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Carlos Afonso
Carlos Afonso
Investigador
Inclusão e mercado de trabalho – Papel da escola na transição para a vida adulta de alunos com NEE
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Publicado em 2005
Saber (e) educar, 10. ESE de Paula Frassinetti
Carlos Afonso
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Resumo

Neste texto começamos por (re)discutir a inclusão percebendo-a enquanto conceito e enquanto prática desejada, chamando, em especial, a atenção para algumas “ciladas da diferença” e para alguns efeitos perversos que podem advir de uma determinada “ideologia da inclusão”. Num segundo momento, reflectimos sobre a questão da inserção no mercado de trabalho salientando a sua importância no contexto vivencial. Finalmente, centramo-nos de forma específica na transição para a vida adulta de jovens portadores de deficiência percebendo de que forma a sociedade cria expectativas e condições para o seu desenvolvimento como cidadãos e equacionando o papel da escola neste contexto, nomeadamente a construção de currículos funcionais facilitadores do processo de transição.

Dilemas da inclusão

Falar de inclusão, nos tempos actuais, parece já uma questão recorrente embora isso possa iludir a evidência de que a inclusão é ainda mais um desejo do que propriamente uma realidade. Este termo, ao ter sido apropriado, discursivamente, por vários sectores, foi-se ajustando a diversos interesses pelo que se podem conceber interpretações que implicam uma ruptura com o estabelecido e outras que o enquadram numa visão neo-liberal de mascaramento das desigualdades a partir de uma suposta atenção às diferenças.

Com efeito, compatibilizar a igualdade de direitos (sociais, cívicos, etc.) com o respeito pela individualidade assegura-se um dos grandes dilemas da actualidade.

Segundo Samira Kauchakje (2003: 67) é somente a partir de meados do século XX que ocorre a vinculação dos movimentos pela inclusão ao direito à diferença, pois esta afirmação tinha até então “mais afinidades com acções e ideais conservadores que mantêm desigualdades e exclusões, e anulam ou restringem as possibilidades de relações políticas e sociais democráticas”. Torna-se, assim, difícil, por vezes, articular o direito à igualdade de possibilidades sociais com o direito à diferença. A tendência para a homogeneização ou para a guetização é tão forte que o equilíbrio se revela complicado e os próprios teóricos e activistas dos direitos humanos podem ficar enredados nesta aparente contradição. Há, portanto, que entender que “a noção de igualdade, como princípio de civilidade e como fundamento de direitos, é diametralmente oposta à ideia de igualdade como homogeneização e como não-reconhecimento de identidades, culturas ou necessidades específicas” (Kauchakje, 2003: 69). Neste contexto, podemos referenciar Boaventura Sousa Santos (2001) citado por David Rodrigues (2003: 94), quando afirma que “todos temos direito a ser iguais quando a diferença nos diminui e todos temos direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.

Assim, há o perigo de se cair nas “ciladas da diferença” que mais não fazem do que promover o distanciamento entre essas “tribos identitárias” e o resto da sociedade. No mesmo sentido, se pronuncia José Alberto Correia (2003: 46) ao alertar para alguns aspectos perversos que podem advir daquilo que denomina de “ideologia da inclusão” que seria geradora de “uma atitude de indiferença relativamente à diferença e, principalmente, uma atitude de profunda indiferença relativamente à desigualdade social”. A ênfase, por exemplo, em estratégias de diferenciação curricular e num reforço da autonomia da escola que geralmente assumem, no discurso pedagógico, um papel inovador e positivo podem comportar, em si, o risco de agravarem situações de desigualdade eliminando, nomeadamente, conflitualidades com o poder estatal e apostando numa meritocracia localizada.

A inclusão parece, pois, ter-se transformado numa nova ortodoxia (Hegarty, 2001) sem que se tenha em conta a necessidade de precisar o conceito e as mudanças que ele implica.

