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O aluno surdo aprendendo inglês em escola inclusiva: uma perspectiva Vygotskiana
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Publicado em 2010
Revista Educação Especial (UFSM), v. 23, p. 103/36-116
Tânitha Gléria de Medeiros
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Resumo

Este artigo surgiu da necessidade de dirigir o nosso olhar para um cenário no qual a escola não pode mais omitir-se: o ensino de inglês para alunos surdos. Apresenta-se uma análise das interações observadas durante uma aula de inglês na qual dois alunos surdos e uma intérprete discutem um texto. Essa investigação foi feita à luz do parâmetro sociocultural de Vygotsky (1998) no qual os conceitos de zona de desenvolvimento proximal, internalização e andaimes (scaffolding) serão discutidos. Algumas considerações acerca do surgimento da inclusão e que causas ela promove, bem como as leis que a norteiam serão abordadas. Devido ao número pequeno de participantes, esta pesquisa configura-se como um estudo de caso (BOGDAN E BIKLEN, 1994). A partir dos resultados obtidos, esta pesquisa demonstra que os participantes, ao realizarem atividades que envolvem a interpretação do texto, o fazem de forma colaborativa, no qual a intérprete tem a função de par mais competente (VYGOTSKY, 1998). Pelo oferecimento de scaffolding (WOOD, BRUNNER e ROSS, 1976; LANTOLF e APPEL, 1994; ANTÓN e DICAMILLA, 1999; DONATO, 2000; MELLO, 2002), a aquisição da língua inglesa e também da língua portuguesa e Libras foram possíveis. Sendo assim, considera-se importante a filosofia do bilinguismo, pois o aluno surdo precisa conviver com sua comunidade para construir sua fala (Libras), identidade e cultura. Os dados demonstram que os alunos surdos têm um posicionamento ativo, participante na discussão do texto com a intérprete.

1. Introdução

Falar de língua estrangeira (LE) 1 no contexto da escola inclusiva e com alunos com necessidades educacionais especiais (NEEs), 2 é algo recente, desafiador e que merece nossa atenção. Sendo assim, propõe-se analisar dois alunos surdos 3 aprendendo inglês juntamente com uma intérprete de Libras 4 em uma escola municipal de Goiânia.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (doravante LDB/96), Lei n° 9.394, estabelece no seu capítulo V toda uma prescrição sobre a educação especial. Neste capítulo, ressalta-se o artigo 59º (p.19) que estabelece: “os sistemas de ensino assegurarão, aos educandos com necessidades especiais: I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica, para atender às suas necessidades.” Sobre o ensino de língua inglesa, destacam-se os Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira (doravante PCN-LE) (Brasil, 1998) que afirma:

Para que as pessoas tenham acesso mais igualitário ao mundo acadêmico, ao mundo dos negócios e ao
mundo da tecnologia etc., é indispensável que o ensino de Língua Estrangeira seja entendido e concretizado como o ensino que oferece instrumentos indispensáveis de trabalho. (PCN-LE, 1998, p. 38)

Quando a LDB estabelece que deve-se assegurar aos educandos “métodos, técnicas, recursos para atender às suas necessidades”, como fica o ensino de língua estrangeira neste contexto? Será que o uso de tecnologias facilitaria esse ensino de forma a atender às especificidades de cada aluno? Os livros didáticos amparam o professor que trabalha com alunos deficientes visuais, auditivos ou mentais? Os professores de LE estão sendo preparados, durante a graduação, para lidar com esses alunos?

Como se observa, tratar do ensino e aprendizagem de língua estrangeira no contexto da educação inclusiva é algo pouco comum e por isso o desafio. Passa-se para a fundamentação teórica que fornecerá uma reflexão sobre o processo educacional do surdo e seu desenvolvimento como indivíduo nesse ambiente.

