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Isabel Sofia Correia
Isabel Sofia Correia
Professora e Investigadora
Entre Línguas se (des)constrói o texto: interferência linguística da Língua Gestual Portuguesa no Português
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Publicado em 2012
Exedra: Revista Científica, Número temático - Português: Investigação e Ensino, pags. 60-68
Isabel Sofia Correia
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Resumo

O presente artigo centra-se na interferência linguística da Língua Gestual Portuguesa (LGP) no Português escrito de alunos surdos. Para isso, partimos de alguns textos e exploramos os conceitos de erro e desvio, propondo algumas correções e atividades que visem melhorar a aprendizagem do Português L2 pelos alunos surdos.

A Língua Gestual Portuguesa (LGP) é o idioma natural da comunidade surda de Portugal. Este sistema, reconhecido como língua de ensino dos surdos na Constituição da Republica Portuguesa desde 1997 2, é composto de unidades mínimas e discretas que se articulam para formar unidades maiores, as palavras 3. Desta forma, os gestos que constituem a LGP são arbitrários e convencionais, à semelhança do que se observa noutras línguas humanas, ou seja, os signos não possuem uma ligação direta com o real que representam e são definidos pela comunidade que os utiliza 4.

A LGP e o Português Europeu partilham o mesmo espaço geográfico, sendo, como é sabido, a LGP uma língua minoritária. O surdo terá como sua língua natural aquela que é recebida através da visão, ou seja, uma língua gestual. Todavia, esta nem sempre é a sua língua materna, aquela a que é exposto no meio familiar desde idade precoce, uma vez que a maioria dos pais de crianças surdas são ouvintes. O Português é aprendido e utilizado como língua segunda, isto é, a língua maioritária da sociedade em que o surdo se insere e de que precisa para comunicar num grupo alargado.

Apesar de serem duas línguas que convivem no mesmo espaço, a sua modalidade e natureza fazem com que sejam dois idiomas bastante distintos. Como sabemos, o Português é uma língua alfabética que assenta grandemente numa correspondência não unívoca entre fonema e grafema. A sintaxe da língua portuguesa é pouco flexível e com uma organização eminentemente condicionada pelos morfemas preposicionais. Já a LGP nada deve à organização em fonemas, mas sim em queremas, as unidades mínimas e indivisíveis que compõem os gestos. O seu comportamento é bastante semelhante ao dos fonemas 5, mas a sua configuração manual e a sua concretização no espaço tridimensional implicam que independam de fatores sonoros. A organização sintática também é divergente da do português uma vez que não contém elementos preposicionais e se organiza, maioritariamente, em Sujeito-Verbo-Objeto (SOV) Objeto-Sujeito-Verbo (OSV) 6. Para além disso, a flexão verbal, nominal e adjetival seguem regras distintas nas duas línguas.

Apesar de serem dois idiomas diferentes e, aparentemente, pouco próximos, considerando que convivem no mesmo espaço e que são usados pelo mesmo utilizador, há uma forte contaminação linguística exercida sob duas perspetivas, uma interlinguística e outra do utilizador. Assim, por um lado, a LGP manifesta, em diversos níveis, uma grande interferência do português. Por outro lado, o português escrito pelas pessoas surdas evidencia influências da Língua Gestual. Observe-se brevemente estes dois tipos de contaminação linguística.

1. Contaminação interlinguística

Para além de condicionar a escrita da pessoa surda, a convivência da LGP e do Português implica contato linguístico. Não podemos esquecer que cada comunidade tem uma língua gestual, não há um idioma universal que siga regras idênticas 7. Desta forma, um dos recursos de criação morfológica que podemos encontrar na LGP é o empréstimo que parte das línguas orais, ou seja, o gesto é formado a partir de palavras do português. Todavia, como afirmam Sandra Nascimento e Margarita Correia,

a natureza do signo, na língua receptora do empréstimo, altera-se e, portanto, os empréstimos reconstroem-se para se acomodarem à língua gestual (…) uma vez que ora copia a informação semântica, ora copia traços visuais da informação lexical (NASCIMENTO, S. e CORREIA, M., 2011, pp.82-83).

