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Neiva de Aquino Albres
Neiva de Aquino Albres
Fonoaudióloga
Imagens de um movimento político educacional: análise da história contada pelos surdos
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Publicado em 2012
In: Anais do V Congresso Brasileiro de Educação Especial (V CBEE) / VII Encontro Nacional dos Pesquisadores da Educação Especial (VII ENPEE). São Carlos: UFSCar. pp. 680-700.
Neiva de Aquino Albres
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Resumo

Este artigo apresenta resultados de uma investigação sobre movimento político dos surdos em direção a uma educação bilíngue, em contexto nacional e virtual. Levantamos imagens produzidas pela comunidade surda para defesa de suas bandeiras. A questão de pesquisa foi: Qual a importância que essa forma de discurso assume nos processos de elaboração da memória, seja ela coletiva ou particular? O objetivo foi poder aclarar como essa forma de comunicação se apresenta contemporaneamente, tendo em vista os novos suportes e linguagens que a modernização disponibilizou, como os grupos virtuais, dentre eles o Facebook. Este artigo pontua por uma análise dialógica dos discursos em circulação, e que tem no pensamento bakhtiniano sua inspiração, coincide com uma tendência atual de conceber a linguagem, seu estudo teórico e as línguas de maneira geral como “objetos de um saber sobre o homem”. Constatamos nas imagens o gênero humor como estratégia de linguagem política. Dos discursos imagéticos podemos inferir que, apesar do reconhecimento da língua de sinais como a língua da educação dos surdos, o uso dessa língua na escolarização acaba não acontecendo de forma plena, uma vez a comunidade surda continua na luta pela escola bilíngue.

Introdução

Os surdos se organizam politicamente inspirados pelos movimentos sociais das minorias étnicas e culturais, principalmente dos Estados Unidos, reivindicando o reconhecimento de sua diferença linguística. O ano de 2002 tem como marco o reconhecimento da Libras (BRASIL, 2002), os surdos trabalharam para denunciar a opressão sofrida historicamente com a abordagem oralista e difundiram sua língua, afirmando-se como grupo minoritário (FERNANDES, 2011).

Assim, os surdos se apoiam nos movimentos sociais de minorias étnicas, linguísticas e religiosas, fundando também no Brasil o que se tem chamado de "organização politica do movimento surdo". Para Thoma (2004, p.58) o que os une vai além da condição auditiva “[...] uma distinção que fala nos surdos como membros de uma comunidade plural, mas que tem em comum as marcas da exclusão pela condição do não ouvir”.

A investigação que apresentamos neste artigo surgiu no momento em que, face a uma ameaça de fechamento do Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES (escola de surdos no Estado do Rio de Janeiro), a comunidade surda se une e usa grupos virtuais de discussão na rede social Facebook para articulação política. Assim, adveio o instigante desafio de relatar essa história por meio dos textos verbo-visuais, descrever e analisar, as representações sobre a educação de surdos. Tal estudo se mostra oportuno tendo em vista a análise dos recursos visuais produzidos como cultura da imagem.

Trabalhamos com base na perspectiva teórica histórico-cultural e nos estudos da corrente verbo-visual. No que diz respeito às fontes iconográficas, reconhece-se, no entanto, que as pessoas frequentemente as desvalorizam atribuindo-lhes apenas a função de ilustração do texto escrito seja ele uma fonte histórica ou o dos autores dos livros escolares.

Para Melo, Coelho e Santos (2010) as imagens que ilustram uma história tem uma natureza plural e outras intenções devem ser consideradas, como: a) enquanto objeto artístico com linguagem e técnicas específicas que podem determinar o seu conteúdo declarativo, e b) enquanto fonte histórica que oferece uma narrativa enquadrada temporal e contextualmente, e ou gerando a criação de narrativas alternativas feitas pelos leitores. A questão dessa pesquisa foi: Qual a importância que essa forma de discurso assume nos processos de elaboração da memória, seja ela coletiva ou particular?

