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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
Alfabetização e o Ensino da Língua de Sinais
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Publicado em 2000
Textura, Canoas, n.3, p.53-62
Ronice Müller de Quadros
Resumo

O presente trabalho desenvolve duas questões: a alfabetização e o ensino da língua de sinais no processo educacional da criança surda. A alfabetização em sinais e na escrita de sinais são formas de garantir a aquisição da leitura e escrita da criança surda e o ensino da língua de sinais de forma consciente é um modo de prover o refinamento de tais processos. Além de apresentar uma análise de cada questão, este trabalho lista alguns aspectos lingüísticos e atividades que devem ser considerados nesse contexto educacional.

Introdução

Os objetivos deste artigo envolvem duas questões básicas: a alfabetização e o ensino da língua de sinais no processo educacional de alunos surdos. Para isto, estou considerando aqui os estudos relacionados à comunidade surda e à língua de sinais brasileira. Ao longo das discussões são propostas algumas abordagens dos aspectos em questão no processo educacional, bem como sugestões de atividades.

Gostaria de esclarecer que parto de pressupostos básicos que não serão discutidos no presente artigo, uma vez que dispomos de razoável literatura que aborda tais aspectos (por exemplo, Ferreira-Brito, 1992; Quadros, 1997a; 1997b; Skliar, 1997a, 1997b, 1997c; Souza, 1998) 2. Listo a seguir tais pressupostos 3:

  • Bilingüismo - quando me refiro à “bilingüismo” não estou estabelecendo uma dicotomia, mas sim reconhecendo as línguas envolvidas no cotidiano dos Surdos, ou seja, a língua de sinais brasileira (LSB) e o português no contexto mais comum do Brasil;
  • Multiculturalismo – está relacionado ao reconhecimento das culturas, bem como, de semelhanças e diferenças comuns existentes entre a forma de ser, agir e pensar das pessoas surdas e das pessoas ouvintes da comunidade brasileira;
  • Identidade/cultura surda – envolve o incentivo da formação e preservação da identidade surda através do reconhecimento e valorização da comunidade surda e produção cultural específica;
  • LSB – língua de sinais brasileira, língua que é o meio e o fim da interação social, cultural e científica da comunidade surda brasileira 4.

1. Alfabetização na língua de sinais brasileira

Quando pensamos em alfabetização, a idéia mais popular está relacionada a decifração do código escrito. Talvez o próprio nome dado a esse processo seja uma das causas de tal idéia, “alfabetização”, ligada à “alfabeto”. No entanto, o objetivo do presente artigo ao abordar o tema alfabetização envolve um conceito muito mais amplo desse termo, um processo que resulta da interação com a língua e com o meio.

Quando usamos o artigo definido “a língua” e “o meio”, estamos nos referindo à língua e ao meio que a criança surda interage, ou seja, a LSB e pessoas que usam essa língua. Eu não vou discutir aqui as formas distorcidas de comunicação em que as crianças surdas estão expostas; tais como, português sinalizado, gestos e quaisquer outros tipos de comunicação que não envolvam uma verdadeira língua. A razão de minha decisão reflete minha postura diante da LSB, “a” língua em que a comunidade surda expressa suas idéias, pensamentos, poesias e arte. “A” língua que é usada como meio e fim de interação social, cultural e científica. Os falantes nativos dessa língua conversam, planejam, sonham, brigam, contam estórias explorando meios riquíssimos e complexos que são próprios de uma língua de sinais, no caso do Brasil, da LSB.

Alfabetização de crianças surdas enquanto processo; portanto, só faz sentido se acontece na LSB, a língua que deve ser usada na escola para aquisição da língua, para aprender através dessa língua e para aprender sobre a língua. A primeira questão que surge é a seguinte: Qual é o nível de proficiência na própria língua das crianças surdas em fase escolar?

