inclusão

A África do Sul tem, hoje, 64.603 alunos pertencentes à categoria de necessidades educacionais especiais (África do Sul, 2001b). Segundo Schoeman (2002), a educação especial na África do Sul iniciou-se em 1863, por iniciativa da Igreja Católica, que organizou a primeira escola para surdos. O governo assumiu responsabilidade pela educação de deficientes em 1928, que seguiu, igualmente, as orientações do apartheid e consolidou-se de acordo com a discriminação racial. Com a Constituição de 1996, entretanto, um novo paradigma se apresentou à educação de modo geral, de modo que pode-se destacar dois artigos representativos deste paradigma. O primeiro é o artigo 3 da Seção 9 (Igualdade) do Capítulo 2 (Lei de Direitos), que diz que:

O Estado não poderá discriminar ninguém injustamente, direta ou indiretamente, com base em uma ou qualquer fundamentação, incluindo a racial, a de gênero, de sexo, de gravidez, estado civil, origem étnica ou social, cor, orientação sexual, idade, deficiência, religião, consciência, crença, cultura, língua e nascimento.

O grifo é meu e serve para chamar a atenção para uma questão que a palavra “injustamente” levanta: haverá uma discriminação justa? Vale ressaltar que não é somente neste artigo da Constituição ou de documentos posteriores que o termo “discriminação injusta” aparece.

O segundo é o artigo 1 da seção 29 (Educação) do Capítulo 2, que reza que:

Todos têm direito:
(a) a uma educação básica, incluindo a educação básica de adultos; e
(b) a uma educação continuada, a qual o Estado, por meio de medidas razoáveis, deverá tornar progressivamente disponível e acessível.

Um dos resultados da nova Constituição foi a criação, no ano seguinte, de duas Comissões de Investigação: uma sobre Educação e Formação para Necessidades Educacionais Especiais e a outra sobre os Serviços Educacionais de Apoio. Ambas submeteram seus relatórios ao final de 1997, que geraram o supramencionado White Paper 6 (África do Sul, 2001b). Este documento representa o marco da reconfiguração da educação especial no paradigma inclusivista, motivo pelo qual destacarei as sete estratégias centrais que o mesmo define para que a inclusão tome força (p.7-8):

  • O aprimoramento qualitativo das escolas especiais para os alunos a quem servem e sua conversão a Centros de Recursos integrados às equipes de apoio dos programas distritais/locais.
  • A substituição dos processos de identificação, testagem e matrícula de alunos em escolas especiais por um processo que reconheça o papel central dos educadores, professores e pais.
  • A mobilização de cerca de 280.000 estudantes com deficiências em idade escolar que ainda estavam fora da escola.
  • A conversão de aproximadamente 500 escolas primárias em escolas de período integral, a serem equipadas e apoiadas para oferecerem uma variedade completa de serviços para as necessidades de aprendizagem de todos os estudantes. Atenção especial devendo ser dada ao desenvolvimento de estilos flexíveis de ensino, ao fortalecimento da instituição e ao apoio a estudantes e educadores das referidas escolas.
  • A orientação e introdução da administração, estruturas colegiadas e profissionais da escola sobre o modelo inclusivo, tendo como meta a identificação precoce das deficiências e a intervenção na fase fundamental. Equipes de apoio à escola seriam estabelecidas a fim de organizar serviços de apoio apropriados ao estudante e aos professores para que se proviesse apoio ao ensino e à aprendizagem no nível institucional. Sempre que apropriado, tais equipes deveriam ser fortalecidas pelo expertise da comunidade local, das equipes distritais de apoio e das instituições de educação superior.
  • O estabelecimento de equipes distritais de apoio a fim de se promover um serviço de apoio profissional coordenado às escolas especiais, às escolas integrais e outras escolas no distrito. Tal equipe seria composta de profissionais dos distritos e das províncias, do governo central e de escolas especiais.
  • A implementação de um programa nacional de informação e auto-advocacia, em apoio ao modelo de inclusão.