Para Karnopp, Klein e Lunard-Lazzarin (2011) os espaços virtuais propiciam uma interação nacional e possibilitam a construção de significados culturais e de identidades surdas. Consideramos serem as redes sociais virtuais um importante espaço político. Tomamos como espaço virtual de analise o Facebook, mais precisamente as imagens postadas no Grupo – Escola Bilíngue para Surd@s ou na linha do tempo de seus participantes do ano de 2010 a 2012.

Nos interessa as narrativas feitas de imagens e vestígios gráficos da passagem de momento histórico sobre o movimento político da comunidade surda referente a sua educação. Dessa forma, o objetivo é procurar caracterizar o que se poderia denominar uma teoria e/ou análise dialógica do discurso, cujas características epistemológicas e metodológicas constituem uma grande contribuição para os estudos da linguagem em geral e, também, para as pesquisas em ciências humanas.

Referencial teórico

Tomamos como premissa que compreender as imagens como produções culturais e subjetivas, assumindo como revelações objetivas do próprio mundo faz parte de um estudioso da linguagem. Assim, essas imagens são tão simbólicas e cheias de significados quanto qualquer palavra (discurso).

A imagem é signo, portanto linguagem. O mundo, cada vez mais, se revela por meio de narrativas figuradas, exigindo a presença de um novo leitor. Portanto, a imagem técnica deve ser decifrada para que as diversas camadas de significado nela contidas possam emergir no discurso em forma de texto. Compreender uma imagem é poder percorrer, no sentido inverso, o caminho de seu processo de criação (SOUZA, 2007, p.79).

Uma imagem técnica esconde conceitos e sentidos que lhe deram origem; portanto, decifrá-la é procurar reconstruir o texto ou os textos que tal imagem contem. Estes textos são o modo como inventamos o mundo como abstração conceitual, melhor dizendo, o mundo revelado a nós através de conceitos (SOUZA, 2007, p. 79).

O virtual mais do que sinônimo de ilusão ou falsidade, compreende um outro espaço de experimentação da própria realidade, proporcionado pelo convívio cotidiano com a imagem técnica (SOUZA, 2007, p.80). O efeito da cultura da imagem se revela no comportamento das pessoas e é assumido de modo natural, mas não espontâneo. O natural aqui subentende sua criação pela interação com o outro, e pela mediação do signo, seja ele verbal ou visual.

Bakhtin dedicou parte de sua obra para analisar textos literários, todavia, sua reflexão sobre criação estética nos permite estabelecer relações teóricas com a produção de imagens. Encontramos em Bakhtin dois conceitos – dialogismo e alteridade – que servem de subsidio para a análise.

Fundamentados em Bakhtin (2010), compreendemos que os objetos significativos não estão jamais acabados, podendo ser constantemente refeitos pelos que entram em contato com eles. Assim, a produção e a leitura das imagens em um espaço virtual, como grupos virtuais de discussão na rede social Facebook que pode ser revisitada, propositalmente ou sem intenção, visto que quando um participante curte ou posta um comentário a imagem pode reaparecer no topo da lista influencia a construção de novas outras possíveis leituras... um devir de significado, sempre plural.

Para Brait (2004) é em Bakhtin que se encontra uma articulação constitutiva entre os diferentes elementos da linguagem tratados, de forma a ser compreendido como parte das ciências humanas, apropriado para proporcionar formas de enfrentamento dos discursos fruto das interações entre seres humanos, quer de natureza artística ou não, mas sempre nas dimensões histórico-sociais-culturais que os constituem e na interdisciplinaridade necessária à concepção da linguagem que o guia.

Nesta perspectiva, há uma impossibilidade de desvincular linguagem/atividades humanas, seja qual for a especificidade dessa atividade e a natureza dessa linguagem, e, ainda, "a possibilidade de situar, no contexto atual de reflexões sobre a linguagem, as contribuições teórico-metodológicas para o refinamento das particularidades da linguagem em relação às diferentes e múltiplas atividades humanas" (BRAIT, 2004, p.192).