Um dos casos em que é mais evidente a influência do português, é no uso da datilologia e em partes deste subsistema representativo para a criação de gestos. A datilologia, também designada alfabeto manual, consiste na transliteração de grafemas das línguas orais. É usado para representar conceitos que não tenham equivalente direto na língua gestual ou quando, no processo de comunicação, um dos interlocutores não conhece o vocábulo gestual servindo-se da datilologia para se exprimir. Um exemplo simples do uso da datilologia é na soletração dos nomes próprios. Assim, para dizer o meu nome completo teria de recorrer à datilologia, servindo-me de configurações manuais que transliteram as letras do meu nome.

As configurações manuais que representam o alfabeto datilologico são também usadas na criação de gestos em que uma ou mais letras da palavra de origem são combinadas com outros queremas, formando um gesto. Assim, considere-se o gesto que representa “Lisboa” em que a letra L é transliterada e associada a um movimento, orientação, expressão e localização específicos para significar o conceito “Lisboa”. Algumas vezes, são combinadas configurações manuais transliteradas com outros vocábulos gestuais, formando gestos derivados, veja-se, a título de exemplo o gesto LINGUAGEM que é formado pelo gesto de LÍNGUA associado à transliteração GEM e, ainda, o gesto de SURDEZ que segue o mesmo processo pois associa-se, no final da execução do gesto de SURDO, o sufixo EZ transliterado.

Como se pode ver pelos exemplos que acima descrevemos, e que apenas representam uma exígua parte do processo de empréstimo interlinguístico, o Português, a meu ver, sobretudo, o português escrito, exerce uma grande influência na dinâmica da LGP. Porém, sublinhe-se, a constituição e construção de gestos não se faz através de um caminho direto de tradução Português/LGP não só pelos motivos que atrás mencionámos, mas porque as Línguas Gestuais têm um percurso histórico próprio, ou seja, nascem de uma língua mãe que também é uma língua gestual e são influenciadas por outras línguas e por outros sistemas gestuais. A LGP, pelo seu percurso histórico-educacional deriva, fundamentalmente, da LG sueca e é fortemente influenciada por um sistema de comunicação designado International Sign a que já aludimos em nota. Para além de tudo isto, o processo de criação lexical das LGs está fortemente condicionado, como, aliás, nas línguas orais, pela forma como o emissor vê o mundo e pelas estratégias que encontra para o definir e representar.

Apesar de se servir de conceitos e grafemas do português para construir e reconstruir gestos, a contaminação linguística relacionada com o utilizador, tema principal deste artigo, é mais evidente e, em certa medida, preocupante, do que a contaminação a nível da construção lexical. É natural que duas línguas em contato, sendo uma comum a todo o universo de utilizadores, o português, originem fenómenos de empréstimo e até transformação. Mas, por ora, concentremo-nos na influência da LGP no Português visível no discurso escrito da pessoa surda.

Esta influência, para além de ser natural, como dissemos, tem a ver com várias condicionantes histórico-sociológicas da comunidade surda. Se tivermos em conta o percurso da história recente da educação dos surdos 8 vemos que até há pouco tempo as metodologias de ensino assentavam no método oralista, ou seja, não se privilegiava a língua gestual, pelo contrário, esta era anulada, e insistia-se na necessidade de desenvolver a vocalização nas crianças surdas. Só recentemente a Língua Gestual Portuguesa foi considerada língua de ensino e, ainda mais recentemente, há cerca de quatro anos, foram criadas as EREBAS, Escolas de Referência para o Ensino Bilingue de Alunos Surdos. Nestes estabelecimentos de ensino, o aluno tem direito a receber os conhecimentos em LGP e o Português é ensinado através de um programa específico, aprovado em 2011, que encara o idioma luso como segunda língua.

Todo este percurso, a juntar ao facto de as duas línguas estarem em contacto e serem usadas pela mesma pessoa, origina erros e desvios linguísticos na produção escrita do Português. Será sobre eles que vamos atentar em seguida.

