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Movimento Surdo no cenário contemporâneo
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Publicado em 2012
I Encontro Nacional de Libras - RS
Carilissa Dall ´Alba
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Resumo

A presente pesquisa tem como objetivo principal entender as formas como o movimento surdo vem se articulando na contemporaneidade e quais seus efeitos no campo da educação de surdos. Para isso insere-se no campo dos Estudos Culturais em Educação, com atravessamentos do campo dos Estudos Surdos que entendem a surdez e a educação de surdos a partir de um contexto cultural e linguístico específico. A partir desse contexto teórico/metodológico, tenciona-se entender como os movimentos surdos, enquanto espaço de lutas e resistências surdas, vêm se ressignificando para a construção de uma política de educação para surdos pautada nas articulações entre língua de sinais e cultura surda. Para dar conta desse investimento de pesquisa, alguns objetivos nortearão essa problematização: entender a emergência dos movimentos surdos no cenário da educação de surdos; identificar as diferentes estratégias de lutas organizadas pelo movimento surdo a fim de compreender seus efeitos para a educação de surdos na contemporaneidade. Com as novas tecnologias o movimento surdo continua nas lutas, porém seu espaço de atuação se ampliou. A história das lutas e dos movimentos surdos articulada com a educação de surdos tem caráter histórico, são processuais, ocorrem dentro e fora de escolas e em outros espaços, como associações, internet, universidades.

Introdução

Movimento Surdo abrange uma ampla cultura surda que é muito presente nos movimentos. O movimento surdo tem as negociações com a Cultura Surda. Com as novas tecnologias traz as novas estratégicas e novas maneiras de preparar o movimento surdo e existe uma explosão nas redes sociais das organizações do movimento surdo, articulado com a educação de surdos no cenário contemporâneo. Registros dos movimentos de hoje são constantes e importantes para os dados, estudos e pesquisas. Tecnologia é um dispositivo importante.

1. Movimento Surdo no cenário contemporâneo

A presente pesquisa está filiada ao campo dos Estudos Culturais em Educação, com atravessamentos do campo dos Estudos Surdos que entendem a surdez e a educação de surdos a partir de um contexto cultural e linguístico específico. Essa perspectiva afasta-se dos discursos da área clínica/terapêutica ainda presentes no campo da educação de surdos. Skliar (1998) argumenta que o conceito “surdez” ainda está mais próximo da noção de diversidade do que de diferença.

O Conceito de diferença não é utilizado como um termo a mais, dentro de continuidade discursiva, onde habitualmente se incluem outros como, por exemplo, “deficiência” ou “diversidade”. Estes, no geral, mascaram e neutralizam as possíveis consequências políticas, colocam os outros sob um olhar paternalista, e se revelam como estratégias conservadoras para ocultar como intenção de normalização. A diferença, como significação política, é construída histórica e socialmente; é um processo e um produto de conflitos e movimentos sociais, de resistências às assimetrias de poder e de saber, de outra interpretação sobre a alteridade e sobre significado dos outros no discurso dominante (SKLIAR, 1998, p. 6).

A história do movimento surdo é muito extensa, mas pode-se dizer que o movimento surdo iniciou depois do ano 1834. Mottez (1992) confirma que 1834 é o ano de registro da história do movimento surdo.

Quero convidá-lo a registrar o ano de 1834 como uma das grandes datas da história dos surdos. Com primeiro banquete comemorando seu nascimento (1834) começa o culto ao Abade L’Epée. Para mim é a data de nascimento da nação surda. É o ano em que pela primeira vez os surdos-mudos se outorgam uma espécie de governo. Isto nunca havia acontecido (MOTTEZ, 1992, p. 7).