2. Fundamentação teórica

Uma vez que objetiva-se analisar, sob uma perspectiva sociocultural, como é a aprendizagem de inglês de dois alunos surdos auxiliados por uma intérprete em escola municipal de Goiânia, um caminho teórico foi traçado. Sendo assim, apresenta-se algumas considerações acerca do surgimento da inclusão e que causas ela promove, bem como as leis que a norteiam. Em seguida é exposto como foi e como fica o aluno surdo neste contexto, além de relatar como Vygotsky (1989, 1998) entendia a educação do surdo. Expõem-se também algumas considerações acerca da teoria sociocultural de Vygotsky (1998), na qual os conceitos de zona de desenvolvimento proximal, internalização e andaimes (scaffolding) serão discutidos. Finalizando, reflete-se sobre a importância do ensino de língua estrangeira em uma escola inclusiva com alunos surdos.

2.1 O surgimento da inclusão, algumas leis e as causas que promove

No campo das políticas de inclusão, esse movimento inicia-se no Brasil pela influência de dois eventos mundiais: a Conferência Mundial de Educação para Todos e a de Necessidades Educativas Especiais (Conferência de Salamanca).

O primeiro aconteceu em 1990 em Jomtien (Tailândia) e teve como objetivo discutir o desenvolvimento de uma política educacional de qualidade que atendesse a todos os alunos. O segundo movimento foi um marco histórico: a Conferência de Salamanca que ocorreu em 1994, na Espanha. Foi essa conferência que mais contribuiu para impulsionar a Educação Inclusiva por que, além de detalhar várias propostas sobre a necessidade de preparação da escola, do corpo docente, do espaço físico, do material didático, entre outros, incluiu os alunos excluídos socialmente oferecendo oportunidades de aprendizagem a todos (MITTLER, 2003).

No campo da educação, desde a promulgação da LDB/96, as escolas têm sido convocadas a adequar-se para atender satisfatoriamente a todas as crianças. O programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade (BRASIL, 2003), implantado pelo MEC, tem como objetivo a transformação dos sistemas educacionais ao abordar a fundamentação filosófica, a organização do sistema educacional, a participação da família e o atendimento individualizado nessas escolas.

O Capítulo V da LDB/96 é dedicado à educação especial. Os artigos 58º e 59º prescrevem a importância do atendimento educacional a pessoas com NEEs, preferencialmente em escolas regulares.

A Libras passa a ser reconhecida como a Língua Oficial da Pessoa Surda segundo a Lei 10.436 de 2002. Esse reconhecimento vem ampliando a demanda por profissionais intérpretes de Libras. Esse profissional é aquele que, tomando a posição do sinalizador ou do falante, transmite os pensamentos, palavras, emoções do sinalizador/comunicador/falante servindo de elo entre duas modalidades de comunicação (DECRETO n. 5626/2005).

Tanto a presença do intérprete quanto o ensino de inglês são garantidos por lei (DECRETO n. 5626/2005; LDB/96). O ensino de LE para alunos surdos deve ser visto como uma oportunidade de identificação e apropriação de valores culturais e sociais, ou seja, oferece e permite aos alunos uma abertura a outras culturas. Esta importância fica evidenciada na fala dos alunos surdos que, no questionário, responderam que gostam muito de estudar inglês.

2.2 A educação dos surdos no Brasil: o bilinguismo

O surdo deve ser bilíngue: adquirir como língua materna, a língua de sinal e como segunda língua, no caso do Brasil, o Português. Diferente do oralismo e da comunicação total, o surdo, no bilinguismo, pode aceitar e assumir sua surdez. A modalidade oral é rejeitada. Seu principal objetivo é entender o surdo, sua particularidade, sua língua e sua cultura. A crítica à oralização se deve ao fato de que sua aquisição nunca será natural e gerará ansiedade.

Assim como Goldfeld (2002) e Vygotsky (1989) acredita-se no bilinguismo, já que a aquisição da língua de sinais e a internalização da cultura surda evitaria atrasos na linguagem e suas conseqüências. A seguir, passa-se a explicitar os conceitos de Zona de Desenvolvimento Proximal, internalização e scaffolding.