Nos propomos ler as imagens como enunciados embebidos de uma cultura e historicidade. Os desenhos escolhidos exemplificam a forma como as linguagens verbal e visual, como as imagens e as palavras, quando combinadas para produzir significados, caso das imagens destinadas à envolver a comunidade surda para a militância politica em favor da educação de surdos, podem desfrutar das características do suporte que as veiculam, não apenas para atingir seus destinatários, ou seja, os surdos e ouvintes envolvidos na educação de surdos, mas especialmente para constituí-los à sua imagem e semelhança. Essas imagens, compreendidas como textos verbo visuais, invadem o eu com o outro, “fazendo circular discursos que atravessam e constituem os indivíduos, constroem o imaginário, simulam identidades e, de fato, fazem uso dos sujeitos” (BRAIT, 2004, p.193), pertencendo sedutoramente no dia-a-dia, tomando uma condição de naturalidade na vida urbana na atualidade e transformando nossa existência.

[...] as linguagens em geral, ainda hoje e especialmente hoje, aí incluídas a linguagem verbal, as visuais e as que combinam o verbal e o visual para os mais diferentes fins, implicam a mobilização de múltiplos sentidos, múltiplos discursos, criando uma interação envolvente, sedutora, viva, que atinge o homem, sua maneira de ver o mundo, sua condição de ser e estar nesse mundo (BRAIT, 2004, p.193).

A linguagem é um instrumento psicológico que nos permite pensar, refletir e nos constitui. As imagens além de transmitir mensagens (informações) se fundem a nossa significação e possibilita a construção de sentidos próprios, revisitando a produção cultural do outro (nesse estudo – artistas surdos).

Metodologia

Nosso objeto é a leitura visual histórica, definida como “o processo de desenvolvimento de crescente sofisticação da percepção e da interpretação de fontes iconográficas (cartoons /charges e cartazes políticos)” (MELO; COELHO e SANTOS, 2010, p.1), envolvendo o pensamento crítico, à tomada de consciência das estratégias visuais que os artistas utilizam para criar efeitos em seus leitores.

Tomamos como espaço virtual de analise os grupos virtuais de discussão na rede social Facebook, mais precisamente as imagens e textos postados no Grupo – Escola Bilíngue para Surd@s ou na linha do tempo de seus participantes do ano de 2010 a 2012. O grupo é um grupo fechado e apresenta o seguinte texto em sua descrição: “Esse grupo pretende ser um espaço de trocas de experiências e ideias da educação bilíngue para surdos, conforme as reivindicações das comunidades surdas, baseadas nos artigos 24º (letras "b" e "c") e 30º (§ 4) da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência e o art. 22 do Decreto 5.626/2005”.

Cabe esclarecer que somos membros deste grupo, participamos dele como educadoras de surdos e pesquisadoras. O grupo é fechado, ou seja, a visualização de suas postagens é permitida apenas às pessoas inscritas nele. No campo da pesquisa, as imagens como objeto de análise ou como instrumento de coleta de dados vem ganhando recentemente credibilidade científica.

[...] podemos afirmar que os usos da videogravação, da fotografia e da internet vêm ganhando um espaço cada vez maior na vida social, consolidando praticas culturais e criando novos hábitos, por outro, no campo da pesquisa, embora ganhando crescente credibilidade, as discussões metodológicas sobre o uso desses aparatos técnicos são ainda muito insipientes (SOUZA, 2007, p. 81).

Dessa forma, temos consciência do desafio que temos ao nos propor compreender o texto verbo visual como criação humana e interpretável e interpretá-las como registro de uma história política marcada pelas identidades surdas.

Desenvolvemos a seleção de postagens que tivessem imagens criadas e que representassem o movimento político da comunidade surda, dessa forma foram excluídas fotos e imagens de propaganda de cursos ou eventos sociais. Selecionamos apenas as imagens que retratam a luta pela escola bilíngue para surdos.

Análise dos dados

Todo ato de compreensão implica uma resposta
(Bakhtin, Estética da criação verbal, 1992).

Vejamos a seguir algumas análises de charges e cartuns 1 do movimento político da comunidade surda que expressam realidade política da educação brasileira para surdos.