O abade L’Epée foi fundador da primeira escola para surdos; essa estava localizada na França e denominada de Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris. Essa instituição ajudou muitos surdos a mudar a vida, inclusive a primeira escola para surdos aqui no Brasil foi fundada por Eduard Huet, em 1857 no Rio de Janeiro, denominada de Imperial Instituto Nacional dos Surdos-Mudos 1, teve como referência Instituto de Surdos de Paris. No entanto, percebe-se que a ênfase nas questões de uma comunicação visual/gestual perde força após o Congresso Internacional de Educação de Surdos realizado em Milão/Itália. Esse congresso que ocorreu entre os dias 6 a 11 de setembro de 1880 foi organizado, patrocinado e conduzido por muitos especialistas ouvintistas 2, todos defensores do Oralismo 3. Segundo Wrigley (1996, p. 71), “a política ouvintista prevaleceu historicamente dentro do modelo clínico e demonstra as táticas de atitude reparadora e corretiva da surdez”.

Algumas pesquisas comprovam que havia muitos escritores surdos, artistas surdos, professores surdos, líderes surdos, militantes surdos e outros sujeitos surdos bem sucedidos antes da imposição da língua oral na vida das pessoas surdas, ou seja, o Congresso de Milão institui, a partir de 1880, outras formas de entendermos a educação, a cultura e a vida das pessoas surdas.

Depois do congresso veio a proibição de usar a língua de sinais na educação, houve muitas revoltas, lutas, movimentos e foram necessários muitos anos para reconquistar a língua de sinais nas escolas. Após o congresso, a maioria dos países adotou rapidamente o método oral nas escolas e proibiu língua de sinais. Ali começou uma longa e sofrida batalha do povo surdo para defender o seu direito linguístico, com isso as associações dos surdos se uniram mais, os povos surdos lutaram para evitar a extinção da língua de sinais.

2. Movimento Surdo articulado com a educação de surdos

Os principais motivos das manifestações da comunidade surda é educação de surdos, como cita Ladd (2003 apud LADD; GONÇALVES, 2011, p. 295):

A Educação de crianças surdas foi uma das grandes prioridades da maioria das comunidades surdas ao redor do mundo por mais de 250 anos. Nos últimos cem anos, no entanto, esta preocupação aumentou por causa da crescente frustração e até mesmo desespero diante de má qualidade dessa educação. A responsabilidade por essa situação tem sido tradicionalmente atribuída à hegemonia do oralismo, que definimos como uma tentativa de se tirar da educação surda tudo o que é “surdo” – línguas de sinais, os educadores surdos, o contato da comunidade com pais e crianças, a história surda, os Estudos Surdos e as culturas surdas.

A língua de sinais é o principal fator dos encontros das pessoas surdas. Nos anos 60 renasce a aceitação de língua de sinais e a cultura surda após muitos anos de opressão ouvintista, aqueles que não conheciam o uso a língua de sinais na vida de surdos, mas principalmente os médicos e as pessoas da área de saúde. O maior efeito das concepções ouvintistas é a centralidade do discurso clínico na educação de surdos. Segundo Perlin (1998, p. 58), “alguns ouvintes podem ficar ofendidos com a afirmação de que contribuem para ouvintizar o surdo, ou que se fala do vício de referir-se ao surdo como portador de anomalias e se reportem à exibição da experiência auditiva como superior em frente ao surdo”.

A citação da professora Perlin está muito presente nas pessoas ouvintes que não conhecem a cultura surda, ou melhor, a língua de sinais. Mas tem surdos que não querem ter “ligação” com as pessoas ouvintes por causa do passado, mas vejo que hoje os surdos estão mais “à vontade” com as pessoas ouvintes, pois penso que a era de ouvintismo já passou. Temos novos objetivos, novas perspectivas e novos olhares. O movimento surdo atual passa por outras lutas políticas, talvez, não mais aquelas que mobilizaram a militância surda para a oficialização da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e do direito das pessoas surdas. No entanto, percebo que essas outras formas do movimento surdo, lutar e resistir, muitas vezes são entendidas pelos próprios surdos como um enfraquecimento da luta política do povo surdo. O mundo surdo é envolvido pelas pessoas surdas e ouvintes, aqueles que defendem os mesmos interesses. Para Silva (1999, p. 29), “é compreensível que as pessoas envolvidas em revisar esses movimentos tendam a reivindicar a precedência para aqueles movimentos indicados em seu próprio País”.