2. Erros e desvios

O erro na escrita, aquele de que nos vamos ocupar, pode ser de natureza vária, ou seja, pode incidir na palavra, na frase ou na estrutura macrotextual. Vamos considerar erros de natureza lexical e sintática neste trabalho pois são esses os mais frequentes na produção escrita dos surdos. Contudo, erros a este nível de língua influenciam fortemente a coesão e coerência textuais afetando o sentido global do enunciado.

Numa perspectiva didática, o erro pode ser encarado como ponto de partida para o ensino, autocorreção e profícua aprendizagem do aluno. Será segundo este princípio que vamos apresentar alguns casos de erros de escrita de alunos surdos portugueses que frequentam o ensino superior. Todavia, antes da análise, importa perceber quais são as causas que, geralmente, podem ser motivadoras de erros.

Segundo o Quadro Europeu Comum de Referência (QERC, 2001, p.215) os erros podem refletir pouco aproveitamento na aprendizagem; espelhar um ensino ineficaz; evidenciar que o aprendente se encontra num estádio de interlingua 9.Neste último caso, os erros são considerados inevitáveis e parte do desempenho dos falantes. Tendo em conta esta inevitabilidade sugere-se o conceito de desvio ou inadequação como lexemas mais adequados à didática das línguas (CRISTIANO, 2010, p. 41).

Tendo em conta o aluno surdo, vários das definições de desvio acima mencionadas são aplicáveis. Assim, tendo em conta a história da educação dos surdos, que brevemente resumimos, o desvio na escrita pode resultar de um ensino ineficaz que não entendia que a primazia devia ser dada à Língua Natural do surdo, ou seja, a língua gestual. A afirmação que acabo de fazer pode colocar alguns problemas que se prendem não apenas com a realidade social dos educandos surdos, mas também com a didática de uma língua não materna. Importa atentar um pouco nestas condicionantes antes de prosseguirmos.

Muitos alunos chegam à escola sem saber língua nenhuma, pois, tendo pais ouvintes não adquiriram língua gestual e, não ouvindo, não adquiriram a língua portuguesa. Apenas possuem um sistema rudimentar de comunicação que combina mímica com vocalizações. Para esta realidade, que não é assim tão escassa no nosso país, é fundamental que a criança proveniente de uma família ouvinte contacte desde cedo, logo a partir da creche, com língua gestual Para isso, é fundamental que os encarregados de educação coloquem o bebé numa EREBAS, na designada Intervenção Precoce. Assim, a criança vai poder absorver desde tenra idade a língua que lhe é mais favorável e o seu desenvolvimento cognitivo e linguístico será beneficiado.

Quando o docente de português está na sala de aula não se supõe que lecione a matéria em Língua Gestual Portuguesa. Como é sabido, uma das estratégias didáticas de ensino de uma língua estrangeira ou, tendo em conta aquilo que nos referimos, uma língua segunda, é a imersão linguística do aprendente na língua-alvo, ou seja, não usar o recurso à tradução de vocábulos, mas proporcionar ao aluno um contacto integral com a língua que ele quer aprender. Todavia, é necessário que nos lembremos que um aluno surdo está privado da parte oral. Não podemos começar uma aula de português introduzindo os sons do alfabeto fonético e pedir a leitura de palavras. O recurso do professor de português é, em primeiro, e muitas vezes único, lugar, a escrita.

Não é tarefa fácil ensinar a escrever e mais difícil se torna ensinar a escrever uma língua que não se ouve. Para que esta tarefa se torne menos árdua para o professor e para os alunos o recurso a metodologias contrastivas entre duas línguas é, a meu ver, fundamental. O docente de português deve ter conhecimentos médios, pelo menos, de LGP, deve conhecer bem a estrutura e processos linguísticos deste idioma para poder levar os aprendentes a refletir, a ter conhecimento explícito em Língua Portuguesa, ou seja, serem capazes de entender e refletir sobre as regras desse sistema linguístico em diversos planos, morfológico, sintático e semântico. Para isso, é fundamental a parceria com o docente de LGP que pode servir como uma ponte importante na compreensão desta língua e na preparação de aulas e metodologias mais adequadas aos alunos surdos. Veja-se um exemplo que concretize a metodologia contrastiva que referimos.