A pesquisa em ciências humanas pode se beneficiar do uso das imagens técnicas como instrumentos mediadores e reveladores das intensas experiências culturais e subjetivas que estamos vivendo no momento atual (SOUZA, 2007, p. 81). Para tanto antes de analisar as imagens desenvolvemos um texto para contextualizar o leitor do momento histórico de sua produção.

Os surdos, historicamente, percorreram uma longa trajetória para obter o pleno exercício de seus direitos individuais e sociais, e o respeito a sua língua, a Língua de Sinais no Brasil. Desde o método oralista na educação de surdos que perdurou quase 100 anos, momento em que a língua de sinais foi proibida e considerada uma ameaça para o desenvolvimento da criança surda. Posteriormente, considerada uma fase de transição, a Comunicação Total, que permitia o uso de sinais e mantinha o foco na oralização, mas sem sucessos convincentes. Entre o final da década e 1980 e início da década de 1990 vê-se novos estudos e a busca por uma abordagem bilíngue na educação de Surdos, que tem entre suas premissas o ensino da língua de sinais como língua materna sendo essa a língua de instrução para os surdos e a língua portuguesa tida como segunda língua (LACERDA, 1998).

Para Lodi e Almeida (2010), antes dos anos 2000, a comunidade surda brasileira se organiza em busca do reconhecimento, valorização e uso da Libras nos diferentes espaços sociais e nos processos constitutivos dos surdos como sujeitos bilíngues-biculturais, e a partir desse ano leis e decretos são promulgados e as pesquisas acadêmicas tomam a educação de surdos como temática. Segundo as mesmas autoras, nesse mesmo período os surdos passaram a frequentar os espaços acadêmicos e hoje já existem os surdos que concluíram suas pesquisas na graduação stricto sensu. São esses surdos que, agora politicamente organizados, continuam a luta pela Escola Bilíngue para Surdos.

Após o Brasil tornar-se signatário da convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das pessoas com Deficiência em 2007, neste mesmo ano o então presidente Luis Inácio Lula da Silva assina o decreto nº 6.253/2007 que regulamenta o Fundo de manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos profissionais da educação – Fundeb e definiu e instituiu o Atendimento Educacional Especializado – AEE (BRASIL, 2007).

No ano seguinte o presidente assina o decreto nº 6.571/2008 – que dispunha sobre o movimento de inclusão radical prevendo a escolarização no ensino regular em todos os níveis e em qualquer situação (BRASIL, 2008), essa legislação culminou no fechamento de inúmeras escolas especiais, inclusive escolas que atendiam somente surdos e também o fechamento de classes especiais, como também o fechamento da Secretaria de Educação Especial (SEE) do MEC, sendo as atividades desta incorporadas pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI).

A comunidade surda insiste tentando distanciar-se das outras deficiências na discussão sobre educação com a justificativa da especificidade linguística em torno da educação de surdos, pautando-se na perspectiva de que a escola regular não considera a diferença linguística e não atende às necessidades das crianças surdas no que diz respeito à aquisição de linguagem e de língua e nas condições de aprendizagem dos conteúdos a que a escolarização se destina.

Em 17 de novembro de 2011, com o lançamento do Plano Nacional dos direitos da Pessoa com Deficiência “Viver sem Limites” Dilma Rousseff assina o Decreto nº 7611/2011 que entre seus principais efeitos revogou o decreto da inclusão de 2008, reacendendo as discussões políticas e fortalecendo o movimento dos surdos em prol da Escola bilíngue para Surdos. Segundo o decreto nº 7.611/2011 são observadas em especial as seguintes considerações: “Art. 1o § 2o - No caso dos estudantes surdos e com deficiência auditiva serão observadas as diretrizes e princípios dispostos no decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005” esta que é a maior arma em poder da comunidade surda e também o “Art. 14. § 1o - Serão consideradas, para a educação especial, as matrículas na rede regular de ensino, em classes comuns ou em classes especiais de escolas regulares, e em escolas especiais ou especializadas”. A partir disso o discurso da comunidade surda em favor da Escola Bilíngue para Surdos se fortalece.

Estas questões políticas e convicções teóricas em torno da educação de surdos permeiam e dialogam com as reivindicações e ações da comunidade surda que serão ilustradas a seguir.

