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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
A educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva no Brasil
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Publicado em 2008
Revista Espaço (Rio de Janeiro. 1990), v. 30, p.12-17
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

Neste artigo, serão discutidos os aspectos relacionados às propostas bilíngues para educação de surdos, no contexto da educação inclusiva, que extrapolam as questões linguísticas, determinadas também por questões políticas. Nesse sentido, apresentar-se-á uma reflexão sobre o caso específico das políticas linguísticas e das políticas públicas de educação de surdos no Brasil que acabam interferindo nas formas que o bilinguismo passa a tomar nas experiências brasileiras. Esse processo de reflexão é fundamental para planejar a educação bilíngue (língua de sinais brasileira e língua portuguesa) na perspectiva da educação inclusiva no Brasil.

Políticas linguísticas no Brasil e a língua brasileira de sinais (Libras)

O Brasil é supostamente monolíngue. Há uma história que consolidou uma compreensão de que o brasileiro fala português. No entanto, para fazermos uma reflexão sobre isso, precisamos analisar a realidade linguística brasileira:

Para compreendermos a questão é preciso trazer alguns dados: no Brasil de hoje são falados por volta de 200 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones), e as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones). [...] O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima, considerando-a ‘companheira do Império’ (Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536). A política linguística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento linguístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história linguística do Brasil poderia ser contada pela sequência de políticas linguísticas homogeneizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram: somente na primeira metade deste século, segundo Darcy Ribeiro, 67 línguas indígenas desapareceram no Brasil – mais de uma por ano, portanto (Rodrigues, 1993:23). Das 1.078 línguas faladas no ano de 1500 ficamos com cerca de 170 no ano 2000, (somente 15% do total) e várias destas 170 encontram-se já moribundas, faladas por populações diminutas e com poucas chances de resistir ao avanço da língua dominante. (OLIVEIRA, 2004, p.01)

Como apresentado por Oliveira, o país teve uma política de extermínio linguístico em favor da legitimação de uma única língua, a língua portuguesa; portanto, com um planejamento pautado em uma política linguística que favoreceu o monolinguismo. No entanto, ainda assim continuamos com um país plurilíngue, pois muitas línguas são faladas no país, além de termos as línguas de sinais brasileiras. Portanto, precisamos desconstruir essa visão monolíngue, pois não reflete a realidade linguística brasileira. Falamos várias línguas indígenas, alemão brasileiro, italiano brasileiro, japonês brasileiro, língua de sinais brasileira. O reconhecimento e legitimação do pluringuismo brasileiro depende de políticas linguísticas que prevejam o planejamento linguístico que garanta a manutenção e difusão de todas essas línguas brasileiras. Para isso, a resistência das comunidades linguísticas que usam essas línguas deve se integrar a essas políticas que desconstroem o monolinguismo legitimado por tantos anos.

O monolinguismo é difundido por várias práticas, contando com a escola como parceira e a mídia. A língua falada e de referência nas escolas públicas brasileiras é o português e, raramente, alguma outra língua chega a ocupar algum espaço nesse contexto. Inclusive a língua estrangeira que é incluída nos currículos das escolas públicas brasileiras não apresenta um status que a valorize enquanto oportunidade de os alunos serem bilíngues. Pelo contrário, o status da língua estrangeira é marginal, tanto o é que as suas aulas são consideradas um adendo para responder a uma exigência curricular. As poucas escolas bilíngues existentes no Brasil são, em sua grande maioria, escolas privadas, restringindo-se o status bilíngue a uma pequena parcela da população brasileira.