Pode-se deduzir, a partir das informações acima, que o movimento em direção à inclusão na África do Sul vem sendo predominantemente marcado por questões raciais, como seria de se esperar, dada a importância do apartheid em sua história, que deixou profundas marcas. Estas questões raciais estendem-se a pessoas com deficiências, sendo, inclusive, anteriores à deficiência. Dito de outra forma, a prioridade vem sendo acabar com um regime separatista racial, e por extensão, com a separação de deficientes e não deficientes.

De todo modo, no que tange especificamente à inclusão de pessoas em situação de deficiência, pode-se considerar que o movimento pela inclusão está mais avançado nas intenções oficiais do que na prática e mesmo nos textos da lei. Em que pese a definição “arrojada” de inclusão no próprio texto do White Paper 6 (África do Sul, 2001b, p.7), que define Educação e Formação Inclusivas como:

  • Reconhecendo que todas crianças e jovens podem aprender e precisam de apoio;
  • Capacitando as estruturas e sistemas educacionais e as metodologias de aprendizagem a contemplarem as necessidades de todas as crianças;
  • Reconhecendo e respeitando as diferenças nos estudantes, relativas a idade, gênero, etnia, língua, classe social, deficiência, HIV ou outras doenças infecciosas;
  • Indo além da escolarização formal e reconhecendo que a aprendizagem também ocorre em casa e na comunidade, e dentro de estruturas formais e não formais;
  • Mudando atitudes, comportamentos, métodos de ensino e ambientes para contemplar as necessidades de todos os estudantes;
  • Maximizando a participação de todos os estudantes na cultura e no currículo das instituições educacionais e revelando e minimizando as barreiras à aprendizagem;

mesmo assim, a existência e manutenção de diferentes categorias e escolas para deficientes, e a menção explícita de intenção do fortalecimento das mesmas deixa, no mínimo, algumas dúvidas sobre os resultados de todo este processo. Dito isso, vale esclarecer que, mais para o final do texto, o mesmo documento elucida que o fortalecimento das escolas especiais se daria no sentido de torná-las Centros de Referência, atendendo mais a escolas como um todo do que a grupos específicos em particular.

Considerações Finais

A partir da breve exposição sobre recentes mudanças nos sistemas educacionais da Índia e da África do Sul, podemos assinalar alguns aspectos comuns. Alguns deles podem ser enquadrados nas experiências bem sucedidas, e outros permanecem como obstáculos a serem superados.

Um primeiro aspecto que nos chama atenção é o fato de que em ambos os países os esforços atuais quanto à inclusão de modo geral têm se dado em um sentido já superado por muitos países: o de universalizar o ensino. Cabe a menção aqui de que particular ênfase neste processo tem sido dado às mulheres, que por motivos culturais e religiosos foram relegadas a segundo plano em tais sociedades, caracterizando uma exclusão por gênero. A propósito deste aspecto, podemos citar a contrapartida inglesa, em que a maioria da população escolarizada é representada, segundo dados do censo de 2001, por mulheres.

Dito isto, segue sendo verdadeira, também, uma exclusão por etnia: negros na África do Sul e dalits 7 na Índia. A este respeito, embora historicamente a Europa não fique atrás (haja vista o holocausto na Alemanha e os confrontos étnicos que ocorreram e ainda ocorrem com freqüência na Inglaterra), politicamente parece que a situação é mais controlada. Há exclusões étnicas no dia-a-dia das instituições, mas o acesso às mesmas é garantido. O que pode, por outro lado, ser analisado como uma situação pior, na medida em que as exclusões, como acontecem “do lado de dentro”, podem ser mais mascaradas, ou mesmo omitidas.

Há ainda uma outra fonte de exclusão mais “genérica”, por assim dizer: a lingüística. O que não é de surpreender, dada a variedade de línguas e dialetos falados em cada país. Contudo, se a variedade explica parte da exclusão, ela certamente não a justifica. Em que medida fica associada, a exclusão, a interesses de dominação política por parte de grupos na sociedade, cuja língua é predominante, e que aspiram a parcelas maiores de poder, ou de manutenção de seu “território de dominação”, é uma questão que deixo para que o leitor reflita a respeito.