Ora, acreditamos que ele consubstancia uma forte mudança relativamente a perspectivas e práticas anteriores nomeadamente no que respeita ao atendimento a alunos com necessidades educativas especiais. No entanto, subscrevemos, inteiramente, a interrogação feita por Rodrigues (2003: 91) “poderá existir uma escola inclusiva numa sociedade que não o é?” pelo que não faz sentido ter uma concepção restrita ao ambiente escolar, mas uma visão global de uma educação inclusiva, numa sociedade que se pretende também inclusiva. Reconhecemos, contudo, o papel que a escola pode desempenhar e, sobretudo, as mudanças que esta ainda terá de efectuar. Por exemplo, ela tem de passar de um modelo de intervenção centrado na criança “diferente” para um modelo de intervenção centrado no currículo pelo que se torna fundamental (cf. Rodrigues, 2001) não só conhecer o aluno, mas também os seus ambientes de aprendizagem. Daí a importância da análise de todos os processos que rodeiam a criança e a escola o que passa por ultrapassar “uma ênfase exagerada na planificação individual” (Ainscow, 1997: 16). A preocupação do professor deve, por conseguinte, ter a ver com “a planificação das actividades que dizem respeito à classe, no seu conjunto” (idem). Nessa medida, não assumimos a escola inclusiva como uma resposta mais adequada para os alunos com deficiência ou com necessidades educativas especiais, mas como uma resposta potencialmente melhor para todos, quaisquer que sejam as suas características. No entanto, isso não significa o esvaziamento das diferenças, mas o reconhecimento do seu valor acrescentado, ou se quisermos, de que a diversidade é uma mais valia.

Assim, será que faz sentido falar de escola inclusiva ou simplesmente de escola? Miranda Correia (no prelo) alerta para o perigo de uma utilização abusiva e simplista do conceito de inclusão que levaria a “começarmos a chamar às nossas escolas, escolas inclusivas, e a afirmarmos, com uma pompa pós-modernista, que todos temos necessidades educativas especiais”. No seu entender, isto não está correcto e para evitar estas interpretações defende que “à escola inclusiva devíamos chamar-lhe simplesmente escola ou, talvez para se compreender a sua coevidade, designá-la por escola contemporânea” (idem).

Esta escola, no contexto português, assume ainda características mais específicas. Vários autores (exemplo: Stoer, Cortesão, Araújo, Santos) defendem que a escola portuguesa se encontra num processo de simultaneidade entre a consolidação e a crise da escola de massas. Com efeito, devido ao atraso estrutural provocado por um período de 48 anos de ditadura, só agora se encontra efectivamente consolidado o processo de escolarização da população com o ensino obrigatório até aos 15 anos ou final do 9.º ano de escolaridade. Este término está, igualmente, em discussão pois projecta-se o seu alargamento para 12 anos de escolaridade. Assim, podemos dizer que se obteve o acesso generalizado à escola num sistema maioritário de escola pública gratuita com alguma qualidade em que o sistema privado é apenas residual. Mas, garantido o acesso, não se encontra, porém, garantido o sucesso. A escola abriuse a uma nova população, a novos utentes sendo na sua essência interclassista, ou seja, no mesmo espaço podemos ter crianças oriundas dos mais variados níveis sócio-económicos e culturais e até de diferentes nacionalidades dada a crescente e recente procura de Portugal como país de acolhimento de imigrantes. Assim, a escola tornou-se um espelho da diversidade da sociedade com os seus problemas e virtudes. É aquilo que Cortesão (1998) parafraseando Santos considera como o “arco-íris na sala de aula”.

Mas, face a esta realidade, a escola, enquanto organização, manteve-se muito fiel ao que sempre fora, isto é, voltada para o que alguns autores (Stoer e Cortesão, 1999: 38) designam como WASP português por analogia com a situação anglo-saxónica em que o “aluno-tipo” era considerado como tendo características de White Anglosaxon protestant (WASP). No caso português seria a “criança portuguesa, branca, masculina, de classe média, oriunda de meios urbanos e que professa a religião católica” (Stoer e Cortesão, 1999: 38). Este seria o retrato de um aluno-tipo ideal que assenta no mito da homogeneidade como um factor de qualidade das escolas (Rodrigues, 2003). Ele sobrevive no imaginário social e traduz-se, entre outros aspectos, na ideia de que para todos terem as mesmas oportunidades educativas, devem fazer exactamente o mesmo, ao mesmo tempo. Tal como refere Cortesão (1998: 4), “a escola, a educação constrói-se e funciona habitualmente para o ‘alunotipo’ o tal ‘cliente ideal’ pelo que a presença, a participação de grupos com comportamentos diferentes é por vezes muito perturbadora do seu funcionamento”.

