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Kathryn Marie Pacheco Harrison
Kathryn Marie Pacheco Harrison
Professora / Investigadora
Verbo-visualidade no gênero jornalístico televisivo: Leituras para a construção de estratégias de interpretação da língua de sinais
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Publicado em 2013
Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 8, p.202-219
Kathryn Marie Pacheco Harrison
Vinícius Nascimento
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Resumo

Neste artigo, apresentamos uma análise das marcas verbo-visuais constitutivas do gênero jornalístico televisivo e suas contribuições para a prática de interpretação da libras (língua brasileira de sinais) nesse gênero. A partir da análise da composição verbo-visual das produções telejornalísticas “Jornal Hoje”, “Jornal Nacional” e da revista eletrônica televisiva “Fantástico”, todas exibidas pela Rede Globo de Televisão, será discutido como o tradutor intérprete de libras/português (TILSP) pode, em seu ato enunciativo-discursivo de mediação entre sujeitos falantes e não falantes da língua de sinais, construir um discurso de natureza verbo-visual coerente com o pressuposto fundante da televisão: a relação entre texto (independente da sua dimensão material verbal) e imagem.

Introdução

Respeitar a palavra é muito importante no texto de televisão. Imprescindível, no entanto, é não esquecer que a palavra está casada com a imagem. O papel da palavra é enriquecer a informação visual. Quem achar que a palavra pode competir com a imagem está completamente perdido. Ou o texto tem a ver com o que está sendo mostrado ou o texto trai a sua função.
Manual de Telejornalismo da
Central Globo de Jornalismo (1988, p.11)

A epígrafe acima foi recortada de um manual orientador para jornalistas em formação e apresenta-nos um dos aspectos constitutivos, do ponto de vista da produção da notícia, do gênero jornalístico televisivo: a relação entre palavra e imagem.

A televisão, enquanto esfera de produção de discursos de diferentes consistências e texturas, mas predominantemente de discursos verbo-visuais, alimenta-se dessa sintonia. Há imagens que falam por si e textos que (tentam) traduzir detalhes que só podem ser percebidos na imagem, ao mesmo tempo em que, em recorrentes situações, essas duas dimensões fundem-se em um todo indissolúvel e instauram os sentidos do projeto discursivo a ser transmitido durante a apresentação do telejornal.

No trecho utilizado como epígrafe, notamos que a imagem é concebida como elemento de grande significado para esta esfera e que, em grande parte, torna-se mais importante que a própria linguagem verbal. Percebemos ainda que a imagem constitui-se, quando olhada de uma perspectiva enunciativo-discursiva, em um enunciado concreto. Ela pode instaurar sentidos por si só e afetar o telespectador sem mesmo um texto verbal ser atrelado a ela. Mas é da indissolubilidade da intersecção verbo-visual que o jornalismo televisivo se alimenta e produz os seus sentidos. No mesmo manual podemos observar a seguinte orientação:

Em jornalismo de televisão ninguém duvida: a imagem é mais forte do que a palavra. Toda a vez que num telejornal as falas estão em desacordo com as imagens, produz-se uma espécie de descarrilamento da comunicação: o trem das palavras vai para um lado e o trilho da imagem, para outro. [...] Texto e imagem no telejornalismo devem estar juntos, inseparáveis como os olhos e os ouvidos de uma pessoa (Central Globo de Telejornalismo, 1988, p.71; grifo nosso).

Neste recorte, a dimensão verbo-visual aparece como espinha dorsal dos discursos telejornalísticos. Notamos, entretanto, nessas orientações, que os textos verbais utilizados pelo telejornalismo na composição da dimensão verbo-visual são constituídos, predominantemente, de textos de modalidade oral-auditiva e pressupõem a recepção daquilo que ali é produzido por sujeitos ouvintes e falantes de línguas orais.

A predominância torna-se óbvia quando pensamos que grande parte dos telespectadores são sujeitos que possuem a audição como principal via de recepção das informações linguísticas. Porém, dentre os telespectadores das produções discursivas televisivas está uma comunidade que utiliza, para interação com as pessoas e com o mundo, um sistema linguístico-discursivo de outra modalidade que não a oral-auditiva. A comunidade surda brasileira interage com o mundo e apreende as informações por meio de sua visão, expressando aquilo que foi apreendido por meio da libras – língua brasileira de sinais.

Essa língua, constituída de significações de natureza gestual-visual-espacial, isto é, em termos de produção, pelo gesto como propriedade material dos signos linguísticos e da espacialidade como locus de articulação desses signos e, em termos de recepção, da visão como canal para a entrada das informações (QUADROS e KARNOPP, 2004), não é contemplada como sistema verbal na esfera televisiva, que exclui, portanto, os seus falantes nativos, os surdos.