Então discutamos sobre o desenvolvimento da LSB nas crianças pré-escolares. Não existe ainda produção científica suficiente sobre o processo de aquisição da LSB, bem como não dispomos de instrumentos que avaliem o estágio em que a criança se encontra na sua produção em sinais. Alguns registros têm sido feitos quanto ao desenvolvimento da língua de sinais americana que serão sintetizados a seguir 5.

1.1 Estágios de aquisição da língua de sinais

Por volta dos 2 anos de idade, as crianças estão produzindo sinais usando um número restrito de configurações de mão (sugere-se que tal número corresponda a sete configurações de mão), bem como simples combinações de sinais expressando fatos relacionados com o interesse imediato, com o “aqui” e o “agora”. As crianças nesta fase começam a marcar sentenças interrogativas com expressões faciais concomitantes com o uso de itens lexicais para expressar sentenças interrogativas (QUEM, O QUE e ONDE). Nesse período, também é verificado o início do uso da negação não manual através do movimento da cabeça para negar, bem como o uso de marcação não manual para confirmar expressões comuns na produção do adulto. Também observa-se que as crianças começam a introduzir classificadores nos seus vocabulários 6.

Por volta dos 3 anos de idade, as crianças tentam usar configurações mais complexas para a produção de sinais, mas freqüentemente tais tentativas acabam sendo expressas através de configurações de mãos mais simples (processos de substituição). Os movimentos característicos dos sinais continuam sendo simplificados, embora já se observe o uso da direção dos movimentos com êxito em alguns contextos. Classificadores são usados para expressar formas de objetos, bem como o movimento e trajetórias percorridos por tais objetos. Aspecto começa a ser incorporado aos sinais para expressar diferenças entre ações (por exemplo, CORRER devagar, CORRER rápido). A criança começa a estender as marcas de negação sobre sentenças assim como os adultos fazem, inclusive omitindo o item lexical de negação. As crianças, também, já utilizam estruturas interrogativas de razão (POR QUE). Nesse período, as crianças começam a contar estórias que não necessariamente estejam relacionadas aos fatos do contexto imediato. Elas falam de algum fato ocorrido em casa, sobre o bichinho de estimação, sobre o brinquedo que ganhou, etc. No entanto, as vezes não fica claro o estabelecimento dos referentes no espaço, o que dificulta o entendimento das estórias.

Por volta dos 4 anos de idade, as crianças já apresentam condições de produzir configurações de mãos bem mais complexas, bem como o uso do espaço para expressar relações entre os argumentos, ou seja, as crianças exploram os movimentos incorporados aos sinais de forma estruturada. A partir desse período, elas começam a combinar unidades de significado menores para formar novas palavras de forma consistente. Nesse período, começam a ser observadas a produção de sentenças mais complexas incluindo topicalizações. As expressões faciais são usadas de acordo com a estrutura produzida, isto é, as produções não manuais das interrogativas, das topicalizações e negações são produzidas corretamente. As crianças ainda não conseguem conservar os pontos estabelecidos no espaço quando contam suas estórias, apesar de já serem observadas algumas tentativas com sucesso. Aos poucos, torna-se mais claro o uso da direção dos olhos para concordância com os argumentos, bem como o jogo de papéis desempenhado através da posição do corpo explorados para o relato de estórias.

Na verdade, em análises da produção das crianças adquirindo ASL e LSB observei que a direção dos olhos é usada consistentemente por volta dos 2 anos de idade. O uso da concordância verbal através do olhar é uma das informações que garante a compreensão do discurso da criança durante este período tão precoce 7.

1.2 Instrumentos do processo de alfabetização

Considerando essa evolução, o processo de alfabetização se inicia naturalmente. Duas chaves preciosas desse processo são o relato de estórias e a produção de literatura infantil em sinais 8. O relato de estórias inclui a produção espontânea das crianças e do professor, bem como a produção de estórias existentes; portanto, de literatura infantil.