A perspectiva clínica provocou a efervescência de movimentos políticos, sociais, históricos e linguísticos em defesa de Língua de Sinais. Participaram desses movimentos muitos ativistas surdos e também pessoas ouvintes ligadas diretamente com a luta surda. A perspectiva clínica também provocou diferentes representações nas relações entre surdos e ouvintes, talvez a principal delas seja a relação binária produzida entre surdos e ouvintes. Nessa lógica, estariam de um lado os ouvintes (opressores, colonialistas, oralistas) e de outro os surdos (subjugados, colonizados, ouvintizados).

Ressalto, mais uma vez, a hegemonia do método oralista no campo da educação de surdos como um dos principais motores para a organização política, social e histórica do movimento surdo organizado. Segundo Gohn (2011, p. 334):

A relação movimento social e educação existe a partir das ações práticas de movimentos e grupos sociais. Ocorre de duas formas, na interação dos movimentos em contato com instituições educacionais, e no interior do próprio movimento social, dado o caráter educativo de suas ações. A relação movimento social e educação foi construída a partir da atuação de novos atores que entravam na cena, sujeitos de novas ações coletivas que extrapolavam o âmbito da fábrica ou os locais de trabalho, atuando como moradores das periferias da cidade demandando ao poder público o atendimento de suas necessidades para sobreviver no mundo urbano. Os movimentos tiveram papel educativo para os sujeitos que compunham.

Com as palavras da Maria da Glória Ghon pude pensar muito os efeitos dos movimentos surdos. Penso que a educação de surdos está “colada” com o movimento surdo, pois quando começa um movimento surdo a escola de surdos, na maioria de vezes, está dentro desse movimento e essa vem colaborando muito nesse sentido. Nos últimos tempos, o número de surdos acadêmicos tem aumentado, talvez esse seja um fator do crescimento de personalidades surdas dentro do movimento, e esses estão cada vez mais determinados nos objetivos da comunidade surda, o que enfraquece muito a vertente do oralismo. Mas não estou me referindo que são somente os surdos acadêmicos que mudam o movimento surdo, os grupos de pesquisas das universidades também fizeram as mudanças, por exemplo, o Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação de Surdos (GIPES). Este grupo tem importantes pesquisadores ouvintes, grandes referências à comunidade surda, nesse grupo também há surdos pesquisadores. Há também a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), que sempre está articulada com os movimentos surdos aqui do Brasil e pelo mundo. A FENEIS foi fundada nos anos 70 pelas pessoas ouvintes e era conhecida como Federação Nacional de Educação e Integração do Deficiente Auditivo (FENEIDA). No entanto, em 1987, uma pessoa surda assumiu a direção da FENEIDA e mudou a sigla para FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração do Surdo). Souza (1998, p. 91) explica a mudança de FENEIDA para FENEIS:

A apropriação dessa Federação pelos surdos é repleta de significados. Simboliza uma vitória contra os ouvintes que consideravam a eles, surdos, incapazes de opinar e dedicar sobre seus próprios assuntos e entre eles, sublinha o papel da linguagem de sinais na educação regular. Desnuda, ainda, uma mudança de perspectiva, ou de representação discursiva, a respeito de si próprios: ao alterarem a denominação “deficientes auditivos”, impressa na sigla FENEIDA, para “Surdos”, em FENEIS, deixam claro que recusavam a atributo estereotipado que normalmente os ouvintes ainda lhe conferem, isto é, o de serem “deficientes”.

Entendo que as relações entre surdos e ouvintes são permeadas por jogos de pode e saber, no entanto penso que essas relações não se dão numa lógica binária entre o bem e o mal, mas como um poder que produz significados. Nesse sentido, me aproximo ao que Foucault (1996) diz sobre o poder,

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (FOUCAULT, 1996, p. 8).