Em 24 de março de 2011, a comunidade surda brasileira foi surpreendida com a notícia de fechamento do INES. Logo depois nos foi esclarecido que, na verdade, o governo federal, através do MEC, expressou à diretoria do INES o seu desejo de encerrar as atividades do CAP (Colégio de Aplicação) que funciona dentro do INES com ensino fundamental e médio especificamente para alunos surdos.

A comunidade surda desenvolveu uma grande manifestação em defesa do INES e das escolas bilíngues, justificando que apenas nestes espaços, bilíngues, é possibilitado aos surdos desenvolver-se como pessoas e assim alcançar a inclusão verdadeira, como cidadãos com língua e cultura própria. Nesta mesma época foram produzidos inúmeros vídeos de surdos enunciando seus anseios, preocupações, dúvidas e reivindicações contra o fechamento do INES e em favor da escola de surdos.

A charge “Movimentos sociais surdos no Brasil” foi disponibilizada no perfil do Facebook de um surdo quando do momento de discussão sobre a intenção de fechamento do INES pelo Ministério da Educação movido pela política de educação inclusiva.

Para Bakhtin (2010), qualquer enunciação produzida por seres humanos só pode ser compreendida se entendermos sua relação com outras enunciações. Essa imagem (figura 1) foi produzida (montada) em resposta as pressões políticas de fechamento das escolas de surdos em todo o país. Assim, a imagem do INES ao fundo, da sombra de pessoas com as mãos levantadas e da atual diretora de Educação Especial com o Dizer: “FORA”, indicam a reivindicação da comunidade surda de manter o INES como espaço de referencia histórica e social da comunidade surda e de uso da Libras, também a escola para surdos do INES Desde o ano de 2010, os lideres surdos têm participado da Conferência Nacional de Educação (CONAE) como delegados apresentando propostas de educação de surdos para serem postas no Plano Nacional de Educação (PNE 2011- 2020). Dentre os itens de reivindicação está o direito de ter uma educação em Língua de Sinais. Todavia, muitas das propostas dos surdos foram suprimidas ou reelaboradas não deixando explicito o desejo da comunidade surda.

Diante desse momento histórico, da sensação de ameaça ao direito de uma educação bilíngue para surdos, os surdos marcaram uma passeata para os dias 19 e 20 de maio de 2011. Nessa ocasião apresentaram suas propostas para Educação de Surdos baseados na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2008), a Lei de Libras nº 10.436/2002 e o decreto nº 5.626/2005.

O cartum (figura 2) apresenta personagens, negros, brancos, pardos, jovens, velhos, mulheres e homens, representando a diversidade humana, dentro dela a surdez, na imagem todos estão usando a língua de sinais, o que representa a comunidade surda. A alteridade está registrada pela constituição dos personagens como usuários da língua de sinais.

A consciência individual se constitui no social, a consciência tem sua materialidade própria nos signos, e estes emergem no processo de interação entre uma e outra consciência. (BAKHTIN, 1992) Dessa forma, o signo não pertence mais ao individuo, mas ao grupo social organizado em espaço virtual, onde os signos se concretizam e podem ser “apropriados” – quando passam a ser um discurso seu, postado em seu status como se fosse um convite seu a todos, compartilhando a imagem (convite) no Facebook se diz de si.

Outra questão que tem assombrado a consolidação de educação bilíngue para surdos é o projeto de uma educação inclusiva, por vezes sem preparo e sem estrutura o que ocasiona sofrimento aos surdos, isolamento social e não acesso ao aprendizado dos conteúdos dos componentes curriculares, visto que a escola comum não tem como língua de instrução a língua de sinais (SÁ, 2011; BASTOS, 2011; BRITO e SÁ, 2011; e ROSA, 2011).

O cartum (figura 3) apresenta cinco personagens, pelo quadro negro de fundo, pelas carteiras e pelo uniforme se subentende que estão na escola, um deles está com a mochila nas costas pressupondo que está fugindo desse espaço, todos apresentam uma expressão facial de espanto diante do sinal em Libras “INCLUSÃO” que se projeta sobre eles de forma impositiva e os gestos indicam pavor, repressão e medo.