A comunidade surda tem como característica a produção de estórias espontâneas, de contos e de piadas que passam de geração em geração relatadas por contadores de estórias em encontros informais, normalmente em associações de surdos. Infelizmente, nunca houve preocupação de registrar tais produções. Pensando na alfabetização, tal material é fundamental para esse processo se estabelecer. A produção de contadores de estórias, de estórias espontâneas e de contos que passam de geração em geração são exemplos de literatura em sinais que precisam fazer parte do processo de alfabetização de crianças surdas. A produção em sinais artística não obteve a atenção merecida nas escolas de surdos, uma vez que a própria língua de sinais não é a língua usada nas salas de aulas pelos professores. Desta forma, estamos reproduzindo iletrados em sinais. A LSB é “a” língua e merece receber o tratamento de ser “a” língua. Sendo assim, recuperar a produção literária da comunidade surda é urgente para tornar eficaz o processo de alfabetização. Literatura em sinais é essencial para tal processo. Os bancos escolares devem se preocupar com tal produção, bem como incentivar seu desenvolvimento e registro. O que os alunos produzem hoje espontaneamente, pode se transformar em fonte de inspiração literária dos alunos de amanhã.

A LSB é uma língua espacial-visual e existem muitas formas criativas de explorá- la. Configurações de mão, movimentos, expressões faciais gramaticais, localizações, movimentos do corpo, espaço de sinalização, classificadores são alguns dos recursos discursivos que tal língua oferece para serem explorados durante o desenvolvimento da criança surda e que devem ser explorados para um processo de alfabetização com êxito.

Algumas investigações realizadas em escolas bilíngües americanas têm evidenciado a importância de explorar tais aspectos observando o nível de desenvolvimento da criança. Os relatos de estórias e a produção literária, bem como a interação espontânea da criança com outras crianças e adultos através da LSB devem incluir os aspectos que fazem parte desse sistema lingüístico. A seguir eu listo alguns dos aspectos que precisam ser explorados no processo educacional:

  • estabelecimento do olhar
  • exploração das configurações de mãos
  • exploração dos movimentos dos sinais (movimentos internos e externos, ou seja, movimentos do próprio sinal e movimentos de relações gramaticais no espaço)
  • utilização de sinais com uma mão, duas mãos com movimentos simétricos, duas mãos com movimentos não simétricos, duas mãos com diferentes configurações de mãos
  • uso de expressões não manuais gramaticalizadas (interrogativas, topicalização, foco e negação)
  • exploração das diferentes funções do apontar
  • utilização de classificadores com configurações de mãos apropriadas (incluem todas as relações descritivas e preposicionais estabelecidas através de classificadores, bem como, as formas de objetos, pessoas e ações e relações entre eles, tais como, ao lado de, em cima de, contra, em baixo de, em, dentro de, fora de, atras de, em frente de, etc.)
  • exploração das mudanças de perspectivas na produção de sinais
  • exploração do alfabeto manual
  • estabelecimento de relações temporais através de marcação de tempo e de advérbios temporais (futuro, passado, presente, ontem, semana passada, mês passado, ano passado, antes, hoje, agora, depois, amanhã, na semana que vem, no próximo mês, etc.)
  • exploração da orientação da mão
  • especificação do tipo de ação, duração, intensidade e repetição (adjetivação, aspecto e marcação de plural)
  • jogos de perguntas e respostas observando o uso dos itens lexicais e expressões não manuais correspondentes
  • utilização de “feedback” (sinais manuais e não-manuais específicos de confirmação e negação, tais como, o sinal CERTO-CERTO, o sinal NÃO, os movimentos de cabeça afirmando ou negando)
  • exploração de relações gramaticais mais complexas (relações de comparação, tais como, isto e aquilo, isto ou aquilo, este melhor do que aquele, aquele melhor do que este, este igual àquele, este com aquele; relações de condição, tais como, se isto então aquilo; relações de simultaneidade, por exemplo, enquanto isto acontece, aquilo está acontecendo; relações de subordinação, como por exemplo, aquele que tem isso, está fazendo aquilo)
  • estabelecimento de referentes presentes e não presentes no discurso, bem como o uso de pronominais para retomada de tais referentes de forma consistente
  • exploração da produção artística em sinais usando todos os recursos sintáticos, morfológicos, fonológicos e semânticos próprios da LSB.