A manutenção dessa ideia configura um olhar daltónico sobre a diversidade existente vendo nesta a causa do insucesso escolar. Por outras palavras, muitos discursos de docentes e até de responsáveis políticos apontam para que a falência da escola actual se deve à sua abertura a uma população diversificada. Daí até à defesa de uma escola que seleccione, criteriosamente, a sua “clientela” vai um pequeno passo, mesmo que ele apareça encoberto em propostas de grupos de nível, currículos alternativos ou de excelência.

Assim, ao mesmo tempo que a escola se abre a novos públicos e democratiza o seu acesso vê-se confrontada com a sua falência por não encontrar respostas. Deve ressaltar- se que as críticas que aqui se fazem à escola devem ser entendidas não como um ataque aos profissionais que nelas trabalham, mas como uma reflexão sobre a sua própria essência, isto é, o reconhecimento de que o modelo de escola uniformizadora assente num currículo hegemónico e supostamente homogéneo não faz sentido. Talvez seja chegado o momento de assumir a necessidade de rupturas que vão mais além de uma mera cosmética pedagógica bem enrolada em perspectivas aparentemente progressistas. Há que ter em conta que a escola actual ainda se baseia na tentativa de construção de uma homogeneidade que se concretizava no padrão organizativo de classe que, segundo Barroso (2003: 29), “simultaneamente, adquire o valor de ‘medida’ na progressão dos alunos (passar de ‘classe’) e na divisão temporal do percurso escolar (o termo ‘classe’ vai tornando-se sinónimo de ‘ano’ de escolaridade)”.

É, portanto, difícil para muitos docentes conceber um percurso do aluno que não esteja directamente “colado” à sua colocação num determinado ano de escolaridade como se esse facto garantisse que ele dispunha de todas as competências necessárias e fizesse todas as aprendizagens exigidas. As unidades “classe” e “ano de escolaridade” garantiriam, desse modo, segundo estes, a necessidade de um ensino igual para todos, ou seja, legitimavam a uniformização. Alterar esta concepção pressupondo percursos evolutivos individuais e unidades organizativas diferenciadas do espaço escolar e do currículo parece, para muitos, uma utopia desnecessária porque não situam o problema na rigidez da escola, entendida aqui no sentido de que não muda nem quer mudar, mas sim na diversidade da população. A “culpa” seria toda do cliente e nunca do serviço que lhe é prestado, quase como se pudéssemos dizer que “as escolas são óptimas, o problema é terem alunos”. Seria, portanto, necessário, encontrar novos espaços e formas de actuar de modo a garantir-se um sucesso para todos.

As reflexões que atrás colocámos parecem-nos importantes para podermos contextualizar a relação da escola com o mercado de trabalho de modo a ser possível um melhor entendimento da sua resposta à situação específica de alunos com necessidades educativas especiais.

A inserção no mercado de trabalho

Como vimos, a idade de entrada directa no mercado de trabalho tem vindo a ser cada vez mais avançada dada a importância que se atribui ao processo de escolarização, mas também devido à crise mundial que ameaça o crescimento económico e o emprego. A Europa vive períodos de recessão e Portugal, em particular, tem tido nos últimos anos, algumas dificuldades em sair de uma crise que tem raízes estruturais fortes e algumas vicissitudes conjunturais. Nessa medida, a escola funciona como “tampão” relativamente à pressão social do desemprego. Só que esse facto comporta um acréscimo de problemas na medida em que faz permanecer na escola, durante muito tempo, alunos que nela pouco aprendem, que estão desmotivados e para quem esta escola nada representa em termos de investimento pessoal e social. Estes alunos são, também, muitas vezes, elementos de provocação de conflito na escola devido aos seus problemas de comportamento e até de violência o que parece legitimar em alguns pais e professores a ideia de que seria bom um regresso ao passado e a uma selecção social do público da escola. Face a uma política pública que favorece uma escola de acesso livre para todos, alguns parecem buscar novos espaços de elite recorrendo a colégios particulares. Assim, parece que ao mesmo tempo que a escola pública se torna “inclusiva” vai perdendo uma das suas fatias (a elite) gerando um processo paradoxal de exclusão do topo.