Com a contemporaneidade o movimento surdo continua ativo, mas, com as novas maneiras. As lutas e reivindicações da militância surda que se movimentam a favor dessas causas vêm aos poucos conquistando mais espaço, tornando visível e possível a existência de uma escola desejada pela comunidade surda. As lutas de comunidade surda são para buscar o reconhecimento da diversidade cultural. Corroboro com a visão da pesquisadora surda Gládis Perlin sobre movimento surdo: “Para o movimento surdo, contam as instâncias que afiram a busca do direito do indivíduo surdo ser diferente nas questões sociais, politicas e econômicas que envolvem o mundo do trabalho, da saúde da educação do bem-estar social” (PERLIN, 1998, p. 71).

A história das comunidades surdas do Brasil é muito rica e recheada de experiências de vida das pessoas surdas que presenciaram o movimento surdo desde seu começo. A reunião dos surdos em comunidades como associações, federações, confederações e outras entidades como igrejas tiveram muitos objetivos, mas o principal deles foi o de defender a educação de surdos e da língua de sinais. Hoje em dia é muito fácil registrar as histórias do movimento surdo porque estamos na era tecnologia que colabora muito com esses registros, temos a câmera digital, computador, filmadoras, vídeos, celulares, e-mail que deixam todo mundo dentro das informações e atualizados. No entanto, temos poucos registros oficias sobre o movimento surdo e a sua história, isso se deu pelo fato de não haver métodos de registros que pudessem capturar a língua de sinais na época em que esse movimento foi criado. Não perdemos de vista que o uso de filmadoras, máquinas digitais e DVDs são muito recentes nas pesquisas no campo da educação de surdo. São muitas histórias que os surdos contam e são passadas de gerações em gerações, no entanto, há um número grande de histórias contadas por surdos e ouvintes simpatizantes pela educação de surdos, que por não haver formas de registro se perderam. Rangel (2004) reforça que seria importante ter um museu com registros, fotos, recortes de jornais e tudo para manter a história “viva”.

A modernidade com sua tecnologia faz com que esses momentos registrados possam perdurar para sempre, porém de nada adianta ter o registro fotográfico se este ficar escondido ou pertencer a uma só pessoa. Penso, que para o surdo, que tem seu apoio para aprendizagem no aspecto visual além do gestual, seria de sua importância à coleta destas fotos e a organização de um museu, onde estaria registrada sua história para que todas as gerações futuras pudessem admiram, aprender e a conviver com a luta e as conquistas deste povo (RANGEL, 2004, p. 34).

A história das luta e dos movimentos surdos articulada com a educação de Surdos tem caráter histórico, são processuais, ocorre, portanto, dentro e fora de escolas e em outros espaços, como associações, internet, universidades. As lutas pela educação são envolvidas por direitos e fazem parte da construção da cidadania. As lutas, as manifestações, os movimentos, as reuniões, os encontros que fazem a história do movimento surdo são compartilhadas com a FENEIS, WDF (Word Federation of the Deaf), escolas, universidades, prefeituras, etc. que apoiam a ideia das lutas. Segundo a Revista da FENEIS (1995, p. 10), “os Movimentos Surdos podem ser entendidos como movimentos sociais articulados a partir de aspirações, reivindicações, lutas das pessoas surdas no sentido do reconhecimento de sua língua, de sua cultura”. Esses movimentos são a partir dos espaços articulados pelos surdos, como as associações, as cooperativas, os clubes onde jovens e adultos surdos estabelecem o intercâmbio cultural e linguístico e fazem o uso oficial de língua de sinais.

Ao entender o movimento surdo articulado a outros movimentos sociais podemos pensar o quanto esse movimento está conectado a esse tempo contemporâneo, pois estamos mais focados em preparar os líderes surdos, criar as condições para a militância surda. Hoje há vários cursos de liderança e as associações buscam os líderes surdos para serem representadas nesses movimentos. Encontros, seminários, conferências, simpósios etc. são uma das estratégias básicas para darem continuidade à história, ou seja, estar dentro da comunidade surda e buscar as necessárias atualizações.