A proposta é de tornar rica e lúdica a exploração de tais aspectos da LSB que possibilitam tal língua ser um sistema lingüístico complexo. As crianças precisam dominar tais aspectos para explorar toda a capacidade criativa que pode ser expressa através de uma possibilitando o amadurecimento das suas capacidades lógica e cognitiva. Através da língua, as crianças discutem e pensam sobre o mundo. Elas estabelecem relações e organizam o pensamento. As estórias e a literatura são meios de explorar tais aspectos e tornar acessível à criança todos os recursos possíveis de serem explorados.

As relações cognitivas que são fundamentais para o desenvolvimento escolar estão diretamente relacionadas à capacidade da criança em organizar suas idéias e pensamentos através de uma língua na interação com os demais colegas e adultos. O processo de alfabetização vai sendo delineado com base na descoberta da própria língua e nas relações estabelecidas através da língua.

A riqueza de informação se torna fundamental. A interação comunicativa passa a apresentar qualidade e quantidade viabilizando um processo educacional rico e complexo. A alfabetização passa, então, a ter valor real para a criança.

Algumas formas de produção artísticas em LSB que podem ser incentivadas para a utilização de todos os recursos lingüísticos são:

  • produção de estórias utilizando configurações de mãos específicas, por exemplo, as configurações de mãos mais comuns utilizadas na língua; as configurações de mãos do alfabeto; as configurações de mãos dos números
  • produção de estórias na primeira pessoa
  • produção de estórias sobre pessoas surdas
  • produção de estórias sobre pessoas ouvintes

O processo de alfabetização continua através do registro das produções das crianças. Surge, então, outra questão: quais são as formas de registro? As formas de registros iniciais são essencialmente visuais e precisam refletir a complexidade da LSB. Explorar a produção de vídeos de produções literárias de adultos, bem como das próprias produções das crianças, é uma das formas mais eficientes de garantir um registro da produção em sinais com qualidade. A filmagem de adultos produzindo estórias, bem como dos próprios alunos são instrumentos valiosos no processo de reflexão sobre a língua, além é claro de serem instrumentos que as crianças curtem com prazer. No entanto, uma forma escrita da língua de sinais torna-se emergente para a continuidade do processo de alfabetização. O sistema escrito de sinais expressa as configurações de mãos, os movimentos, as direções, a orientação das mãos, as expressões faciais associadas aos sinais, bem como relações gramaticais que são impossíveis de serem captadas através de sistemas de escrita alfabéticos. Aquele sistema tende a sistematizar a língua de sinais, assim como qualquer outro sistema de escrita, o que faz parte do processo.

O sistema escrito de sinais é uma porta que se abre no processo de alfabetização de crianças surdas que dominam a língua de sinais utilizada no país. Esse sistema envolve a composição das unidades mínimas de significado da língua compondo estruturas em forma de texto. A seguir apresento um exemplo em que está registrado uma relação de significação estabelecida utilizando vários recursos da língua de sinais brasileira 9:

___________eg _________________eg ______hn
IX JOHNa IX MARYb aAUXb GOSTAR

O John gosta da Mary

Nesta sentença, têm-se a marcação não manual, o estabelecimento do referente JOHN à esquerda do sinalizador, o estabelecimento do referente MARY à direita do sinalizador, o uso de um auxiliar que estabelece a relação gramatical entre JOHN, o sujeito dessa frase, com MARY, o objeto, enfatizado através da direção do corpo e o olhar e o verbo GOSTAR. Obviamente que este exemplo não é simples, minha intenção foi apresentar um exemplo para demonstrar a possibilidade de registrar aspectos complexos da língua através do sistema de escrita de sinais 10.