Com a globalização, há um movimento que olha com bons olhos o plurilinguismo, pois “ser cidadão do mundo” passou a representar algo positivo. Além disso, há várias vantagens em ser bilíngue. Ter mais de uma língua não representa mais um problema ou uma ameaça à nacionalidade de um determinado país, mas sim mais poder, mais elasticidade cognitiva, mais flexibilidade social, etc. Isto é, não se vê mais como desvantagem a apropriação de outra língua, mas como vantagem em vários sentidos: cognitivo, social, cultural, político e linguístico. (CUMMINS, 2003) Em termos políticos, é o reconhecimento da realidade plurilíngue, legitimando as diferentes línguas usadas em uma nação, que podem compartilhar espaços em um mesmo país.

Em uma perspectiva plurilíngue, o status da cada língua é reconhecido, e as línguas desempenham diferentes papéis atribuídos por seus falantes. Uma política linguística plurilíngue precisa garantir as composições entre as línguas, garantindo-lhes o uso e a difusão em um mesmo país.

No caso específico da língua brasileira de sinais, há um reconhecimento legal traduzido por meio da Lei n.º 10.436/2002, comumente referida como a Lei de LIBRAS, regulamentada pelo Decreto n.º 5.626/2005. Essa  legislação apresenta não somente a lei, mas um planejamento linguístico para que essa língua seja reconhecida e difundida no país. Nesse planejamento está prevista a inclusão da língua brasileira de sinais em diferentes espaços da sociedade. A área da Educação passa a ter responsabilidade em garantir a educação bilíngue para os surdos brasileiros, ou seja, na língua brasileira de sinais, e o ensino da língua portuguesa como segunda língua para os surdos. Ao mesmo tempo, determina a inclusão da LIBRAS como disciplina nos currículos de todos os cursos de licenciatura e no de fonoaudiologia. Sugere, também, que as escolas públicas passem a oferecer LIBRAS no contexto escolar. Além disso, o Decreto dedica um capítulo à formação dos profissionais que irão trabalhar com a LIBRAS. Propõe ainda a criação dos seguintes cursos: letras em LIBRAS, pedagogia bilíngue, formação de intérpretes de LIBRAS e do curso de língua portuguesa como segunda língua para surdos. Além da educação, essa legislação regula os direitos dos surdos brasileiros de terem acesso às informações e de atendimento público em LIBRAS. Portanto, são vários desdobramentos desencadeados a partir da Lei de LIBRAS, enquanto política linguística que vem fortalecer esta comunidade linguística brasileira. Embora ainda tenhamos uma política maior que legitima o português como “a” língua brasileira, submetendo as demais línguas a um status de menos-valia; há uma legislação que favorece o empoderamento da língua brasileira de sinais.

Uma coisa que precisa ser considerada é o “sentimento de nacionalidade e de pertencimento” por meio da língua que é tomada como natural em uma comunidade. Essa invenção da nossa sociedade é fruto de vários processos históricos. Nesse sentido, as línguas oficiais fazem parte de construções históricas associadas ao poder e se traduzem em políticas monolíngues. Assim, sustenta-se um sistema educacional com esta base, ou seja, a língua portuguesa ocupa um espaço central nas escolas públicas.

Propor uma educação bilíngue na rede pública exige uma revisão desse status, embora seja reconhecido o status ocupado pela língua portuguesa. Essa revisão inclui a possibilidade do reconhecimento do “ser bilíngue”: os surdos com o seu status bilíngue reconhecido por eles mesmos e pelos outros, da mesma forma que seus pares ouvintes reconhecendo-se como bilíngues. O sentimento de nacionalidade e de pertencimento não é violado, pois ambos estão usando duas línguas brasileiras; mas isso passar a representar a nacionalidade não pautada no monolinguismo, exige desconstruções de uma cultura instituída. Vejam que os próprios surdos reproduzem este sentimento de nacionalidade e pertencimento pautado na língua, pois vários repetem o discurso de ser apenas a LIBRAS a língua dos surdos brasileiros. No entanto, a LIBRAS e o português são línguas dos surdos brasileiros. Esse reconhecimento do status bilíngue dos surdos brasileiros escolarizados é visto com muito preconceito pelos próprios surdos, colocando em xeque o “pertencimento” à comunidade surda daqueles que conseguiram se apropriar da língua portuguesa, além da LIBRAS. Por outro lado, imaginar que os colegas ouvintes se apropriem da LIBRAS por estarem compartilhando os espaços das escolas com os colegas surdos, também representa uma ameaça. Portanto, o sentimento de nacionalidade e de pertencimento é algo que evoca relações tensas e implica negociação.