Por outro lado, não podemos esquecer as dificuldades de um mercado de trabalho português, de fraca competitividade internacional sobretudo no contexto de uma União Europeia com 25 países. Nesse sentido, assiste-se a um percurso de construção profissional que Joaquim Azevedo compara ao “voo de borboleta”, isto é, a um ziguezague entre formação e inserção directa no trabalho produtivo. Aquilo que acontece, com frequência, é a existência de períodos de alternância entre desemprego e ocupação em que a formação se assume simultaneamente como um potenciador de novas oportunidades e como um recurso económico dado o seu financiamento. Por outro lado, não podemos esquecer que o sistema educativo português assenta numa escolarização fortemente académica com pouca relação com uma inserção profissional. Acresce a isso a existência de algumas vias alternativas ao nível do ensino secundário (ensino técnico-profissional e tecnológico) mais voltadas para esta problemática, mas que assumem características de menor valia social. É, portanto, neste quadro, que devemos ter em conta as possibilidades dos jovens acederem a um emprego.

Se isto se coloca em jovens, considerados “normais”, a situação agrava-se quando se trata daqueles que apresentam algum tipo de deficiência. Segundo dados da União Europeia, referenciados por Azevedo (2005- no prelo), “cerca de 14,5% dos seus activos (idades compreendidas entre os 16 e os 64 anos) referem alguma forma de deficiência” o que significaria, no conjunto dos 25 países, alguma coisa como 40 milhões de pessoas. Isto implicaria, necessariamente, a definição de políticas importantes e urgentes. Até porque, se acreditamos e defendemos uma escola inclusiva, não podemos concretizá-la efectivamente se não houver uma saída adequada para os jovens que a frequentaram.

Ora, ainda de acordo com Azevedo (idem), podemos encontrar uma série de obstáculos no acesso ao emprego por parte das pessoas com deficiência e que se poderiam resumir em:

  • falta de flexibilidade no ajustamento dos postos de trabalho e nos horários de trabalho;
  • falta de informação e de visão dos empresários acerca da importância e das possibilidades de emprego das pessoas com deficiência;
  • relutância em investir nas adaptações necessárias à promoção do emprego das pessoas com deficiência;
  • falta de apoio financeiro aos empregadores para adaptar as instalações e criar os lugares de trabalho adequados;
  • o desemprego em geral que tende a remeter as pessoas com deficiência ainda mais para a margem;
  • desconhecimento acerca dos sistemas de incentivos à contratação de pessoas com deficiência e à adaptação de postos de trabalho;
  • desconhecimento acerca dos benefícios fiscais articulados ao emprego de pessoas com deficiência.

Estes aspectos, sem dúvida, perturbam a possibilidade de uma eficaz e real inserção dos deficientes no trabalho e exigem a tomada de medidas urgentes até pela importância que esta componente assume na vida dos jovens.

Com efeito, um pequeno estudo, por nós orientado há alguns anos e que em breve vai ser publicado (Afonso e Santos, 2005 – no prelo), demonstra claramente esse aspecto. Na altura, os dados recolhidos junto de uma amostra de 6 jovens com deficiência mental e das suas famílias apontavam, no que respeita ao trabalho para, entre outros, os seguintes aspectos:

  • a organização e estruturação das actividades da semana desenvolvem-se a partir do trabalho pelo que no fim-de-semana há muita dificuldade em estabelecer rotinas e ocupar o tempo;
  • todos os jovens revelam empenhamento no trabalho e cumprimento de horários apesar de dificuldades em perceber as horas, por exemplo, mas criando estratégias para a sua superação;
  • a nível do cumprimento das tarefas, um dos jovens não as realiza de forma sistemática, estando dependente da sua vontade (uma vez que trabalha para o tio) e dois apresentam algumas dificuldades motivadas pela falta de aquisições académicas;
  • todos os jovens demonstram gosto pelo trabalho que realizam;
  • a relação com os outros, exceptuando a família, é fomentada pelas relações que se estabelecem com os colegas de trabalho, apresentando apenas um dos jovens alguns problemas nesse relacionamento;
  • a necessidade de terem que se deslocar para o trabalho permite que os jovens desenvolvam a sua capacidade de se deslocar no meio que, em certos casos, se limita apenas a esse percurso casa – trabalho;
  • os jovens não são remunerados na devida proporção do trabalho que realizam, existindo mesmo um deles que não recebe qualquer comparticipação;