A criança surda que está passando por um processo de alfabetização imersa nas relações cognitivas estabelecidas através da língua de sinais para organização do pensamento, naturalmente passa a registrar as relações de significação que estabelece com o mundo. Diante da experiência com o sistema de escrita que se relaciona com a língua em uso, a criança passa a criar hipóteses e a se alfabetizar. “Experiência” com o sistema de escrita significa ler essa escrita. Leitura é uma das chaves do processo de alfabetização. Ler sinais é fundamental para que o processo se constitua. Obviamente que esse processo de leitura deve fazer parte de objetivos pedagógicos claros no desenvolvimento das atividades. Eu menciono alguns dos objetivos a serem trabalhados pelo professor (em sinais):

  • desenvolver o uso de estratégias específicas para resolução de problemas
  • exercitar o uso de jogos de inferência
  • trabalhar com associações
  • desenvolver as habilidades de discriminação visual
  • explorar a comunicação espontânea
  • ampliar constantemente o vocabulário
  • oferecer constantemente literatura impressa na escrita em sinais
  • proporcionar atividades para envolver a criança no processo de alfabetização como autora do próprio processo

Particularmente, considero que a literatura impressa em sinais seja um dos pontos críticos do processo de alfabetização, uma vez que a literatura está impressa em português e não dispomos de literatura escrita em sinais. Mesmo as crianças que têm acesso à LSB precocemente apresentam alguns problemas no processo de alfabetização com as letras e palavras do português. A escrita alfabética não capta as relações de significação da língua de sinais, tornando bastante complicado o registro dos pensamentos e significados da criança de forma completa. A criança estabelece relações com as letras e palavras do português e, a partir daí, há uma interrupção do processo, pois tal sistema escrito não consegue expressar a língua que a criança organiza o pensamento, a língua de sinais 11.

Gostaria de explorar um pouco mais a questão da interação comunicativa antes de entrar mais precisamente na relação que a criança estabelece entre o mundo que ela significa e as formas de registro. As oportunidades que as crianças têm de expressar suas idéias, pensamentos e hipóteses sobre suas experiências com o mundo são fundamentais para o processo de aquisição da leitura e escrita. Pensando no contexto das crianças surdas, os professores deveriam ser excelentes na língua de sinais, além, é claro, de terem habilidade de explorar a capacidade das crianças em relatar suas experiências. Esse é um dos métodos mais efetivos para o desenvolvimento da consciência sobre a língua. Por exemplo, as crianças não precisam dizer que uma sentença com uma oração subordinada é uma sentença complexa de tal ou tal tipo, mas elas precisam ter milhares de oportunidades de usar tais sentenças, pois esse uso servirá de base para o reconhecimento da sua leitura e produção escrita com significado. São as oportunidades intensas de expressão que sustentam o conhecimento gramatical da língua que dará suporte para o processo da escrita, em especial, da alfabetização na segunda língua, o português, considerando o contexto escolar da criança surda.

Quando a criança já registra suas idéias, estórias e reflexões através de textos escritos, suas produções servem de base para reflexão sobre as descobertas do mundo e da própria língua. O professor precisa explorar ao máximo tais descobertas como instrumento de interações sociais e culturais entre colegas, turmas e outras pessoas envolvidas com a criança. Tais produções precisam apresentar significado sociocultural das relações que as crianças estabelecem.

Manter uma videoteca é essencial, pois é um recurso de reflexão sobre a língua viva que pode ser usado constantemente no processo de alfabetização como instrumento lúdico e didático.

2. O ensino da língua de sinais

Eu gostaria de explorar mais, a partir deste ponto, o processo mais consciente da aquisição da leitura e escrita, isto é, a etapa mais “metalingüística” desse processo. Falar sobre a língua através da própria língua passa a ter uma representação social e cultural para a criança fundamental no processo educacional 12. Portanto, vamos conversar sobre “aprender sobre a LSB” usando e registrando as descobertas através desta língua.