A língua de sinais brasileira é um símbolo de identidade, pois por meio dela os surdos se reconhecem parte de uma comunidade (parte de um povo, no sentido discutido por Strobel, 2008). Por outro lado, esse símbolo de identidade também identifica o ouvinte (que não é um estrangeiro) como não-integrante dessa comunidade. Da mesma forma, o português para os colegas ouvintes é um símbolo de identidade, enquanto que para os surdos tem representado a língua do outro. Instaura-se, neste momento, um processo de negociação com menos ou mais embates entre as diferenças. Não podemos perder de vista que o poder transforma as diferenças em desigualdade.

A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição, [...] mas sim uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. (BHABHA, 2003)

O povo surdo brasileiro, de certa forma, apresenta algumas identidades de povos com fronteira móvel. Os surdos pertencem a uma fronteira móvel que não está ligada a um espaço geográfico específico, fixo, independente, mas que está “entre-lugares”. O que especifica este povo é a LIBRAS, visual-espacial, que é de outra ordem que não a do português, uma língua oral-auditiva. Ao mesmo tempo, é um povo que também é brasileiro. O movimento é de romper com a ordem instituída e as formas colonizadoras de imposição da língua portuguesa sobre os surdos, como a língua da nação, imaginada como aquela que fala uma única língua. Assim, esta nação é sonhada pelo outro e não pelos surdos. O português passa a ser reconstruído como uma das línguas dos surdos brasileiros a partir dos próprios surdos, como uma língua que apresenta uma determinada função. Essa ressignificação (reconstrução) legitima esta língua como uma das línguas dos surdos brasileiros, não mais representando uma ameaça, mas uma de suas línguas. A língua portuguesa não ameaça a LIBRAS, mas é uma das línguas que pode, inclusive, servir para empoderar a própria língua brasileira de sinais.

A LIBRAS é trazida como elemento constituidor dos surdos na relação com outros surdos e na produção de significados a respeito de si, do seu grupo, dos outros e de outros grupos. O encontro surdo-surdo representa, pois, a possibilidade de troca de significados os quais, na LIBRAS, nas políticas, na marcação das diferenças, carregam marcas culturais. Assim, o outro igual é aquele que usa a mesma língua e que consegue trilhar alguns caminhos comuns que possibilitam o entendimento sem esforços de outra ordem.

Os direitos linguísticos estão sendo vistos não enquanto direitos individuais, relacionados com a capacidade. O direito linguístico individual traduz-se na garantia da aquisição da linguagem por meio da língua de sinais. Por outro lado, o direito linguístico dos surdos é um direito coletivo. Nesse sentido, o direito ganha força e os desdobramentos das práticas linguísticas passam a ser traduzidos por meio das comunidades linguísticas. Os surdos brasileiros têm direito à educação bilíngue, enquanto grupo social e linguístico, e não enquanto indivíduos. Assim, a língua ocupa outro espaço na sociedade – um espaço de um grupo social e linguístico, precisando ser representado nos diferentes espaços sociais, independentemente de territórios –, mas atrelada às comunidades linguísticas. Nesse contexto, a língua não pode ser limitada ao caráter instrumental, não pode servir para afirmar a outra língua, no caso, a portuguesa; mas passa a ocupar espaços que se justificam a partir de comunidades linguísticas legítimas. Os surdos brasileiros estão espalhados pelo país, entre ouvintes falantes de português. Convivem com sua comunidade que utiliza a LIBRAS e com sua comunidade que utiliza a língua portuguesa, caracterizando-se assim o seu status bilíngue.