O português é uma língua eminentemente flexional. Se pensarmos na flexão em número, vemos que a formação do plural se serve do morfema /s/ e de seus alomorfemas 10 para indicar a variação de quantidade. Assim, o menino/os meninos. A LGP é um idioma pouco flexional e muito aspectual 11, servindo-se de processos morfológicos distintos para a quantidade, como, por exemplo, adição de quantificadores e uso de classificadores 12. Só compreendendo e mostrando, de forma articulada com o docente de LGP, estas diferenças é que o docente poderá sistematizar as normas do plural e fornecê-las aos alunos. Se o docente partir apenas de sistematização de regras e de exemplos exclusivos da língua-alvo, poderemos ter alguns dos erros que a seguir ilustramos.

3. Desvios na Escrita do Português por interferência da LGP

Sendo professora de português de alunos surdos no ensino superior, pedi-lhes que me respondessem, por escrito, à seguinte pergunta:

Quais as dificuldades que sentes na Língua Portuguesa?

Esta questão permitiu-me averiguar, do ponto de vista dos alunos, quais as metalinguagens que dominavam no que diz respeito à gramática do português e, também, ver e procurar analisar os desvios na escrita. Selecionei alguns desses exemplos que passo a transcrever para que seja feita uma breve reflexão. Assinalei alguns erros que me parecem resultar da interferência da LGP, do ponto de vista do utilizador, na construção do discurso. Contudo, mencionarei outros que possam vir a propósito do tema deste artigo.

Exemplo1:

Eu sinto preceber não bem que mais menos porque a minha lembrei não bem ligado a tema para objectivo à aula de Língua Português, se estou a perceber o livro de gramática de português que logo precebo ou professora explica-me claro compreende bem.

De acordo com CRISTIANO (2010), estamos perante erros interlíngua, ou seja, erros motivados pelo contato entre duas línguas. Acrescento, como já mencionei, erros motivados pelo conhecimento e uso do utilizador desses idiomas. Se um docente de português, sem quaisquer conhecimentos de LGP, vê este texto, pode não saber como corrigir o erro de forma didática, ou seja, como partir dos desvios acima sublinhados para uma posterior autocorrecção do aluno. Vejamos, então, os erros sublinhados à luz da LGP.

De uma forma geral, o desvio começa, ou evidencia-se de forma mais clara, na desarrumação sintática. Ora, este fenómeno explica-se pois, como atrás disse, a sintaxe das duas línguas é bastante diferente e, como também referi em nota, a ordem sintática da LGP, e de outras LGs, é, ainda, bastante fluida. Assim, o discente escreve palavras na frase sem conectores de discurso, ou seja sem palavras funcionais que tornam os enunciados lógicos e articulados. Veja-se uma possível correcção da primeira parte da frase inicial:

Eu sinto que não percebo bem, mas sim mais ou menos

Como se verifica pelos elementos destacados a negrito, a ausência de partículas que condicionam a estrutura do discurso é notória, pois não se incluem, no texto original do aluno surdo, preposições, conjunções indispensáveis para compor frase subordinadas e construções adversativas com sentido.

Note-se, também, que a flexão verbal não ocorre, pois, à semelhança do que acontece com a realização do número, a marcação de tempo e pessoa na LGP é realizada através de expressões adverbiais, que introduzem na frase o marcador de tempo, classificadores, nomeadamente acentuando o valor aspectual do verbo e mecanismos de apontação 13 que indicam qual a pessoa. Por isso, possivelmente, haverá o uso incorreto do infinitivo. Todavia, tendo em conta que se trata do presente simples do indicativo de um verbo regular, de aprendizagem pouco complexa, o desvio do escrevente, neste caso, pode também, mais uma vez, relacionar-se com um parco domínio de construções sintáticas complexas, isto é, na sua escrita omitiu-se uma perifrástica: sinto que não estou a perceber.

Se observarmos a parte seguinte da frase que temos vindo a analisar, “ligado a tema para objectivo” e ainda, na parte final do texto, “professora explica-me claro” estamos perante claras interferências da LGP motivadas pelo utilizador.