Aprender sobre a língua é uma conseqüência natural do processo de alfabetização. Os alunos passam a refletir sobre a língua, uma vez que textos podem expressar melhor ou pior a mesma informação. Ler e escrever são processos complexos que envolvem uma série de tipos de competências e experiências de vida que as crianças trazem. As competências gramatical e comunicativa das crianças são elementos fundamentais para o desenvolvimento de tais processos. Ler e escrever são atividades que decorrem de experiências interativas reais que as crianças experienciam. Proporcionar diferentes e criativas formas de interações sustentarão o processo de aquisição do código escrito em forma de texto. Quando o leitor é capaz de “reconhecer” os níveis de interações comunicativas reais, ele passa a ter habilidades de transpor este conhecimento para a escrita. O objetivo é falar sobre tais interações de forma consciente e esse exercício precisa acontecer em sinais. As crianças precisam internalizar os processos de interação entre quem escreve e lê para atribuir o verdadeiro significado à escrita.

Falar sobre os processos de interações comunicativas e sobre a língua de sinais são formas de desenvolver a conscientização do valor da língua e sua complexidade. Esse exercício apresenta valor inquestionável para a sustentação do processo de aquisição da escrita em sinais, bem como para o desenvolvimento da leitura e escrita do português como segunda língua.

Os textos produzidos pelos alunos em sinais e literatura geral em sinais são fontes essenciais para o desenvolvimento desse processo. Essas produções podem ser arquivadas através de uma videoteca, pois tal recurso é fundamental para avaliação das produções de outras pessoas, bem como das próprias produções. Esse processo de avaliação deve ser interacional, constante e criativo.

Como os alunos expressam o reconhecimento do valor da própria língua no processo de aprendizagem? A base da expressão dos alunos se constitue na medida em que eles passam a ser autores do processo. Algumas sugestões são apresentadas a seguir:

  • apreciar a LSB enquanto língua espacial-visual através de produções artísticas
  • explorar o reconhecimento das funções da LSB
  • ampliar o vocabulário
  • participar da comunidade surda enquanto membro crítico e criativo
  • ajustar a produção de acordo com a audiência com o fim de comunicar efetivamente através da língua
  • desenvolver a habilidade de reconhecer as variações e dialetos da própria língua, bem como a habilidade de reconhecer padrões sociais e culturais associados a tais variações
  • utilizar os estudos sobre a estrutura da língua, convenções socio-lingüísticas, linguagem figurativa e técnicas de produção para criar, discutir e criticar nas formas escrita e oral (em sinais)
  • reconhecer as relações gramaticais complexas no texto escrito e falar sobre elas

Quero salientar que todas as atividades propostas passam por um processo mais consciente. Na verdade, tais atividades já foram exploradas anteriormente no processo inicial de alfabetização de forma espontânea e voltam a ser exploradas de forma mais reflexiva. O ensino da língua de sinais é um processo de reflexão sobre a própria a língua que sustenta a passagem do processo de leitura e escrita elementar para um processo mais consciente. Quando a criança lida de forma mais consciente com a escrita, ela passa a ter poder sobre ela desenvolvendo; portanto, competência crítica sobre o processo. A criança passa a construir e reconhecer o seu próprio processo, bem como, refletir sobre o processo do outro.

3. Reflexão final

Gostaria de listar alguns problemas emergentes na educação de surdos que contribuem para um processo de des-educação/des-alfabetização dos alunos surdos:

  • inexistência de profissionais surdos atuando nas escolas
  • professores que desconhecem a LSB ou usam sistemas distorcidos de comunicação atuando no processo educacional
  • desconhecimento da escrita da língua de sinais
  • inexistência de literatura em sinais registrada em vídeo e escrita em sinais
  • falta de planejamento, avaliação e reflexão constante do processo educacional com a participação efetiva de profissionais surdos
  • necessidade de elaboração de um currículo educacional com base na LSB e em concepções sociais e culturais da comunidade surda brasileira
  • necessidade de elaboração de um currículo para o ensino de LSB

É tempo de reconhecer a língua de sinais, a escrita da língua de sinais, a riqueza cultural que a comunidade surda traz com suas experiências sociais, culturais e científicas. Se não somos competentes na língua usada pela comunidade surda e desconhecemos a riqueza cultural que pode ser produzida de forma Surda, precisamos buscar esse conhecimento ou optar por outra carreira profissional. A educação de surdos não pode mais continuar refém da falta de conhecimento dos profissionais que estão envolvidos na educação de surdos. Temos muito a fazer no processo de alfabetização e no ensino da língua de sinais para garantir a aquisição da leitura e escrita das crianças surdas.