Os papéis desempenhados por cada língua, tanto para surdos como para ouvintes, são diferentes, pois representam primeiras e segundas línguas para uns e não para outros, com funções sociais diferentes. As relações com as línguas se integram às transformações sociais, culturais e políticas. A ilusão do “perfeccionismo” na língua está relacionada com as questões do bilinguismo e das línguas em contato, no caso dos surdos, a LIBRAS e a língua portuguesa. Essas questões não são triviais, pois estão imbricadas de questões políticas e de relações de poder. A língua enquanto elemento crucial de pertencimento a um grupo social é um dos elementos mais poderosos para o estabelecimento da coesão desse grupo.

Política Nacional de Educação Especial (2008) e a Educação de Surdos

A Política Nacional de Educação Especial foi publicada em 2008 depois de passar por várias instâncias de reflexão. Uma comissão composta por pessoas consideradas referências nacionais na área da educação especial foi formada pelo Ministério da Educação para redigir o texto inicial dessa política, que foi analisado por membros de organizações civis e públicas, governamentais e não-governamentais, representantes reconhecidos por suas comunidades e pela sociedade civil. No caso dos surdos, todas as representações afirmaram a importância de contemplar a educação bilíngue, tendo a língua de sinais como a sua primeira língua e a portuguesa escrita como segunda. A política buscando atender a essas reivindicações reafirmou a Lei de LIBRAS e o Decreto que a regulamenta, conforme apresentado a seguir na parte que contextualiza a política:

O Decreto nº 5.626/05 que regulamenta a Lei nº 10.436/2002, visando ao acesso à escola dos alunos surdos, dispõe sobre a inclusão da LIBRAS como disciplina curricular, a formação e a certificação de professor, instrutor e tradutor/intérprete de LIBRAS, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua para alunos surdos e a organização da educação bilíngue no ensino regular. (Política Nacional de Educação Especial, 2008)

O segmento em que são apresentadas as diretrizes que regem essa Política assim se refere à educação de surdos:

Para o ingresso dos alunos surdos nas escolas comuns, a educação bilíngue – Língua Portuguesa/LIBRAS desenvolve o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para alunos surdos, os serviços de tradutor/intérprete de LIBRAS e Língua Portuguesa e o ensino da LIBRAS para os demais alunos da escola. O atendimento educacional especializado para esses alunos é ofertado tanto na modalidade oral e escrita quanto na língua de sinais. Devido à diferença linguística, orienta-se que o aluno surdo esteja com outros surdos em turmas comuns na escola regular. (Política Nacional de Educação Especial, 2008)

Diante dessa política, faz-se necessário planejar a viabilização de uma educação bilíngue nas escolas públicas, na atualidade essencialmente monolíngues. Esse exercício vai exigir que sejam desconstruídas essas práticas monolíngues e concebida uma política bilíngue. Para viabilizar essa educação bilíngue nos espaços das escolas públicas, os projetos educacionais precisam estar na alma dos profissionais implicados, afirmando as duas línguas que passam a fazer parte da escola. Precisa haver o respeito e a valorização de ambas as línguas que fazem parte das comunidades implicadas nesse espaço. Há diferentes espaços em que as línguas ocupam diferentes papéis e há, também, o contato entre essas línguas. No caso dos surdos brasileiros, a língua de sinais é a sua língua de instrução e o português, a segunda língua. Por outro lado, para os colegas ouvintes que estarão nessa escola, a LIBRAS será a segunda língua, enquanto o português continuará sendo a sua primeira língua.

O projeto educacional da escola com unidade linguística, ou seja, aquele segundo o qual se ensina a língua nacional, a língua portuguesa, é desconstruído na direção da perspectiva plurilíngue e intercultural.
Passamos a ter as línguas nacionais e não mais “a” língua nacional. A língua tupi-guarani, a língua kaapor, a língua xokleng, a LIBRAS, a língua alemã brasileira são alguns poucos exemplos da diversidade linguística nacional; todas línguas nacionais, todas línguas brasileiras. Isso invade a escola com respaldo nas políticas públicas e desconstrói os projetos educacionais monolíngues, além, é claro, das línguas estrangeiras.