Podemos perceber que cada época tem sua emergência de luta, por muito tempo o movimento surdo se ocupou de mostrar a possibilidade do surdo para o mundo do trabalho, buscando potenciar a profissionalização desses sujeitos. Isso acaba tendo efeitos muito ruins na vida das pessoas surdas, pois não permitem que elas possam ser independentes, ter capacidade de escolha e muito mais do que isso, não dão a oportunidade aos surdos de conhecerem suas próprias capacidades. Antigamente existia uma lista de empregos que combinavam com as pessoas surdas, mas hoje em dia não existe, pois sabemos que os surdos podem escolher a sua profissão. É claro que nós surdos temos e conhecemos os nossos limites, mas sem exageros como havia no passado.

Diante dessa gama de movimentos que se cruzam entre um passado remoto e as atuais discussões do movimento surdo, podemos pensar o quanto as resistências surdas ainda incidem sobre a centralidade do direito do uso da língua de sinais. Um dos momentos importantes em que volta essa discussão na contemporaneidade, diz respeito às questões do Implante Coclear.

Antes os profissionais da área médica acreditavam que o uso do aparelho auditivo seria uma das melhores formas de desenvolver a fala nos sujeitos surdos, isso custou muito aos surdos e às pessoas que conheciam de fato os surdos e a sua educação de surdos. Atualmente a discussão acerca de fazer o surdo falar volta na figura do implante coclear. Atualmente o Sistema Único de Saúde (SUS) incentiva as famílias a fazer o implante coclear nos filhos surdos ainda bebês, para isso os bebês recém-nascidos são obrigados a fazer o teste de orelhinha com objetivo de colocar implante coclear imediatamente. Isto traz muitas preocupações à comunidade surda e muitas reflexões: se cada vez mais crianças surdas são implantadas, como fica a escola de surdos? E a língua de sinais? Como vai ser o futuro deles e de nós? Essas são questões provocantes e polêmicas, principalmente quando as articulamos com as lutas do movimento surdo: quantas coisas a comunidade surda lutou e quantas conquistas já tivemos no que diz respeito a obrigatoriedade da língua de sinais na educação das pessoas surdas. Ou melhor, no direito das pessoas surdas, de serem surdas. Segundo Rezende (2010, p. 125):

É uma saúde pública, é uma política estratégica que faz uso do teste da orelhinha para controlar a ordem social, a norma ouvinte. É assim que surge uma política pública de saúde direcionada à surdez, que regula a vida da população surda. É um biopoder; uma captura de bebês surdos para a normalização. O teste da orelhinha tem o claro propósito de capturar os bebês surdos para o implante coclear.

Mas o objetivo do SUS de submeter as crianças surdas ao implante coclear não é o único objetivo, outros objetivos podem ser melhores opções aos pais e às crianças surdas, por exemplo, dar a educação bilíngue precoce a essas crianças. A busca da normalização dos surdos sempre esteve presente nos diferentes momentos históricos da educação dos surdos, posso dizer que em cada época essas práticas tomam os contornos do seu tempo. Eu não presenciei os tempos em que os surdos eram obrigados a falar e, por isso, tinham suas mãos amarradas, mas vi milhares de conversas e falas passadas pelas gerações de surdos que eram forçados a aprender a falar, que não podiam usar a língua de sinais porque essa língua era considerada prejudicial à fala.

Muitos surdos usavam os sinais escondido da família e dos professores. Na minha geração, década de 1980, ainda se acreditava que os aparelhos auditivos fariam milagres e as aulas de fonoaudiologia eram importantes estratégias nessa busca pela oralização, por meio do ensino da leitura labial. No entanto, não posso dizer que éramos forçados a oralizar na escola, pois usávamos a língua de sinais em todos os momentos formais e informais da aprendizagem, porém destaco que a leitura labial sempre acompanhava os sinais quando estávamos junto de pessoas ouvintes, isso se deu até a década de noventa.