2.3 A teoria sociocultural e o ensino-aprendizagem de línguas

A teoria sociocultural pressupõe que o homem é um ser social e aprende por meio da interação com outras pessoas (FIGUEIREDO, 2006). Vygotsky (1998, p. 75, grifos no original) afirma que “todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Este autor avança em sua teoria ao propor o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) que é a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial.

O nível de desenvolvimento real se refere àquilo que o aluno é capaz de fazer de forma autônoma, ou seja, aquela capacidade ou função que ele já aprendeu e consegue fazer sem a assistência de alguém mais experiente. Já o nível de desenvolvimento potencial é o que o aluno consegue realizar em colaboração com outra pessoa. Nesse caso, ele soluciona os problemas ou dificuldades pelo diálogo, interação, questionamentos, pistas que lhe são fornecidas (VYGOTSKY, 1998; REGO, 1995).

No contexto escolar a intervenção na ZDP do aluno é de responsabilidade do professor, que neste artigo se configura na figura da intérprete. É ela que, por ter mais experiências, informações e a incumbência de tornar acessível ao aluno surdo todo o cotidiano da sala de aula de inglês, é reconhecida como o par mais competente.

Vygotsky (1998, p.113) afirma que “aquilo que é zona de desenvolvimento proximal hoje, será o nível de desenvolvimento real amanhã”. Isso nos remete a outro conceito importante na teoria sociocultural: a internalização. Essa teoria implica a transformação de processos externos, concretizados nas atividades entre as pessoas em um processo intrapsicológico, onde a atividade é reconstruída internamente (VYGOTSKY, 1998; REGO, 1995).

De acordo com a teoria vygotskiana, a criança passa por três estágios de desenvolvimento: 1- regulação pelo objeto (o ambiente exerce influência na criança); 2- regulação pelo outro (a criança passa a desenvolver certas atividades com o auxílio de um adulto ou de um par mais competente); 3- autoregulação (de forma autônoma, a criança consegue realizar as tarefas).

Durante a atividade e exercícios realizados nesse recorte, a transição da regulação pelo outro para a auto-regulação (internalização) é possibilitada pelas estruturas de apoio denominadas de scaffolding (andaimes, em português) e que ocorre na ZDP (WOOD, BRUNNER e ROSS, 1976; LANTOLF e APPEL, 1994; ANTÓN e DICAMILLA, 1999; DONATO, 2000). Segundo esses autores, é o scaffolding que permite ao aprendiz realizar uma tarefa que estaria fora de seu alcance, com o auxílio de outra pessoa. É a autonomia na execução de uma tarefa após o desmantelamento do mesmo (SILVA, 1999). Tharp e Gallimore (1988) citado em Figueiredo (2006) apontam dois tipos de scaffolding:

  • Assistência: quando o mais experiente ajuda o menos experiente (professor-aluno);
  • Influência: quando a ajuda é recíproca e compartilhada (os próprios alunos).

Ressalta-se que no contexto da aquisição de LE com alunos surdos, o uso da LM e L2 representa um scaffolding bastante importante. Embora o uso da L2 (língua portuguesa) seja predominante nessa aula de inglês, para os surdos ela não representa um impedimento para a aprendizagem de LE. De acordo com Donato (2000), Antón e Dicamilla (1999) e Melo (2002), o uso da língua materna facilita a aquisição da língua estrangeira. Melo (2002) diz que o uso da língua materna é uma ferramenta importante para auxiliar os alunos na construção do significado da LE e, principalmente, para guiar suas ações na execução da tarefa. Ela é usada também para verificar alguma compreensão de léxicos ainda não internalizados pelos alunos surdos. Wood, Bruner e Ross (1976) consideram as interações tutoriais fundamentais para o desenvolvimento cognitivo do ser humano, uma vez que o aprendiz e o tutor, por meio de interações dialógicas, podem trabalhar cooperativamente para que a aprendizagem ocorra dentro da ZDP do aprendiz.