Os surdos não precisam mais negar a língua portuguesa, assim como os ouvintes não precisam mais negar a língua brasileira de sinais. As línguas não precisam mais representar uma ameaça, pois conhecer várias línguas não representa mais uma ameaça, mas empoderamento. Elas tornam-se opções ativadas pelos falantes/sinalizantes diante das pessoas com quem falam, das funções que as línguas podem desempenhar e dos contextos em que podem estar inseridas. Instaura-se a negociação, um campo que vai além, abrindo espaços, lugares e objetivos híbridos. Não significa dizer que a educação de surdos terá as duas línguas, mas que as duas línguas estarão em espaços de negociação que não se traduzem em um ou outro lugar, mas entre-lugares, em territórios de ambos. O movimento em relação ao português é de desconstrução para, então, ser possível construir o português do jeito surdo (no sentido de Derrida, 1967), pois se o império do “fonologismo” reina na “colônia” surda, o português sempre será uma ameaça real.

Esse movimento é observado em uma configuração social e cultural pós-colonial com idas e vindas, com hibridismos e traduções desencontradas entre os próprios surdos e, também, entre os ouvintes. Os povos surdos já se situam em um discurso pós-colonial, mas reproduzem aspectos de suas relações com o colonizador dentro de seu sistema de organização. A língua portuguesa, às vezes, é traduzida como superior, mais importante, mais completa do que a LIBRAS, mas de forma sutil. Na idéia do colonizador, a primazia da fala é observada como um trunfo para a ascensão social e cultural tanto do surdo como do ouvinte. O império “fonologista” reina entre surdos e ouvintes, permeando as relações na educação de surdos. Por anos e anos, a língua de sinais ficou submetida ao centrismo do português. A língua brasileira de sinais não era considerada língua, mas sim gestos, menos válidos, menos língua, menos tudo ou absolutamente nada diante da primazia do português. A ameaça do português, como “a” língua realmente representa uma ameaça real aos surdos.

Alguns surdos que percebem essa ameaça, mesmo que inconscientemente, usam a estratégia de negá-la. Dessa forma, por mais que o outro queira ensiná-la, jamais eles irão se apropriar dela. As relações, portanto, são muito mais complexas do que uma simples ressignificação do ser bilíngue, que tem uma língua como sua primeira e a outra como a segunda. As relações de poder instauradas entre colonizador e colonizado em um momento pós-colonialista refletem um espaço de instabilidade e de fronteiras flutuantes que exige constante vigilância. Interessantemente essas relações podem ser desempenhadas tanto por surdos como por ouvintes, nesse sentido “flutuantes”, pois tanto surdos como ouvintes podem ser colonizadores ou colonizados, dependendo das relações estabelecidas. Como menciona Rajagopalan (2004), o uso do poder transformou as diferenças em desigualdades.

As políticas públicas, em especial as políticas linguísticas em relação à LIBRAS, dão um passo no sentido de construir a pluralidade linguística no Brasil. A política de educação especial, sensível a essa política linguística, legitima a educação bilíngue (língua de sinais e língua portuguesa) nas escolas públicas. O próximo passo é a implementação dessas políticas na educação, o que vai exigir planejamento linguístico e pedagógico.

Como implementar uma educação bilíngue no contexto das políticas de educação inclusiva ?