Quanto à inclusão de pessoas em situação de deficiência, observa-se que somente na década de 90 os dois países iniciaram uma mobilização oficial pela transformação de seus quadros de exclusão, ao passo que em países como Escócia e Inglaterra, esta mobilização iniciou-se nos anos 60. Por outro lado, na Alemanha, com um complexo sistema de escolas especiais e uma franca relutância, por parte de especialistas, principalmente, em aderir aos princípios de inclusão, esta discussão só se inicia a partir dos anos 80, e “toma fôlego” na década de 90, com o conceito de joint education8 (Hinz, 2005).

De todo modo, vale ressaltar que a inclusão escolar de pessoas com deficiências parece estar atrelada a alguns aspectos, tanto na Índia quanto na África do Sul: políticas que geram uma cultura de competição entre as escolas, padronização e inflexibilidade curricular e falta de infra-estrutura apropriada nas escolas, além de uma perda considerável de status profissional para o magistério.

É de certa forma irônico que nada destes aspectos seja novidade para nós, e mesmo para países “do Norte”. É certo que se uma escola passa a ser financiada pelo número de alunos que possua e pelo seu escore em testes e avaliações nacionais, a presença de alunos que ameacem a “boa” educação que oferecem (porque não se rendem com facilidade a um modo padronizado de pensar e funcionar) só pode ser mal vista pela escola. Infelizmente, as políticas aqui estudadas apontam para este caminho, a exemplo do que já acontece desde os anos 90 na Inglaterra.

É certo, também, que se a escola só consegue conceber um currículo, uma maneira de apresentar, tratar e discutir os conteúdos; de planejá-los e elaborá-los, como se todos os seres humanos fossem absolutamente iguais e identificassem-se, igualmente, com os mesmos estímulos para aprender, a presença de alunos que coloquem esta prática em xeque só pode ameaçar a estrutura escolar. Em decorrência desta visão, pior ainda ficam os processos avaliativos, que passam a ser compreendidos como produtos finais, em uma mentalidade “tarefeira”.

É certo, também, que se uma escola precisa contar ad infinitum com a boa vontade dos outros (voluntários na Índia, pais e familiares na África do Sul – amigos da escola?) para ajudar-lhe a fazer aquilo que é sua obrigação e oferecer aos seus alunos e professores condições dignas de aprendizagem e trabalho, o que lhes é de direito, ela jamais terá a infra-estrutura “apropriada” para funcionar. Nos textos consultados da Índia e da África do Sul, percebi um enorme esforço nas legislações para transferir a responsabilidade pela inclusão – ou parte dela – a iniciativas comunitárias ou domésticas.

Na Índia, as ONGs têm sido incessantemente conclamadas a assumirem sua parte do bolo, ao passo que na África do Sul, além de ONGs, entram, nos textos das leis, como co-responsáveis, a iniciativa particular das famílias (ao prover o “básico” das escolas, como mostrei acima, por exemplo). Por outro lado, esperar que os governos assumam, por fim, suas responsabilidades em tempos de políticas neo-liberais, por meio das quais, em países de menos recursos, o que tem acontecido, de fato, é que a irresponsabilidade governamental vem sendo travestida com o nome de “parceria”, incorreria num prejuízo de exclusão ainda maior.

O que causa espécie após as leituras aqui apresentadas é que, em que pesem as particularidades de cada país, há, no tocante à exclusão de pessoas com deficiências, como foi mostrado, semelhanças entre os países. Isto poderia ser motivo para tornar a luta contra as exclusões mais forte, o que ainda não parece ser o caso. Vale mencionar, a respeito desta observação, que em 2005 foi lançada, na Índia, com representação internacional (discutível, dado o pouco número de pessoas de outros países ali presentes), a Aliança Global pela Inclusão.