Vemos aqui, através desta pequena amostra, uma indicação clara do papel que o trabalho pode ter em jovens com estas características. No entanto, apesar desta componente ser muito importante ela é apenas uma parcela do que consideramos o processo de transição para a vida adulta de jovens com necessidades educativas especiais. As questões que se colocam à saída do percurso escolar e a quem é responsável, de alguma forma, pelo seu acompanhamento, quer se trate dos pais ou professores não se esgotam, por conseguinte, na definição de uma inserção profissional/ocupacional. Daí devermos ter em conta uma visão mais ampla que comporte outras dimensões do sujeito.

Transição para a vida adulta de jovens com NEE

Nesse sentido, se releva a importância do processo de transição tal como, aliás, é referenciado pela Declaração de Salamanca de 1994, ao afirmar que “os jovens com necessidades educativas especiais devem ser ajudados para fazerem uma efectiva transição da escola para a vida adulta. As escolas devem apoiá-los a tornarem-se economicamente activos e dotá-los com as competências necessárias à vida diária, oferecendo formação em competências que respondam às exigências sociais e de comunicação e às expectativas da vida adulta”.

No entanto, este é um processo com bastantes dificuldades. De acordo com um estudo de investigadores portugueses publicado pelo Ministério da Educação (Costa, 2004) as grandes questões que responsáveis por escolas colocavam relativamente a este processo situavam-se nos aspectos que são visiveis na Figura n.º 1.

Para além dos factores relacionados com as dificuldades de aceitação de estágios em empresas e encontrar emprego que são cerca de 30% temos de ter em conta as dificuldades inerentes aos alunos e ao sistema educativo que totalizam outros 30%. Estes aspectos merecem a nossa preocupação e realçam aquilo que já tínhamos assinalado quanto ao papel da escola neste processo. Contrariamente ao que alguns apontam, defendemos que a escola que acolheu estes jovens durante vários anos não pode alhear-se desta fase tão importante das suas vidas, em que colocam problemas semelhantes aos de outros jovens, mas também circunstâncias particulares. Com efeito, a trajectória pessoal era até aí fortemente marcada pelo percurso escolar, mesmo ao nível das rotinas diárias (levantar, ir para a escola, estar na escola com os outros, almoçar, regressar a casa). Terminado o tempo da escolaridade, o quotidiano parece esvaziar-se e há necessidade de criar uma nova escala de tempos e ritmos e novas relações sociais dado o afastamento de colegas e professores com quem se tinha contacto na escola. Agora há que criar novos laços e novas amizades num meio onde, por vezes, nunca se conviveu e onde tudo tem de ser aprendido quase como uma primeira vez. Isso pode levar a que uma simples ida a um café se revele uma grande confusão. Daí as limitações nas saídas de casa que podem ver-se ainda agravadas no caso das jovens dado o receio da família de que estas possam ser abusadas sexualmente. Aliás a relação com o sexo oposto e a possibilidade de namoro e casamento são quase que eliminadas, à partida, por pressões familiares muito intensas o que nos levaria para uma discussão sobre a importância da sexualidade nos jovens com deficiência. Estes são apenas alguns aspectos que fazem pensar na necessidade de que estes jovens construam um projecto pessoal de vida que tenda, na medida do possível, para a sua autonomia como sujeito. Sabemos que este é um dos grandes problemas com que as famílias se debatem. Por um lado, têm medo de expor o jovem a situações de risco e, por isso, tendem a exagerar na sua protecção. Por outro lado, desejariam que este
fosse mais independente nomeadamente porque começam a temer o que pode acontecer a este jovem se eles (pais) morrerem.