Vários aspectos precisam ser considerados para haver o planejamento pedagógico e linguístico dessa educação bilíngue. A questão da língua implica mudanças na arquitetura, nos espaços, nas formas de interação, na formação dos professores da escola, de professores bilíngues, de professores surdos e de intérpretes de língua de sinais. (SKLIAR; QUADROS, 2004)

As políticas educacionais reconhecem a língua de sinais como a da aquisição da linguagem de forma natural em crianças surdas. Por outro lado, continuamos com a língua portuguesa como a primeira língua das crianças falantes do português nas escolas públicas. Essa língua caracteriza-se como uma segunda língua para os surdos, mas mantém-se como uma de suas línguas nacionais. Para seus colegas ouvintes, a língua de sinais ocupa a função de segunda língua para inserir-se em uma comunidade brasileira que utiliza essa língua. A língua portuguesa é ensinada na escola como língua materna para os colegas ouvintes, enquanto que passa a ser ensinada para os surdos como uma segunda língua. Isso exige pensar em espaços educacionais diferenciados. De forma análoga, a língua de sinais é ensinada com metodologias de ensino de língua materna para os surdos, enquanto é ensinada aos ouvintes com metodologias de ensino de segunda língua. A língua de sinais é a língua de instrução dos alunos surdos; enquanto a língua portuguesa mantém-se como a língua de instrução dos ouvintes. As relações de pertencimento precisam ser vivenciadas nesse espaço bilíngue complexo. A escola que se propõe executar a educação bilíngue (língua portuguesa e LIBRAS) vai precisar considerar essa complexidade no seu dia-a-dia, redesenhando os espaços escolares, passando a inserir em seu quadro professores bilíngues (surdos e ouvintes) e intérpretes de língua de sinais. Além disso, precisará traçar um plano de implementação bilíngue que envolva a escola como um todo, incluindo toda a comunidade escolar.

Considerados esses aspectos no contexto das escolas públicas brasileiras, faz-se necessário criar um sistema de acompanhamento da implementação da educação bilíngue no país, levando em conta os diferentes espaços de educação. Algumas escolas públicas em que a língua portuguesa sempre foi a língua de instrução passarão a ser bilíngues, criando espaços bilíngues em que tanto a língua portuguesa como a língua brasileira de sinais ocuparão espaços de línguas de instrução, dependendo de quem as acessar. Por outro lado, essas escolas contarão com o ensino dessas línguas de diferentes formas, tanto como L1 como L2. A faixa etária implicará diferentes estratégias linguísticas e pedagógicas para garantir uma educação bilíngue eficiente, ou seja, desde a aquisição da linguagem, no caso específico dos surdos, até as formas de ensinar e aprender irão passar pelas línguas de diferentes formas, envolvendo todos os alunos em distintos contextos. O letramento na língua portuguesa acontecerá de formas diferenciadas, dependendo das funções das línguas para os alunos. A escolarização, a preparação para o vestibular e o ingresso no ensino superior passarão por diferentes formas de educação bilíngue. Esses fatores determinarão as formas e os tipos de educação bilíngue nas escolas públicas brasileiras.

Bibliografia

BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

CUMMINS, J. Bilingual Children’s Mother Tongue: why is it important for education?
Disponível em: <www.iteachilearn.com/cummins> .Acesso em junho/2003.

LADD, P. Understanding Deaf Culture. In Search of Deafhood, Multilingual Matters Ltd., 2003.

OLIVEIRA, G. M. Monolinguismo e preconceito lingüístico. Disponível em:
<http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=92>. Acesso em outubro de 2004.

RAJAGOPALAN, K. Línguas nacionais como bandeiras patrióticas, ou a linguística que nos faz falhar: observando mais de perto o chauvinismo lingüístico emergente no Brasil. In _____.; SILVA, F. Lopes da (Orgs.). A lingüística que nos faz falhar: investigação crítica. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

SKLIAR; QUADROS. Bilingual Deaf Education in the South of Brazil. In International Journal Of Bilingual Education And Bilingualism, London, v. 7, n. 5, p. 368-382, 2004.

STROBEL, K. As imagens do outro sobre a cultura surda. 1. ed. Editora da UFSC. Florianópolis 2005.

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