O gesto TEMA é um vocábulo muito polissémico e amplamente utilizado para abrir um discurso, a narração de uma história, onde funciona como introdutor ou como título e pode ainda em alguns casos designar conteúdos, itens de um determinado assunto. Da mesma forma, o gesto LIGAR, ESTAR RELACIONADO COM é usado, muitas vezes, com a função sintática de conector de orações em que se pretende unir duas informações. Para o escrevente, a transposição destes vocábulos gestuais para o Português teria o mesmo significado que na sua língua natural: TEMA (os conteúdos gramaticais) LIGAR (ligados com) os OBJETIVOS (aquilo que se esperava que ele aprendesse). Assim, uma correcção possível para esta segunda parte da frase seria:

Não me lembro dos conteúdos (TEMA) da gramática que eram alvo de ensino (OBJETIVO) nas aulas de português que frequentei (LIGAR).

Para além destes erros de interferência, veja-se ainda o grupo “minha lembrei” que, parece-me, denota uma confusão entre o pronome possessivo e o pessoal. Todavia, este desvio não me parece resultar de contaminação interlinguística visto que a construção sintática reflexa é também frequente na LGP. A marcação de passado em “lembrei” justifica-se, do meu ponto de vista, pelo facto de ser este o único verbo usado nesta parte da frase e o aluno querer referir-se a um acontecimento do seu passado, sendo o verbo a única palavra que encontra que lhe permite essa informação temporal.

No segundo exemplo, professora explica-me claro compreende bem, os fenómenos de contaminação são do mesmo tipo dos anteriores, ou seja, o uso de EXPLICAR e o gesto CLARO, na LGP, significam que a explicação foi clara, daí o seu emprego sem quaisquer conetores, o que torna a frase estranha em Português. Nota-se, como vimos no uso do verbo perceber num exemplo anterior, que o aluno não domina a flexão verbal do português, provavelmente porque ainda não sistematizou estas regras, ausentes na sua língua natural, a LGP. Uma possível correcção seria:

A professora explica-me por outras palavras aquilo que eu não percebo no livro e, então, eu compreendo bem as regras gramaticais.

Desta forma, o que se depreende de modo geral do exemplo apresentado é que os desvios afetam a sintaxe, comprometem a compreensão do texto por parte de quem o lê e só são explicáveis à luz da LGP. Antes de sugerirmos alguns exercícios para colmatar estas lacunas, atentemos num outro exemplo que evidencia erros de natureza distinta:

Exemplo 2:

Eu tenho bastante dificuldade de conjugar os verbos. Mas sempre a minha dificuldade desde do ensino básico na língua portuguesa.

Este texto é mais perceptível do que o anterior, não apenas por ser mais curto, logo há menos probabilidade de encontrar incorreções, mas também porque responde de forma direta, sem evasões à pergunta colocada. Não se denota aqui qualquer interferência da LGP, pelo menos à primeira vista. Esta interlíngua escrita ilustra que a LGP interfere, mas por ausência. Expliquemo-nos. Como se verifica, o erro recorrente neste texto é o uso errado e abusivo de preposições. Este desvio é muito frequente na escrita dos alunos surdos. Como explicá-lo se a LGP não tem preposições? Esta pergunta fornece-nos a resposta. O escrevente sabe que está a usar um idioma diferente do seu e procura utilizar as regras específicas desse sistema linguístico. O seu afã de as aplicar acaba por motivar erros de hipercorreção como os que se veem no texto. Veja-se que mesmo no exemplo anterior, onde era nítida a influência da LGP, há o uso indevido de uma preposição: ligado a tema para objectivo. Isto comprova que este é um erro frequente e que se pode explicar, a meu ver, porque não se insiste suficientemente em metodologias que ilustrem a diferença entre os dois idiomas, e, também, porque estamos perante a escrita de uma língua segunda, ou seja, é natural que as regras de transitividade e argumentação verbais sejam de difícil aprendizagem.