Como o principal objetivo deste artigo é examinar as principais implicações da interação entre a intérprete (par mais competente) e dois alunos surdos para a aquisição da LE (inglês), passa-se agora à metodologia e, posteriormente, à análise dos dados.

3. Metodologia

Ao realizar este artigo, optou-se por recorrer aos métodos qualitativos de análise por que parte das perspectivas dos participantes para examinar os propósitos, os significados e as interpretações do ensino. Devido ao número pequeno de participantes, esta pesquisa configura-se como um estudo de caso (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

A pesquisa foi feita em uma escola municipal localizada na região sudoeste de Goiânia, no Setor União. A sala pesquisada pertence ao EAJA (Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos) e é da 8ª série ou 9º ano noturno. Como instrumentos foram usados gravação em áudio, a entrevista oral e por escrito e o diário. Neste artigo, utiliza-se a transcrição da aula que ocorreu no dia 14 de outubro de 2008 no qual os alunos discutiam o texto “Have you been taking care of your planet?” (Você tem cuidado do seu planeta?).

Participaram deste estudo dois alunos surdos (Elias e Eliana) e uns intérpretes (Alice) inseridos numa sala de aula regular com alunos ouvintes e a professora de inglês. Para preservar suas identidades serão usados nomes fictícios escolhidos por eles. O foco será dado a esses três participantes (intérprete e dois surdos) para entendermos como ocorre a interação e a aprendizagem de língua inglesa nesse contexto.

A pedido da pesquisadora, à medida que a intérprete fazia os sinais em Libras, ela também falava/oralizava tanto a sua fala quanto a dos dois alunos surdos. Foi utilizado o seguinte código nas transcrições: [ ] para comentário da pesquisadora. Ressalta-se que, apesar de existir o ASL (American Sign Language), que é a língua de sinais para os surdos nos Estados Unidos, aqui no Brasil, na sala de aula de inglês, a língua de sinais usada é a Libras (Língua Brasileira de Sinais). E, para se referirem às palavras em inglês durante a discussão do texto, faz-se o apontamento e sua respectiva tradução em Libras ou datilologia (soletração de uma palavra usando o alfabeto manual de Libras).

4 Análise quanto à teoria vygotskiana

A tarefa da aula consistia na leitura e discussão de um texto intitulado “Have you been taking care of your planet?”, no qual os alunos discutiam o que o homem tem feito para destruir o planeta, bem como maneiras de salvá-lo. A intérprete e os alunos surdos começam a discutir a primeira questão que solicitava: “Quais são as ações do homem que estão acabando como o nosso planeta?”. No recorte A, o aluno Elias questiona a professora, digo, a intérprete sobre uma frase em inglês presente no texto.

Recorte A
A01 Elias [Aponta para a frase no texto “cut down trees” e pergunta o que é.]
A02 Alice É cortar. Em português. [faz o sinal]
A03 Elias [Parece não compreender.]
A04 Alice C-o-r-t-a-r. [Alice soletra a palavra] Cortar as árvores. Cortar. [sinal]
A05 Elias [Repete o símbolo duas vezes olhando para a folha]
A06 Elias [Ao escrever no caderno, escreve “cuidar” ao invés de “cortar”.]
A07 Alice Cuidar não. É cortar. C-o-r-t-a-r. Árvore.

Em A01 Elias quer saber o que significa a frase “cut down trees” que aparece no texto. Essa fala pode ser considerada um exemplo de scaffolding, pois segundo Wood, Bruner e Ross (1976), o mesmo é entendido como um apoio cognitivo dado a um aprendiz (no caso, Elias) menos capaz por um indivíduo mais capaz (Alice). Esse apoio é oferecido quando Elias solicita a ajuda de Alice.