A família volta a um período de angústia, que poderíamos considerar quase como de regresso ao “luto” vivenciado aquando da descoberta da deficiência. O receio do futuro, a perda de expectativas, a sensação de impotência face ao problema agrava-se dado que se perdeu a segurança que a presença na escola oferecia. Realce-se que no estudo publicado pelo Ministério da Educação (Costa, 2004) se considera como sendo de 9% o conjunto de problemas inerentes à família e que têm a ver essencialmente com:

  • baixas expectativas, não aceitação dos problemas das crianças ou jovens, não aceitação dos programas propostos, dificuldade para colaborar na sua educação;
  • problemas sócio-económicos ou familiares.

Nesse sentido, é importante um forte apoio à família e ao jovem nesse processo. Assim, podemos verificar que uma transição adequada implica uma multiplicidade de aspectos conforme, aliás, é salientado por um relatório específico da Agência Europeia para o Desenvolvimento em NEE (2002: 33).

  • é um processo que deve ser apoiado pela existência e implementação de legislação e por medidas de política;
  • necessita de garantir a participação do aluno e de respeitar as suas escolhas pessoais. O aluno, a sua família e os profissionais devem trabalhar em conjunto na formalização de um plano individual;
  • necessita da implementação de um plano educativo individual focalizado no progresso do aluno e em quaisquer mudanças a introduzir na situação escolar;
  • deve ser baseada no envolvimento e na cooperação de todas as partes envolvidas;
  • requer uma estreita colaboração entre escolas e mercado de trabalho, de forma a que o aluno experimente condições reais de trabalho;
  • é parte de um longo e complexo processo de preparação do aluno para entrar na vida económica e adulta

Nessa medida, há que atender aos diversos domínios da vida do sujeito, de acordo com aquilo que Jurado de Los Santos (1993) nos apresenta e que podemos sintetizar na Figura 2.

Temos, assim, três grandes áreas/domínios de acção da pessoa (vida familiar e comunitária, vida profissional, ócio e tempos livres) a que se liga o fomento da autonomia, a nível das habilidades necessárias para a manutenção e desenvolvimento pessoal. Por último, surge a área/domínio (autonomia de movimento) que estabelece a relação entre a pessoa e a comunidade.

Estas cinco áreas/domínios “representam como vive uma pessoa, trabalha, se entretém e se move ou utiliza os transportes na comunidade” (Jurado de Los Santos,1993 citado por Afonso e Santos, 2005- no prelo).

A escola tem que estar atenta a estas dimensões de modo a poder contribuir positivamente para a construção de um projecto de vida. Aí se insere a definição de Planos de Transição para a Vida Adulta e o desenvolvimento de currículos funcionais. Este trabalho tem de ser feito por um conjunto de elementos que envolvem não somente o professor de educação especial, mas também o do ensino regular e outros técnicos constituindo o que se pode considerar uma equipa multidisciplinar que funcione verdadeiramente de forma articulada.

Conhecemos, perfeitamente, as limitações que advêm, frequentemente, de um trabalho descoordenado entre todos aqueles que intervêm junto de crianças com necessidades educativas especiais com a sua “repartição” em compartimentos estanques, esquecendo que existe uma globalidade a ter em conta. Ora, numa escola que se pretende inclusiva, esta dimensão é uma prioridade e aí têm, igualmente, de existir avanços relativamente a outras concepções.

Se, neste processo, o professor do ensino regular desempenha um papel determinante, não devemos, contudo, esquecer a necessidade de mudanças também no que toca ao professor de Educação Especial que deve assumir-se como um “professor de métodos e recursos” cujo papel é “colaborar e ajudar os professores da aula a desenvolverem estratégias e actividades que favoreçam a inclusão de alunos com necessidades especiais” (Marchesi, 2001: 100). A actividade destes professores tem de ser articulada com a dinâmica da escola de modo a tornarem-se pessoas que ajudam na busca de soluções para as dificuldades surgidas.

Os programas de transição delineados em acordo firmado entre professores, pais e o próprio aluno, devem estabelecer as principais metas e áreas a desenvolver nos anos terminais de inserção na educação escolar de modo a que isso se articule com o projecto de vida futura. Nessa medida, é necessário um conhecimento muito pormenorizado dos contextos existenciais o que passa por uma proximidade muito grande.

Em Portugal, esse trabalho é, geralmente, inserido naquilo que se designou por currículos alternativos. No contexto deste trabalho, não queremos contudo, entrar nessa polémica que aliás serviu de base à dissertação de mestrado que desenvolvemos há uns anos atrás (Afonso, 1995).