De seguida, sugiro alguns exercícios que devem ser aplicados desde cedo, isto é, assim que o aluno comece a aprender a escrita do português, nomeadamente a partir do segundo ano de escolaridade 14. Acompanham os exemplos de ensino-aprendizagem pequenas reflexões sobre a forma como poderão ser aplicados, mencionando-se algum material didático. Tendo em conta os erros anteriormente apresentados, os exercícios incidem na sintaxe e na flexão verbal. O seu uso em contexto letivo pressupõe que antes da sistematização destas regras o contraste com a LGP foi efetuado 15. Além disso, o processo de escrita deve ser sempre retextualizado pelo surdo, ou seja, deve identificar, corrigir e entender os desvios da sua produção.

Atividade 1: verbo às fatias

Considerando-se o primeiro ciclo do ensino básico, sugere-se que esta atividade seja acompanhada pela imagem de um bolo, com várias fatias. O que o docente vai propor aos alunos é que entendam como é que se faz um verbo, ou seja, como é que se juntam bocadinhos para ele sair completo, O professor pode, ainda, transformar este exercício num texto funcional com cariz lúdico. Assim, se o verbo é um bolo, vejamos quais são os ingredientes. No bolo temos farinha, ovos, leite, entre outros. Depois de tudo misturado nas devidas proporções, eis que temos um bom lanche. Para o verbo temos pequenos bocados, também, os morfemas de pessoa e número do presente do indicativo, o-s; mos; is; m. Todos eles são ovos que se vão juntar à farinha, a forma matricial do bolo, e dar-lhe forma. Depois de tudo bem misturado e já saído do forno, vamos a tempo de colocar uma cereja cristalizada no topo. Eis então a receita para o verbo no presente do indicativo:

Juntar à massa do bolo - gost(a) - os seguintes ingredientes

Eu gosto -o é a cereja do topo pois fica no cimo e é diferente de todos os outros
Tu gostas -s um ovo
Ele/a gosta 0 Aqui não se vê , é o leite ( morfema 0)
Nós gostamos -mos outro ovo
Vós gostais -is outro ovo
Eles gostam -m e mais um ovo

Cada uma destas é uma fatia do bolo/verbo, Gostar, e deve servir-se acompanhada do pronome certo, o açucar.

Esta actividade possibilita uma aprendizagem mais lúdica, mais significativa para o aprendente de regras que ele deve aplicar e perceber. Se puder ser acompanhado da leitura e concretização de um texto instrucional, como a receita, será ainda mais produtivo, nomeadamente para potenciar capacidades literácitas.

Atividade 2: a casa do porquinho esperto

Parte-se da história dos três porquinhos e enfatiza-se o facto de o último ter sido aquele que construiu a casa mais sólida. O que teria acontecido se o porquinho não tivesse usado tijolos? Não haveria casa. E se não tivesse usado cimento para os ligar ou os tivesse colocado empilhados, sem uma ordem? A casa caía. Pois bem, o texto que escrevemos é uma casa, as palavras são os tijolos e as preposições o cimento. Veja-se uma frase sem cimento: vou casa. E outra quase a desmoronar-se: casa porco amigo ir. Vamos por o cimento?

De seguida, fornece-se uma folha de papel onde está um desenho de uma casa com as preposições lá dentro. Este exercício pode ainda ser interativo, ou seja, pode-se fazer uma aplicação, a usar no computador: cada vez que o aluno coloque a preposição errada, a casa cai ou treme. Caso não haja este recurso, um dos colegas levantará o sinal vermelho, quando errado, e verde, quando certo. O professor será o responsável máximo da obra e monitoriza este “engenheiro civil”.

À semelhança da actividade anterior, este exercício visa proporcionar uma aprendizagem mais significativa e ser um passo para o aluno construir uma gramática ativa do português pois através da descoberta, irá, certamente, encontrar menos dificuldades na escrita.

Reflexões finais

Terminamos esta breve incursão sobre a interferência da LGP na escrita do português com algumas sugestões didáticas que visam melhorar a aprendizagem do idioma luso. Para isso é necessário que o professor parta de metodologias constrativas e recorra à LGP. Todavia, que fazer quando o aluno domina a LGP de forma rudimentar ou esta é contaminada pelo português? Começámos esta reflexão afirmando que a LGP evidenciava características na formação de léxico vindas do português. Mas também há interferências do Português na LGP do ponto de vista do utilizador. Veja-se como exemplo um texto de um surdo:

Às vezes quando eu falo em língua gestual portuguesa para comunicar a comunidade surda, em que tempo falo da Língua Gestual Portuguesa da mesma identidade Surda, é claro que eu nem bem consigo de comunicar para os Surdos, porque quando falo é de língua portuguesa .Por ex: O João come maçã (LP) traduzo LGP

O João maçã come (LGP) é raro de falar em LGP.