Em A02 Alice traduz a expressão com o sinal em Libras, ou seja, uso da LM e complementa com o sinal de “árvore”. Antón e Dicamilla (1999) fizeram um estudo mostrando a importância do uso da língua materna para a aquisição da LE. Eles afirmam que a LM é uma forma de scaffolding que ajuda a ZDP e mostram que seu uso, através do diálogo colaborativo, é uma oportunidade para a aquisição da LE. Alice recorre então à L2, língua portuguesa, soletrando a palavra “cortar” e, em seguia, volta a usar a LM expondo o sinal.

Já em A05 infere-se que constitui um exemplo de fala privada que, conforme Vygotsky (1998) representa um “pensar para si próprio” que podem se manifestar como um sussurro. Ao repetir o sinal duas vezes para si, sem a solicitação da professora ou da intérprete, podemos interpretar essa fala como privada, que tenderá à internalização. Nos recortes A06 e A07 Elias erra quanto á grafia da palavra “cortar”, escrevendo em seu lugar, “cuidar”. Mais uma vez ele receber a ajuda de Alice que soletra a palavra bem devagar (uso de L2).

Agora, passo para o Recorte B, momento em que temos a participação de Elias, Eliana e a intérprete e que se refere à seguinte questão: “Retire do texto, em Inglês, 04 palavras cognatas”. O diálogo inicia-se com a explicação da intérprete sobre o que é palavra cognata, em seguida ela fornece exemplos.

Recorte B
B01 Alice Igual. Igual no português. [apontando para a palavra “cognata”, Alice sinaliza]
B02 Elias [Não consegue entender.]
B03 Alice Agora você vai procurar aqui no texto.
B04 Elias O que? Procurar?
B05 Alice É, procurar. Procurar no texto palavras igual no português. Procura. Pode olhar.
B06 Eliana Procurar palavra igual no português?
B07 Alice Isso, certo. Igual no português.
B08 Eliana Essa aqui?
B09 Alice Qual? Qual é igual no português?
B10 Eliana [mostra uma palavra do texto].
B11 Alice Não. Está errado. Você tem que achar palavras que parecem com o português. Por exemplo, [Alice escreve a palavra “dictionary” na folha] essa palavra parece com qual no português. É igual a que?
B12 Elias Dicionário.
B13 Alice Então. Você vai procurar aqui, igual. Qual que é igual?
B14 Elias [Aponta para “dictionary”]
B15 Alice Essa aqui não tem aqui não. Outra. Outra.
B16 Elias [Fica parado, sem entender, olhando para a intérprete]
B17 Alice Olha, tem que procurar palavras igual no português. Por exemplo, vou dar o mesmo exemplo, “dictionary”. Igual o quê?
B18 Elias [Não responde].

Alice, em B01, começa o exercício com a explicação da palavra cognato. Para tanto ela utiliza o sinal de “igual no português”. Elias não consegue compreender e mais uma vez a intérprete explica que é para “procurar no texto palavras igual no português” (B05). Timidamente, Eliana confirma o que é para fazer em B06 e já fornece um retorno em B08 apontando para um exemplo do texto. Diante das dificuldades, Alice recorre a um exemplo que podemos caracterizar como um scaffolding na expectativa que os alunos a “imitem” de uma forma mais apropriada (WOOD, BRUNER e ROSS, 1976).

O modelo fornecido é a palavra “dictionary” (B11). Ao perguntar com qual palavra ela se parece em português, prontamente Elias responde que é “dicionário” (B12). Mas, posteriormente, este não consegue achar modelos no texto e aponta para a palavra “dictionary”. Quando a intérprete explica novamente o exercício, com o mesmo exemplo (B17), Elias não responde o que é (B18). Se em B12 ele havia respondido, porque agora no recorte B18 ele não responde? A princípio pode-se inferir que não houve uma internalização. Ele já havia dito que “dictionary” corresponde a “dicionário”, mas não o fez aqui. Provavelmente ele teve essa atitude por não estar entendendo o exercício, ou por estar cansado ou ainda por não ter acertado.