Notas

2 Também não é objetivo aqui denunciar o fracasso do sistema educacional para surdos e suas razões e origens, tais citações também podem servir de referência para a reflexão sobre tais tópicos.
3 Tais pressupostos não estão listados em uma ordem linear, mas interagem entre si.
4 Também utiliza-se a sigla LIBRAS (língua brasileira de sinais) para referir-se a tal língua. Optou-se aqui por LSB, uma vez que há uma convenção internacional de que as línguas de sinais sejam identificadas através de três letras. Além disso, a colocação do adjetivo 'brasileira' antes do substantivo 'sinais' é agramatical na LSB, apesar de não sê-lo no português.
5 Configurações de mãos formam um conjunto de unidades fonológicas mínimas das línguas de sinais (poder-se-ia estabelecer uma relação com as unidades sonoras das línguas faladas). As expressões faciais são marcas não-manuais que podem apresentar funções gramaticais tornando-se obrigatórias. Nesses casos, menciono como exemplos, as expressões faciais associadas às interrogativas, às construções com foco, às construções relativas e condicionais (para mais detalhes, ver Quadros, 1999). Sobre a aquisição da LSB ver Karnopp (1994, 1997) e Quadros (1995, 1997a, 1997b). O fato de estarmos apresentando os estágios de desenvolvimento da ASL não exclui a necessidade de verificarmos tal processo na LSB, uma vez que tratam-se de línguas diferentes. O objetivo aqui é usar tais estudos como ponto de partida para reflexão sobre os aspectos abordados no presente artigo.
6 “Classificadores” são sinais que utilizam um conjunto específico de configurações de mãos para representar objetos incorporando ações. Tais classificadores são gerais e independem dos sinais que identificam tais objetos. É um recurso bastante produtivo que faz parte das línguas de sinais. Para a descrição de alguns classificadores na LSB ver Ferreira-Brito (1995).
7 Lillo-Martin, Mathur e Quadros (em elaboração) verificaram que crianças surdas adquirindo língua de sinais manifestam o uso de concordância verbal muito mais cedo do que havia sido reportado até o presente.
8 Parto do pressuposto que as crianças estejam tendo acesso a língua de sinais brasileira e, em hipótese nenhuma a qualquer coisa que “tente” substituir a relação de comunicação sem estrutura lingüística (neste sentido me refiro a sistemas de comunicação artificiais, português sinalizado, ou qualquer outra coisa que não seja a LSB).
9 Essa sentença faz parte dos dados analisados por Quadros (1999).
10 Mais informações sobre tal sistema de escrita podem ser obtidas através do site do Sign Writing www.signwriting.com , bem como em Quadros (1997b).
11 Eu não estou advogando que a criança não deva ser exposta à escrita alfabética. Na verdade, considero importantíssimo a criança surda interagir com a escrita alfabética para o seu processo de alfabetização em português acontecer de forma eficiente. No entanto, para que tal processo ocorra, será fundamental que a criança seja alfabetizada na sua própria língua, ponto que estou enfatizando no presente artigo.
12 Eu não vou abordar no presente artigo a aquisição do português, mas gostaria de registrar que o desenvolvimento mais metalingüístico do processo de alfabetização em sinais servirá de base sólida para o processo de alfabetização na segunda língua, neste caso, o português.

Bibliografia

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KARNOPP, L. B. Aquisição do parâmetro configuração de mão dos sinais da LSB: estudo sobre quatro crianças surdas filhas de pais surdos. Dissertação de Mestrado. Instituto de Letras e Artes. PUCRS. Porto Alegre. 1994.

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