Estamos, mais uma vez, perante um texto escrito com uma sintaxe algo caótica, que tem a sua coerência e coesão comprometidas, mas que é interessante do ponto de vista do conhecimento metalinguístico que o escrevente explicita. Este fenómeno é cada vez mais recorrente no discurso gestual dos jovens surdos. Muitas vezes recorrem à datilologia por desconhecimento do vocábulo na sua língua, outras vezes a construção sintática em LGP é enviesada pois acompanha a do português. O sentido linguístico da frase gestual é de difícil descodificação o que compromete a comunicação. Este fenómeno observa-se em outras Línguas gestuais, daí que possa ser o resultado natural de contato linguístico.

Todavia, o que se observa quando isto acontece, é que o surdo acaba por não ser proficiente nem em Português, nem em LGP. Desta forma, a meu ver, tal “confusão linguística” não é apenas pelo contato. Falta rever as metodologias de ensino da LGP, observar a língua de forma a convencioná-la e a registá-la segundo critérios linguísticos e sociais. Se o gestuante for fluente no seu idioma e se tiver um correto acompanhamento no português escreverá como este aluno surdo:

Não me lembro muito bem das dificuldades em português. Aliás, tenho dificuldades em perceber algumas palavras difíceis e um pouco na escrita, visto estar a adaptar-me à LGP.

Neste texto, revela-se a consciência de ser necessário dominar os dois idiomas “adaptar-se a eles” porque as línguas, diferentes na sua natureza, merecem respeito e têm direito à sua integridade. Só assim terão a sua função: ver, ler e compreender o mundo.