Partamos pois do princípio de que eles se assumem e realizam enquanto currículos funcionais, ou seja, que têm as seguintes características de acordo com Brown (1986, citado por Benard da Costa, 1996):

  • são individualizados e estão relacionados com a idade cronológica;
  • incluem, numa proporção equilibrada, actividades consideradas “funcionais”;
  • desenvolvem-se, sempre que necessário e possível, em contextos não escolares e com a colaboração de pessoas que não são profissionais da educação;
  • as aprendizagens têm lugar, sempre que possível, em contextos naturais e em situações que lhes dão significado
  • têm probabilidade de ser praticados fora do ambiente escolar e ao longo da vida · contêm itens que são susceptíveis de ser aprendidos pelo aluno num tempo razoável
  • pretendem responder às expectativas presentes e futuras dos pais ou, quando possível, dos próprios alunos;

Estes currículos correspondem a uma possibilidade de diferenciação curricular tendo em conta a adopção da ideia de um continuum de níveis de adaptação curricular proposta por Hegarty, 1985 (citado por Miranda Correia, 1997: 112) que parte sempre do currículo regular e que se estrutura em função das características individuais. Assim, o currículo desenhado para cada aluno é situado, nessa referência, consoante os seus componentes se aproximem mais do currículo regular (associado às aprendizagens básicas culturais) ou se aproximem do currículo especial (ligado às aprendizagens básicas universais).

Tendo em conta as características específicas do processo de transição há que atender aos contextos vivenciais do aluno pelo que devem ser criadas algumas estratégias para desenvolver conteúdos curriculares funcionais que passam, conforme Benard da Costa (1996) por:

  • delinear as áreas curriculares
    • a casa
    • a comunidade
    • a escola
    • a vida de recreação e lazer
    • o trabalho
  • delinear os ambientes em que a sua vida se desenrola e se espera venha a desenrolar no futuro
  • delinear e inventariar os sub-ambientes em que o aluno funciona ou pode vir a funcionar
  • seleccionar, em cada sub-ambiente, as actividades que o aluno pode (ou deve) realizar ou preparar-se para realizar no futuro
  • delinear as competências que é necessário dominar para se empreender a aprendizagem de cada actividade
  • elaborar e implementar as intervenções pedagógicas necessárias à aprendizagem das competências delineadas.

Conclusão

Assim, em suma, analisámos, de forma breve, alguns dos factores que, em nossa opinião, podem afectar o processo de transição para a vida adulta de jovens com necessidades educativas especiais, sobretudo com deficiência.

Parece claro que sendo o campo da Educação Especial composto por uma grande e divergente abrangência de situações este processo de transição será vivido de forma diferente consoante essas especificidades. Nuns casos certamente as dificuldades serão maiores e noutros menores atendendo às características pessoais e sociais. Neste trabalho, contudo, pretendemos apenas levantar algumas das questões que podem apresentar-se como comuns e sobretudo que podem ter uma influência mais marcante em casos mais complexos.

Embora já tenhamos assinalado este factor não podemos ignorar o importante papel da família no processo dado que é muito em função das suas expectativas e possibilidades de reacção que se poderão encontrar alternativas para problemas que, em determinada altura, podem ser considerados como insolúveis. A escola, como referimos, desempenha, igualmente, um papel crucial nomeadamente no seu acompanhamento nos anos terminais de inserção na educação escolar promovendo estratégias de diferenciação curricular que atendam aos aspectos necessários a um bom desenvolvimento pessoal e social dos jovens não somente na sua relação com o trabalho, mas em todos os momentos da sua vida de modo a que eles possam assumir-se verdadeiramente como pessoas.

Muito há ainda para fazer neste campo, mas isso torna-se cada dia mais urgente sob pena de que um investimento feito numa escola que se pretende inclusiva se perca por falta de articulação com o período pós-escolar, ou seja, com a vida real, normal de cada um que é um direito inalienável de todos quaisquer que sejam as suas características e diferenças.

Notas

Este texto serviu de base a uma comunicação apresentada no V Encontro Luso-brasileiro realizado no Recife- Brasil em Agosto de 2005.

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