Atualmente estamos vivendo o momento da educação bilíngue. Penso que já avançamos muito no que se refere às práticas de normalização dos surdos por meio da oralização, no entanto essas práticas se refinam, tomam outros contornos, talvez uma das mais imponentes nesse momento seja a do implante coclear. Há muitos estudos e pesquisas que já mostraram a importância do acesso da língua de sinais mais precocemente possível para que as crianças surdas possam se desenvolver de forma mais saudável, por isso que negar esse acesso, para mim, significa uma das formas mais perversas de normalização do surdo. A partir da minha experiência de vida e enquanto professora de surdos, entendo que uma criança surda aprende melhor a escrever e a se desenvolver quando tiver a língua de sinais como primeira língua. Sabemos que é uma utopia fugirmos às práticas de normalização, mas podemos apresentar outras estratégias, talvez menos agressivas, como é o caso da língua de sinais: um elemento vital para a vida do povo surdo. Para Lunardi-Lazzarin (2010), essa busca pela normalidade é que acaba traçando os processos de in/exclusão na vida das pessoas surdas.

Talvez seja justamente essa “vida de normalidade” que fixa a anormalidade – assim, a exclusão. É na separação e na diferenciação dos discursos da educação que o binômio inclusão/exclusão opera como um (de)marcador de normalidades, pois ocorre através de uma relação assimétrica (LUNARDI-LAZZARIN, 2010, p.145).

São vários discursos sobre normalização de surdos, no entanto procuro pensar de que forma esses discursos atravessam a educação e o próprio movimento surdo. Nesse contexto, ouso afirmar que a relação entre os movimentos surdos e o campo educacional é extremamente forte e produtiva. Se tomarmos as atuais formas como o movimento surdo vem adentrando nas escolas de surdos, podemos pensar o quanto esse movimento também se constitui como uma forma de pedagogia cultural. Segundo os autores Costa, Silveira e Sommer (2003, p. 57):

Quer dizer, somos também educados por imagens, filmes, textos escritos, pela propaganda, pelas charges, pelos jornais e pela televisão, seja onde for que estes artefatos se exponham. Particulares visões do mundo, de gênero, de sexualidade, de cidadania entram em nossas vidas diariamente. É a isto que nos referimos quando usamos as expressões currículo cultural e pedagogia da mídia. Currículo cultural diz respeito às representações de mundo, de sociedade, do eu, que a mídia e outras maquinarias produzem e colocam em circulação, o conjunto de saberes, valores, formas de ver e de conhecer que está sendo ensinado por elas. Pedagogia da mídia refere-se à prática cultural que vem sendo problematizada para ressaltar essa dimensão formativa dos artefatos de comunicação e informação na vida contemporânea, com efeitos na política cultural que ultrapassam e/ou produzem as barreiras de classe, gênero sexual, moda de vida, etnia e tantas outras.

Relacionar o movimento surdo com as questões contemporâneas significa pensá-lo na articulação com a escola de surdos. Para Camatti e Lunardi-Lazzarin (2012, p. 390), “trata-se de procurar as formas pelas qual a comunidade surda investe na escola de surdos, no sentido de garantir a continuidade e a força da própria comunidade”. Isso significa a necessidade permanente de articulação entre a escola de surdos e os movimentos surdos a fim de garantir o lugar do sentimento comunitário, portanto de lutas e resistências.

3. Movimento Surdo e as negociações com a cultura surda

O movimento surdo negocia as aprendizagens que estão presentes nos cotidianos das comunidades surdas, sejam aprendizagens de ordem cultural, linguística, social, todas estão articuladas com o movimento surdo, principalmente pela educação de surdos. A cultura surda na contemporaneidade mostra que o consumo é imenso na internet, a tecnologia está muito presente na nossa atualidade. Os movimentos sociais em geral têm os seus artefatos, as imagens, os noticiários, os gráficos, os livros, as fotos, os vídeos, as músicas, mas isso não são apenas manifestações culturais, eles são artefatos produtivos relacionados com a sua comunidade, ou melhor, a sua cultura.