Notas

2 Constituição da República, artigo 74,h. Além disso há uma advertência do Parlamento Europeu “na Resolução sobre as Línguas Gestuais recomenda que os governos tomem em consideração a concessão de plenos direitos às línguas gestuais como línguas oficiais e ofereçam verdadeira educação bilingue e serviços públicos prestados às pessoas surdas” IN CAVACO, F et al (2007), p.6.
3 As unidades mínimas designam-se de acordo com a terminologia proposta por Stokoe (1960), que seguimos, queremas, palavra que vem do grego khiros, mão. Os queremas são a configuração, isto é a forma que a mão assume, localização, local do corpo onde o gesto é executado, orientação, para onde a palma da mão está virada, expressão, composta por unidades não-manuais, e movimento, caraterística que determina se um gesto se move no espaço sintático. Para mais informações veja-se AMARAL e COUTINHO, 1994 e QUADROS, 2004.
4 Apesar de haver uma carga arbitrária nas LGs a iconicidade, ou seja, a execução e produção de gestos com base no real, é muitíssimo produtiva. Todavia, a meu ver, mesmo essa iconicidade resulta de uma interpretação do real e não de uma simples cópia. Assim, considero gestos “semi-icónicos” ou interpretativos todos aqueles que representam um objeto recorrendo à sinédoque ou a elementos caracterizadores e /ou relacionáveis com o objecto ou acção. São exemplo deste tipo de gestos na LGP o gesto para REI cuja configuração e localização remete para um objecto associado à realeza, a coroa, e o gesto para DIA que consiste no movimento da mão em frente ao rosto, do queixo até à zona da testa, representando o movimento do nascer e elevar do sol. Gestos arbitrários são todos aqueles que não encontram qualquer motivação explicável por associação ou interpretação (dedutível) da realidade. Alguns exemplos em LGP são os gestos de LEITE que consiste na localização da mão aberta, com o polegar, junto à têmpora direita, com um movimento progressivo de fechamento dos quatro dedos da mão. Para mais exemplos veja-se CORREIA (2009), AMARAL et al, (1993); para uma distinção mais pormenorizada no tipo de gestos característico das línguas gestuais veja-se SANDLER, W & LILLO-MARTIN (2006.)
5 São unidades mínimas e indivisíveis e possuem traços articulatórios, como a seleção de dedos ou o movimento que são semelhantes ao ponto e modo de articulação dos fonemas. Sobre este assunto, consulte-se SANDLER, W & LILLO-MARTIN (2006).
6 Discute-se muito a organização sintática das LGs pois ela é oscilante na execução fluida do discurso. Esta fluidez pode dever-se, a meu ver, à contaminação e convivência com uma língua oral. O facto de não haver uma norma convencionada na LGP também contribui para que não haja uma ordem sintática padrão. Consideramos estas duas pois são as mais observáveis em nativos de LGP e as menos contaminadas pelo português.
7 Existe um sistema de comunicação designado International Sign que é dominado independentemente da Língua Gestual do falante. Este sistema é formado por mímica e gestos construídos, a partir de outras línguas, logo, não é uma língua natural, mas apenas um sistema artificial que permite a comunicação entre pessoas surdas de países diferentes.
8 Para informações detalhadas sobre este assunto consulte-se CARVALHO, Paulo Vaz de História da Educação dos Surdos I e II, Lisboa: Universidade Católica, 2011 e, do mesmo autor, História dos Surdos no Mundo e em Portugal, Lisboa: Surd’Universo, 2007.
9 Entenda-se por interlíngua um sistema linguístico que um aprendente de uma língua segunda ou de uma língua estrangeira vai construindo longo do processo de aprendizagem. Este “subsistema” mescla características da língua natural com as da língua de escolarização e dele emergem também regras e construções próprias criadas pelo utilizador. Para uma análise mais apurada deste tema veja-se CRISTIANO, José Manuel (2010), Análise de Erros em Falantes Nativos e Não Nativos, Lisboa: Lidel.
10 Variante de um morfema determinado pelo contexto. Por exemplo, o morfema de plural –s assume outra forma fónica e gráfica-es- quando está junto de uma consoante: flor/flores.
11 O aspeto é uma categoria gramatica que exprime a duração e a repetição, por exemplo, no caso de acções continuadas. Veja-se AMARAL e COUTINHO (1994),QUADROS (2004) e SANDLER, W & LILLO-MARTIN (2006).
12 Formas morfológicas com comportamentos típicos de um gesto (gesto entenda-se palavra) mas que possuem muita informação gramatical. São usados com o propósito de indicar relações espaciais; movimentos; formas e dimensões de objectos e assentam, sobretudo, na iconicidade. São uma categoria complexa pois não são, de facto, “palavras” nem frases. Veja-se SANDLER, W & LILLO-MARTIN (2006).
13 Apontação é um mecanismo deítico de coesão do discurso. Consiste em apontar para um mesmo lugar onde um referente já havia sido introduzido antes por meio da apontação visual ou manual ou por alteração do ponto de localização do gesto. QUADROS (2008).
14 Depois de dominar mecanismos de decifração, ou seja, a partir do segundo/terceiro anos de escolaridade, o discente estará mais apto para começar a refletir e sistematizar as propriedades do português.
15 As actividades propostas são do domínio do Conhecimento Explícito da Língua pois, embora a compreensão da mensagem e sua interpretação seja o principal almejo na educação dos surdos, ou seja, se caminhe com o objetivo de potenciar a literacia do português nesta comunidade, no meu entender, um fraco, ou quase nulo domínio das regras gramaticais e de escrita impede esse desígnio. Aliás, o exemplo 1 parece-nos a prova disso.

Bibliografia

AMARAL, M.A.; COUTINHO, A.; DELGADO MARTINS, M.R.(1994), Para Uma Gramática da Língua Gestual Portuguesa. Lisboa, Caminho.

CARVALHO, Paulo Vaz de (2007), História dos Surdos no Mundo e em Portugal, Lisboa: Surd’Universo.

CARVALHO, Paulo Vaz de (2011) História da Educação dos Surdos I e II, Lisboa: Universidade Católica.

CAVACO,F (coord. 2007), Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa. Ensino Pré-Escolar e Básico, DGIDC, M.E

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