Do ponto de vista ideológico, a escola bilíngue é o desejo dos os surdos, como indica a imagem onde as palavras “escola bilíngue” escritas em azul (cor do movimento da comunidade dos surdos) estão “ticadas com verde” e as palavras “inclusão escolar” aparecem em vermelho e riscadas em cima, como se devessem ser apagadas. Os personagens do cartum exibem gestos e sinais que indicam a impossibilidade de falar (mão na boca e mão na garganta), feita pelo cartunista para criticar a atual política de educação brasileira, em que surdos são incluídos em um espaço excludente sem a possibilidade de opinar, ser ter a devida atenção as suas necessidades educacionais.

Estes personagens estão no espaço da escola, a lousa ao fundo da imagem e as carteiras retratam o ambiente escolar. Podemos perceber na expressão de medo e pavor dos personagens a representação de um ambiente opressivo e, indicando que a inclusão escolar como única politica educacional para surdos tem deixado marcas negativas.

Bakhtin (1999) afirma que toda enunciação é um diálogo, que faz parte de um processo ininterrupto da comunicação humana. Um enunciado jamais pode ser entendido como fato isolado, pois ele pressupõe uma conexão com todos aqueles que o antecederam e com aqueles que o sucederá, um enunciado configura-se como o elo de uma cadeia e só é possível a sua compreensão dentro desta cadeia.

Esse cartum (figura 3) antecede todo um movimento em prol da educação bilíngue para surdos. A partir da dificuldade de consolidação das reivindicações da comunidade surda, a FENEIS solicita reuniões públicas para discutir as questões da educação de surdos e uma dessas reuniões foi realizada com representante da SECADI do MEC na Procuradoria Geral da República. Após essa reunião a seguinte charge (figura 4) foi produzida por um desenhista surdo e postada por Patrícia Luiza Rezende (diretoria de política educacional da FENEIS).

A charge (figura 4) foi postada no Facebook e é acompanhada da seguinte declaração de Patrícia:

Caricatura feita por Sérgio Júnior!! Meu embate contra Martinha Claret do SECADI/MEC na Procuradoria Geral da República no dia primeiro de dezembro! Eu a acusei de provocar etnocídio linguístico e cultural da comunidade surda ao provocar fechamento das escolas e salas de surdos pelo país todo... durante o meu discurso contra ela que durou 5 minutos ela tomou 14 goles de água!!! (PATRICIA LUIZA FERREIRA REZENDE)

O desenhista ilustra a representante do MEC como uma pessoa amedrontada diante do discurso da representante da comunidade surda, ela treme e bebe água para “molhar a garanta seca”, além de arregalar os olhos diante das declarações de falta de política educacional voltada para os alunos surdos. Logo depois desse fato a FENEIS solicita ao Ministério Publico Federal a abertura de inquérito civil sobre a política da SECADI/MEC para os surdos. Tendo como objetivo “Apurar possível falta de políticas públicas voltadas aos surdos falantes da língua de sinais brasileira (Libras), por parte da Secretaria de Alfabetização, diversidade e inclusão do Ministério da Educação”. (PORTARIA nº 9, de 30 de março de 2012).

A charge e as declarações de Patrícia Luiza Rezende indicam que a comunidade surda tem avançado em sua luta, reflete a consciência de que intimidou seu inimigo declarado e que por meio do discurso embasado politica e legalmente tem consolidado uma linha estratégica de defesa da educação bilíngue para surdos em classes ou escolas bilíngues. As ações da comunidade surda são externalizadas pelo signo, por meio da palavra e de imagens, e disponibilizadas em espaço virtual que podem ser visitados em diferentes momentos por diferentes pessoas, espaço este em que se constitui a consciência de cada um.

A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, ela reflete sua lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobrea nada (BAKHTIN / VOLOCHÍNOV, 1981, pp. 35-36).