Ainda sobre o exercício que solicitava encontrar palavras cognatas, em inglês, no texto, Alice volta-se para Eliana que consegue completar o exercício. Como Elias parece ter desistido (como mostrado no recorte B) ele observa a conversa entre as duas e, posteriormente, começa a fazer sugestões.

Recorte C
C01 Eliana [Aponta para ‘plant’]
C02 Alice Isso. [apontando] é o que?
C03 Eliana Árvore.
C04 Alice Não. Plant [apontando] não é árvore. É plantar.
C05 Eliana Plantar. Plantar.
C06 Alice Isso. Agora outra. Olha, são quatro. Faltam duas. [enquanto isso volta para Elias]
C07 Elias [aponta para planet]
C08 Alice É, planeta. Olha. [escreve ‘planet’ ao lado da já escrita palavra “planeta”]. Não é igual? Não se parecem?
C09 Elias Não. O “a” é diferente.
C10 Alice Mas é só o “a” que é diferente, por isso se parecem.
C11 Eliana [aponta para “protect”]
C12 Alice Isso. Protect é o que?
C13 Eliana [sabe o que significa, mas não sabe o sinal ]. Como é em libras?
C14 Alice Proteger.
C15 Eliana Proteger. P-r-o-t-e-g-e-r. Protect.
C16 Alice Certo. Protect.
C17 Elias [aponta para “use”].
C18 Alice Usar. Certo. Use.
C19 Elias Usar. [apontando] [momento de silêncio]
C20 Elias Protect [apontando]
C21 Alice Isso. Protect é o que?
C22 Elias Proteger.
C23 Alice Proteger. Certo. Muito bem.

O uso de LM e L2 como um scaffolding, uma alavanca, para a aquisição da LE ou até mesmo o contrário, evidencia-se nos segmentos de C01 a C05. Eliana consegue achar mais um exemplo de cognato ao apontar para “plant” (C01), mas quando Alice pergunta o que é para verificar se ela é de fato um cognato, Eliana responde “árvore” (C03). Alice então a corrige quanto à tradução da palavra “plant”, mostrando o sinal de “plantar” (C04). O que se observa aqui é que o uso da LE ajudou Eliana a aprender a LM com a correção e, em seguida, a internalização do sinal. O segmento que se segue, o C05, representa um exemplo de fala privada assim como ocorreu em A05.

Algo semelhante ocorre no recorte C11 a C16. Eliana acha a palavra “protect”, sabe o que significa em português, mas não sabe o sinal (LM). Em C13, ela pergunta como é o sinal de “protect” em Libras. A intérprete faz o sinal e Eliana o repete duas vezes além de soletrar para verificar a grafia (uso de LM e L2). Esses exemplos estão de acordo com Antón e Dicamilla (1999) que mostraram que o uso de LM (e, no nosso caso, também a L2 por representar a língua portuguesa para a comunidade surda no Brasil) é necessário para facilitar a completude de uma tarefa em LE (no caso, os exemplos de palavras cognatas). É interessante ressaltar que o uso da LE também proporciona a aprendizagem da LM.

No segmento C07 há indícios de que Elias tenha internalizado todas as explicações de Alice, já que ele começa a mostrar palavras presentes no texto e que são cognatas. Todos os exemplos de scaffolding, “tais como fazer perguntas uns aos outros, pedir esclarecimentos, pedir sugestões, dar sugestões” (FIGUEIREDO, 2003, p. 145) e que ocorre na ZDP resultaram em uma internalização, pois houve uma transformação de processos externos, concretizados nas atividades entre as pessoas, em um processo intrapsicológico, onde a atividade é reconstruída internamente. C07 (“planet”), C17 (“use”) e C20 (“protect”) mostram essa internalização, pois Elias conseguiu compreender o significado de palavras cognatas, ao fornecer três exemplos.