Na comunidade surda se usa muito a língua de sinais nas imagens, nos vídeos, nos noticiários. Isso pode ser visto, por exemplo, na organização para a manifestação de Brasília em 2011, percebo nessa organização a produção de diferentes artefatos culturais na negociação entre educação e o movimento surdo. Não posso deixar de mencionar aqui o dia do surdo, outra manifestação importante para pensarmos as formas de circulação, consumo e negociação da cultura surda. Nesse dia sempre há passeata de orgulho, movimentos e seminários. A data 26 de setembro pode ser entendida como um artefato de orgulho para os surdos, pois se comemora com ela a fundação da primeira escola de surdos no Brasil, o INES. Segundo Moura (1997, p. 11),

O dia do Surdo tem um significado simbólico muito importante. Ele representa o reconhecimento de todo um movimento que teve início há poucos anos no Brasil quando o Surdo passou a lutar pelo direto de ter sua língua e sua cultura reconhecidas como uma língua e uma cultura de um grupo minoritário e não de um grupo de “deficientes”.

Diante dessas diferentes formas de pensar as manifestações políticas das comunidades surdas e seus efeitos no campo educacional, posso afirmar que o movimento surdo não fica de fora dos modos contemporâneos de pensar a cultura e a educação. Nesse sentido, o movimento surdo se inscreve nessa racionalidade contemporânea. Como afirma Costa (2005, p. 209):

A mudança histórica para uma nova forma de capitalismo – pós-industrial, tardio, flexível... – marcado, entre outras coisas, pelo mundo disperso e efêmero das novas tecnologias, pelo consumo de toda a sorte de produtos da indústria cultural (inclusive imagens, identidades e modos de ser), por variadas e difusas políticas de identidade, por conformações de curto prazo e grande flexibilidade no trabalho, dificultando às pessoas, como diz Sennet (1998), a construção de uma narrativa coerente para suas vidas, vem nos inscrevendo em um mundo radicalmente diverso daquele que vivíamos até, pelo menos, há uns 30 ou 40 anos.

É para esse cenário que essa pesquisa se volta, ou seja, me interessa nesse estudo contribuir com a história das comunidades surdas, tentando entender como são feitas as lutas e os movimentos surdos de hoje. Nesse sentido, não se busca com essa pesquisa descobrir respostas, mas sim, contribuir com as futuras pesquisas e continuar pesquisando sobre os movimentos surdos na contemporaneidade. Todos os dias aparecem novidades, com isso mudamos os nossos olhares e voltamos a olhar antigos com outros olhares.

Com o avanço da tecnologia tivemos muitos benefícios, no entanto não podemos fazer com que esse avanço apague os patrimônios conquistados pelo movimento surdo, o principal deles o encontro, o contato surdo/surdo. Soube por um amigo surdo que a Associação de Surdos de Buenos Aires perdeu muitos sócios para a internet. No entanto, um dia um surdo de lá viu a necessidade de participação na associação e fez uma mobilização pedindo sócios para participar da associação e valorizar a história da Associação de Surdos de Buenos Aires, essa mobilização foi feita na rede social e o resultado deu certo. Há muitos desafios a serem enfrentados. Penso o que seria da comunidade surda sem as lutas? E as manifestações? As lutas, as manifestações, os eventos como seminário, encontros, festivais, etc. fazem a história de comunidade surda continuar.

O movimento surdo tem a sua resistência, por isso, está permeado por relações de poder. O povo surdo luta pela comunidade surda e utilizam os movimentos de resistência para defender os seus interesses e negociá-los. Segundo Viela (2006, p. 117) “a resistência ocorre onde existe poder, pois ela é inseparável das relações de poder. Há um tempo só, a resistência funda as relações de poder, sendo, também, o resultado dessas mesmas relações”. Nesse sentido, sempre haverá poder no movimento, nos movimentos sociais em geral. Segundo Lopes (2007, p. 11):

Resistir significa viver intensamente a relação com o outro surdo que vive e sente a surdez de outras formas ou de formas semelhantes e que compartilha das mesmas lutas. A negociação de significados o ser surdo e para a surdez é uma negociação que se dá, portanto, no interior das relações de poder e de resistência.