Novamente a comunidade surda pede a saída de um representante político do MEC que conduz a educação para a diversidade sem flexibilização, sem levar em consideração a condição linguística dos alunos surdos. A mobilização dos surdos continua, agora em outra frente, agendando reuniões com a presidente da republica, e buscando o apoio de políticos sensíveis a causa dos surdos, como o deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG), forte aliado da comunidade surda.

A charge (figura 5) apresenta 3 atividades prevista para a data do convite, 24 de abril de 2012, exatamente a data que comemora 10 anos da lei de Libras, descrito no cartum, que corresponde a um forte argumento, um ato público da comunidade surda, e a entrega de Proposta do Programa Nacional de escolas Bilíngues para Surdos.

O cartum é convite para que os surdos fossem à Brasilia. É apresentado um diálogo entre dois personagens surdos (orelha marcada com um x indicando que são surdos).

A: __Vamos?
B: __ Para onde?
A: __ Vamos para Brasilia.
B: __ Ah! Eu vou.
A: __ Educação bilíngue.
B: __ Fico Feliz!

A presidente do Brasil Dilma Vana Rousseff está a esquerda de mãos estendidas para receber os surdos, com a outra mão faz o sinal de positivo, apresenta um largo sorriso e veste seu tradicional tayer vermelho, entretanto veste também a camiseta do movimento “Escola bilíngue para surdos”. Isso indica a expectativa da comunidade surda em relação ao acontecimento. Todavia, os surdos não foram recebidos pela presidente, mas pela ministra-chefe da casa civil (Gleisi Hoffmann) que conversou com a comissão da FENEIS.

“Os mecanismos de constituição social do sujeito não o fazem passivo nem determinado, mas flutuante e ininterruptamente em constituição” (GERALDI, 2010, p. 287). Assim, os surdos e ouvintes, participantes desse espaço virtual vão se constituindo por estas imagens e palavras, vão construindo uma consciência coletiva de luta por direitos linguísticos e educacionais.

A reunião para apresentação de emendas para o PNE é anunciada e os surdos se mobilizam para participar. No Facebook, em várias comunidades e perfis é postado o seguinte convite:

No cartum (figura 6) a sigla PNE é preenchida com o emblema da “Escola bilíngue para surdos”, o convite escrito é para a realização de uma manifestação. Na verdade, a intenção seria tencionar as discussões. Entretanto esta reunião acabou sendo adiada para o mês de junho.

Após essa reunião, o PNE sai com uma versão preliminar para apreciação da comunidade não atendendo a reivindicação de muitas das parcelas da sociedade foi organizada uma comissão Especial do PNE tendo como relator o deputado federal Ângelo Vanhoni (PT-PR). Tal comissão recebeu 3 mil emendas apresentadas pelos deputados ao projeto, após análise sendo elaboradas pela comissão 34 emendas ao relatório substitutivo divulgado em junho de 2012. Reivindicações desde investimento público em educação pública de forma a atingir o equivalente a 7% do PIB (Produto Interno Bruto) no quinto ano de vigência do Plano e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio. Até o que atinge diretamente os alunos surdos, visto que reivindicavam como plano nacional a criação de classes e escolas bilíngues e a ampliação da faixa etária de quatro para zero ano do início de atendimento educacional. Todavia, no documento preliminar divulgado em junho de 2012 as reivindicações dos surdos são deturpada e pontos importantes não são atendidos (registrados).

O cartum acima (figura 7) revela a celebração pelos 10 anos da Lei de Libras e o símbolo do movimento em favor de uma educação bilíngue para surdos. Apresenta mãos que se encontram, a mão à direita é maior e representa o português escrito (L2 dos surdos), tocando nela, está a mão verde que representa a língua de sinais. Constituir-se um ser humano bilíngue, a língua portuguesa na mão estendida e os surdos com sua primeira língua, desejosos por esse contato, pela instrução em Libras para adquirir as competências em português.

[...] nenhum leitor comparece aos textos desnudados de suas contrapalavras de modo que participam da compreensão construída tanto aquele que lê quanto aquele que escreveu, com predominância do primeiro porque no dialogo travado na leitura o autor se faz falante e se faz mudo nas muitas palavras cujos fios de significação reconhecidos são reorientados segundo diferentes direções impostas pelas contrapalavras da leitura (GERALDI, 2010, p. 279).