Deixando de lado, por ora, as questões complexas da associação do termo inclusão a somente este grupo de excluídos; e mesmo a complexidade de poder chamá-lo de “um” grupo (pois que são tantos os grupos sob o guarda-chuva da deficiência), cabe a ressalva de que a intenção da Aliança foi e é, exatamente, chamar a atenção para o fato de que: se há um grupo de excluídos com semelhanças marcantes por todo o mundo, tanto em termos das deficiências propriamente ditas quanto em termos dos processos de exclusão a que têm sido submetidos, este grupo é o dos deficientes.

Por fim, mas não menos importante, também é certo que enquanto professores só forem ouvidos e respeitados como categoria profissional em épocas eleitorais, e que sejam vistos somente como possíveis arrebatadores de votos, nada mudará em suas vidas. O que se esquece, entretanto, é que os professores são (ou poderiam ser), por excelência, os “mudadores de vidas” das sociedades: eles nutrem com sonhos, eles instigam com a vivacidade, eles cutucam com a curiosidade, eles enraivecem com a provocação.
Mas se só têm pesadelos, se mal sentem-se vivos ao fim de um dia de peregrinação por muitas escolas para cobrirem um salário baixo que lhes permita somente (pelo menos?) comer, se são acostumados a pensar que sabem tudo porque “já viram este filme (politiqueiro) antes” e perderam a curiosidade, e se mostram-se apáticos com menos de 3 anos de exercício da profissão... como poderão mudar alguma coisa ou provocar mudanças em alguém?

Digo isto porque nos documentos consultados há, expressa, a intenção de valorização do magistério, o que nos leva a crer que, também nestes países (a exemplo do que acontece no nosso), a categoria profissional tem sofrido perdas enormes ao longo dos tempos. Mas se as intenções são essas, os relatórios que li sobre o que de fato tem sido feito para sanar esta situação apontam para uma outra direção. Na Índia, por exemplo, o “apoio” que se tem dado aos professores é treinar as mães de favelas indianas a serem “professoras” comunitárias de educação infantil. Este treinamento dura cerca de 2 anos (!) e vem sendo expressivamente financiado pelo Canadá.

Conclusão inevitável: é preciso fazer algo. Já. Por isso, e por tudo o que não pudemos explorar neste pequeno – mas necessário – espaço, é que deixo, ao final, mais perguntas e dúvidas do que respostas. Porque precisamos fazer algo. Já. E se pudermos iniciar este fazer com um pequeno pensar, teremos conseguido romper a pior das barreiras a qualquer inclusão: a do desconhecimento.

Notas

2 Optei por utilizar a terminologia do próprio país, ao invés de adaptá-la à brasileira.
3 Parte deste trecho foi obtido por entrevista, via MSN, com minha colaboradora e parceira de pesquisa na Índia, Dra. Mithu Alur, a quem deixo, aqui, meus agradecimentos.
4 Parte dos trechos sobre apartheid e o sistema educacional foi coletada em sites diversos (ibge.gov.br e historianet.com.br) e obtidos em entrevista, via MSN, com minha colaboradora e parceira de pesquisa na África do Sul, Marie Schoeman, a quem deixo expresso o meu agradecimento.
5 Informações extraídas do site http://www.info.gov.za/aboutsa/education.htm em 26 de março de 2006
6 Nos textos consultados, políticas educacionais e de educação inclusiva encontram-se exatamente como estão aqui: separados.
7 Os Dalits podem ser considerados uma quinta casta, o que, na estrutura indiana, é pior do que péssimo. São também conhecidos como “os intocáveis”, porque devido à estrutura religiosa de castas, nasceram para fazer o que sobra na sociedade. São, portanto, considerados sujos; tocá-los é sujar a aura, manchar-se de energia negativa do karma de uma casta socialmente inexpressiva. Os Dalits não podem beber a água das outras castas, sob pena de serem seriamente castigados. Segundo estatísticas (Power, 2000), a cada hora um dalit é espancado e três mulheres dalits são estupradas.
8 Educação conjunta.

Bibliografia

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