De uma forma geral, observa-se que tudo começou com a explicação da palavra ‘cognato’, ou seja, a atividade é regulada pelo objeto (a palavra desconhecida). Os alunos são agora regulados pelo outro, dependendo da ajuda de Alice para conseguir entender o exercício. Ao fazê-lo com excelência, eles passam a ser auto-regulados, pois os conceitos foram internalizados. Ao passarem de regulados pelo outro para auto-regulados, os alunos entendem o que é para fazer e acham os outros exemplos sem a intervenção de Alice (salvo quando ela percebe algum erro de grafia ou sinal). Os exemplos que Alice forneceu serviram como uma mediação para regular o pensamento externo em interno.

5. Considerações finais

Destaca-se, com este estudo, que os alunos surdos inseridos numa escola inclusiva, conseguem e podem aprender a língua inglesa. Pelo oferecimento de scaffoldings a aquisição da língua inglesa e também da L2 e Libras foram possíveis. Por isso a importância da filosofia do bilinguismo, pois o aluno surdo precisa conviver com sua comunidade surda para primeiro construir sua fala (Libras), identidade e cultura. Com essa pesquisa destaca-se que os alunos têm um posicionamento ativo, participante na discussão do texto com a intérprete.

Desde já coloco que a prática do professor de inglês na escola inclusiva com alunos com NEEs tem me incomodado sobremaneira. Será que sabemos lidar com o inusitado, com o novo? Seria isso um desafio para o professor de língua inglesa? Atrevo-me a dizer que sim. E mais, não só para o professor de LE, como também para o intérprete e qualquer outro profissional, pois a inclusão envolve, em qualquer perspectiva, não só a pedagógica, uma mudança de paradigmas.

Isso implica que, nós, professores, devemos mudar, repensar, refletir concepções que estão “cristalizadas”. Não é tarefa fácil mudar algo tão enraizado em nossas práticas. Isso gera medo, insegurança e desconforto Inclusão não é mudança ou transferência dos alunos com necessidades educacionais especiais de uma escola especial para uma escola inclusiva (regular). Não é simplesmente jogá-los neste novo espaço. É um processo complexo. Conforme afirma Mantoan (2003):

A escola não pode continuar ignorando o que acontece ao seu redor e nem anulando e marginalizando as diferenças nos processos pelo qual forma e instrui os alunos. E muito menos desconhecer que aprender implica ser capaz de expressar, dos mais variados modos, o que sabemos, implica representar o mundo a partir de nossas origens, de nossos valores e sentimentos. (MANTOAN, 2003, p. 17)

Almejo que a experiência aqui relatada possa ser associada a outras experiências de semelhante linha de ação e transforme-se em um convite a outros professores e pesquisadores que se dedicam ao ensino/aprendizagem de língua estrangeira numa educação inclusiva e com alunos com necessidades educacionais especiais.

Notas

1 A LE ou língua estrangeira é a língua aprendida ou adquirida fora do ambiente onde ela é falada como nativa (FIGUEIREDO, 2006, p.30). Neste estudo a língua inglesa será nossa LE. No caso da comunidade surda, a Língua Materna (LM) é a língua de sinais, a Libras. E a segunda língua (L2) é o português.
2 O termo se refere a alunos com Necessidades Educacionais Especiais e tem sido usado pelo Ministério da Educação – MEC – para identificar os alunos especiais. Esta sigla ou expressão pode ser usada para referir-se a qualquer pessoa cujas necessidades decorrem de sua elevada capacidade ou dificuldades para aprender.
3 “Considera-se pessoa surda àquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (DECRETO n.º 5626/2005). Como seu oposto, será usado o termo ouvinte, que se refere à pessoa que ouve.
4 Adoto a sigla Libras (Língua Brasileira de Sinais) para designar a língua de sinais brasileira e por ser este o seu nome oficial, segundo a Lei Federal de nº10. 436/2002 e o Decreto n.º 5626/2005.

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