Por vezes as imagens são postadas como convite, outras vezes são postadas depois do acontecido como celebração ou registro histórico. O resultado do PNE foi favorável aos desejos da comunidade surda e ela festeja por isso, agradecendo a seus lideres.

No cartum acima (figura 8) Patrícia, diretora de políticas educacionais da FENEIS, é abraçada pela escola bilíngue para surdos, como se fosse abraçada por todos os surdos que tiveram diante de sua liderança uma batalha vencida e um objetivo alcançado – o registro da escola e classe bilíngue no PNE. Logo após sair notícias no jornal da Câmara Nacional os surdos postam na comunidade “Escola Bilíngue para Surd@s” do Facebook a imagem 9 (figura 9) com a seguinte mensagem: “Meus parabéns! Você é merece mesmo!!! VITÓRIA DOS SURDOS!!”

Tais papéis/documentos nada mais eram do que o PNE do Legislativo municipal, como as emendas e possibilidades de textos para a emenda 4, na perspectiva de garantir a educação bilíngue, o ensino da Libras como primeira língua e o ensino do português como segunda língua.

Após a ida à Comissão Especial do PNE no dia 24 de abril (durante as manifestações do aniversário de 10 anos da Lei de Libras), os surdos voltaram à Câmara Federal no dia 29 de maio. Nesse dia, o Deputado Vanhoni apresentou a proposta elaborada com a participação da Feneis para a Estratégia 4.6, que determina a universalização para alunos surdos de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos da educação bilíngue, com Libras como primeira língua e Português escrito como segunda língua, em escolas bilíngues, classes bilíngues e classes “comuns” da chamada rede regular de ensino, conforme o art. 22 do decreto nº 5626/2005 e os artigos 24 e 30 da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

Algumas considerações

Podemos dizer que os diálogos presentes nos cartuns e charges, em geral são utilizados com a finalidade de denúncia e de críticas, não estão necessariamente explícitos, estão relacionados a outros discursos e envolvidos de um discurso de luta e conquistas.

Os desenhistas surdos vão instaurando vários enunciadores, personagens conhecidos e desconhecidos, deflagrando um humor cujas entrelinhas atualizam representações de dada consciência social, valores característicos de um dado momento ou cultura de forma implícita.

Atualmente há um forte movimento social em defesa da Escola bilíngue de Surdos. O Facebook se configura como um espaço de luta por uma política educacional que leve a construção de uma escola como linguístico favorável ao pleno desenvolvimento das capacidades cognitivas, sociais e afetivas dos alunos surdos, e as imagens-palavras se constituem como signos fundamentais para a transmissão de uma ideologia, nesse sentido, as pessoas são afetadas pelo fenômeno da linguagem de forma heterogênea e interativa. No dialogismo dessa rede social as pessoas curtem, compartilham, comentam
concordam, discordam, opinam.

Nestes espaços virtuais o dialogismo vive, perduram diálogos trabalhos entre o eu e o outro, assim somos atravessados por diversos discursos que circulam na sociedade, assim somos constituídos também por essas linguagens (imagens, palavras e sinais).

Notas

1 Quando no desenho houver somente personagens desconhecidos, será denominado de “cartum”, caso os personagens desenhados sejam reconhecidos será então denominado de “charge”.

Bibliografia

BASTOS, T. O contexto da sala aula e a educação da criança surda. In: SÁ, NR. Surdos: qual escola? Manaus: Editora Valer e Edua, 2011.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.

BRAIT, B. Linguagem e identidade: um constante trabalho de estilo. In: Trabalho, Educação e Saúde, 2(1): 185-201, 2004.

BRASIL. Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências.

_______. DECRETO Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

_______. DECRETO Nº 6.571, de 17 de setembro de 2008. Dispõe sobre o atendimento educacional especializado, regulamenta o parágrafo único do art. 60 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e acrescenta dispositivo ao Decreto no 6.253, de 13 de novembro de 2007.

________. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: decreto legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008: decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.

_______. DECRETO Nº 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências.

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