Acredito que as formas de narrar os surdos a partir das representações ouvintes centradas nas práticas de normalização foram as precursoras dos movimentos surdos de resistências. Anteriormente mencionei o ouvintismo como uma dessas formas de representação das pessoas ouvintes sobre surdos, esses foram os principais motivos da existência do movimento surdo, após o Congresso de Milão. A comunidade surda nunca mais parou de mobilizar, sempre há algo pelo qual se luta. Para Perlin (1998, p. 69),

O movimento surdo é responsável direto pelo novo impasse na vida do surdo contra a coesão ouvinte, pelo sentir-se surdo: em resumo, é o local de gestação da política da identidade surda. É no movimento surdo onde estamos mais próximos da divisão entre poder surdo e poder ouvinte, onde surge uma proximidade dinâmica da identidade surda que denominamos política da identidade, que tem sua força na alteridade e que guarda as fronteiras da identidade surda como tal. Por que surge essa resistência surda? Ela é uma força contra o poder ouvinte de ideologia dominante ouvintista.

Com os ideais da modernidade e contemporaneidade os movimentos surdos deslocam suas bandeiras de luta, por exemplo, as últimas grandes manifestações por uma educação bilíngue para surdos, diferem-se das formas como os surdos lutavam para terem a oficialização da sua língua, ou entrarem no mercado de trabalho. Para Lunardi (1998, p. 161):

Algumas formas de resistências, como a criação da associação de surdos, fundadas após a imposição do ensino oralista nas escolas, a luta pelo direito de adquirirem a língua de sinais como primeira língua, os matrimônios entre os/as surdos/as, são expressões genuínas dessas resistências.

Gostaria de pensar nesse estudo que os movimentos surdos estão articulados com esse tempo contemporâneo, ou seja, as formas como as práticas sociais, culturais, políticas, linguísticas e econômicas se manifestam nessa contemporaneidade articulam o movimento surdo. As novas tecnologias estão cada vez mais presentes nos movimentos em geral, o movimento surdo mudou a maneira de mobilizar e mudou seu espaço de atuação. Agora as redes sociais são os pontos fortes para as organizações das mobilizações e das resistências surdas. Nesse sentido, pensar nas formas como o movimento surdo negocia e faz circular a cultura surda por meio das novas tecnologias, possibilita-me pensar na importância dos Estudos Culturais em Educação para o desenvolvimento dessa pesquisa. Para Pinheiro (2011, p. 35), “na perspectiva dos Estudos Culturais, as ‘novas tecnologias’ tomam papel central na produção, circulação e consumo do conhecimento e informações”. Por isso esse trabalho centra sua preocupação na articulação acerca dessas novas formas de mobilização dos movimentos surdos e seus efeitos na educação de surdos.

Conclusão

O Movimento Surdo está muito presente na comunidade surda e também na história de surdos. São relevantes os registros dessas histórias, pois podem proporcionar um material para escolas, pesquisas baseadas na cultura das pessoas surdas e da história de surdos. As lutas pela educação são envolvidas por direitos e fazem parte da construção da cidadania. Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado em Educação Especial na Universidade Federal de Santa Maria.

Notas

1 Essa foi a primeira escola de Surdos no Brasil. Atualmente ela é denominada de Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). No entanto, houve três mudanças de nomes da primeira escola para Surdos do Brasil: primeiro se chamava de Imperial Instituto dos Surdos Mudos (1857 a 1889), depois para Instituto dos Surdos Mudos (1889-1902) e, depois, para Instituto Nacional de Surdos-Mudos (1903-1957). INES é grande referência de pesquisa na educação de surdos e está vinculado ao Ministério da Educação (MEC) do Governo Federal.
2 Entende-se por ouvintismo as formas de representar aos surdos por meio de referenciais ouvintes. Para Skliar (1998, p. 15), “trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepções do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam as práticas terapêuticas habituais”.
3 Oralismo – É um método de ensino para surdos, de língua oral ou de fala. Um método antigo considerado o melhor para surdos. O método que foi mais votado no congresso de Milão, 1880. Hoje o oralismo na educação de surdos é muito distante e está confirmado que não é um método mais adequado para a educação de surdos.

Bibliografia

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