No senso de 2010 realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi constado que 5,1% da população brasileira tem algum tipo de deficiência auditiva, o que equivale a mais de nove milhões de brasileiros. Uma das medidas legais para contemplar essa parcela da população e garantir os seus direitos de acessibilidade, seja para a esfera televisiva ou qualquer outra esfera social, é a formação de profissionais que realizem a mediação discursiva entre falantes e não falantes da língua de sinais. Esse profissional é o tradutor intérprete de libras/português (TILSP).

No que diz respeito à esfera televisiva, há uma legislação vigente (Decreto 5.296/04, Decreto 5.626/05, Portaria 310/06 – Ministério das Comunicações) que prevê e determina a inserção de profissionais TILSP nas produções televisivas, garantido aos surdos o direito de acesso às informações noticiadas por esse veículo de comunicação.

Além dos documentos legais que garantem esse direito, conta-se também com uma norma de acessibilidade (NBR 15.290, estabelecida pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT), que estabelece parâmetros técnicos para a captação e edição da imagem do TILSP. No entanto, os aspectos da prática interpretativa na esfera televisiva, e nos diferentes gêneros que compõem essa esfera, não são abordados nesses documentos, necessitando de olhares e pesquisas que delineiem a prática desse profissional.

À medida que essas vão sendo cumpridas e que o tradutor intérprete de libras/português começa a ser um profissional produtor de discursos verbais de modalidade gesto-visual na esfera televisiva, faz-se necessária a reflexão sobre como acontece a prática de interpretação discursiva de língua de sinais nesse contexto, principalmente do ponto de vista da articulação verbo-visual que é constitutiva dos discursos produzidos nessa esfera.

Neste artigo, apresentamos marcas da dimensão verbo-visual do gênero jornalístico televisivo ligadas à prática de interpretação da libras. A partir da análise da composição verbo-visual de telejornais, será discutido como o TILSP pode, em seu ato enunciativo-discursivo, construir um discurso verbo-visual, fazendo valer o pressuposto fundante da televisão: a relação entre texto (independente da sua dimensão material verbal) e imagem.

1 Interpretação da língua de sinais como ato interlinguístico enunciativo-discursivo

Pagura (2003) apresenta dois modelos interpretativos que são, costumeiramente, desconhecidos por profissionais que não atuam na área. O primeiro modelo é o da interpretação consecutiva, aquela em que o intérprete escuta um longo trecho de discurso, toma notas e, após a conclusão de um trecho significativo ou do discurso inteiro, assume a palavra e repete todo o discurso na língua-alvo, normalmente a sua língua materna. O segundo é a interpretação simultânea, em que os intérpretes – sempre em duplas – trabalham isolados numa cabine com vidro, de forma a permitir a visão do orador e recebem o discurso por meio de fones de ouvido.

Ao processar a mensagem, expressam-na na língua de chegada por meio de um microfone ligado a um sistema de som que leva sua fala até os ouvintes, por meio de fones de ouvido ou receptores semelhantes a rádios portáteis. Essa modalidade permite a tradução de uma mensagem em um número muito grande de idiomas ao mesmo tempo, desde que o equipamento assim o permita.

Partindo da apresentação feita por Pagura (2003) e direcionando essa distinção à prática do TILSP, assumimos aqui que o modelo mais utilizado em um ato interpretativo que envolva a língua de sinais é a interpretação simultânea. No entanto, diferentemente do que acontece com os intérpretes de línguas orais que ficam escondidos fisicamente em uma cabine com fones de ouvido, o TILSP, geralmente, no caso de uma interpretação de conferência, posiciona-se ao lado do locutor, no palco, e realiza ali o ato interpretativo. Tanto este último fato mencionado como a recorrência de uma interpretação simultânea se dá devido à modalidade linguística da língua de sinais, gestual-visual-espacial, diferente das línguas envolvidas na atuação de intérpretes de línguas orais, necessitando de uma exposição visual para o acesso do público para o qual se interpreta.

Para Isham e Lane (1993), há poucas diferenças entre a atividade realizada entre os intérpretes de línguas orais e os intérpretes de língua de sinais. Os autores salientam que, talvez, a única diferença resida no fato de que os segundos transitem por modalidades linguísticas diferentes e, por esse motivo, existam implicações à atuação interpretativa, à operacionalização da interpretação.

A diferença da modalidade linguística pontuada por esses autores é crucial para observarmos a atuação do TILSP, isso porque a modalidade linguística das línguas envolvidas, da língua oral para a língua de sinais e vice e versa, é de outra natureza, instituindo, assim, uma atuação que envolve processo de ressignificação intermodal (QUADROS, LILLO-MARTIN, PICHLER, 2011).

A questão da materialidade das línguas envolvidas é de extrema relevância para o processo e, possivelmente, modelos de interpretação. No que se refere à atuação de um intérprete de língua falada, sua atuação não é intermodal, mas somente interlingual, pois o processo interpretativo acontece na relação biunívoca dos pares linguísticos cuja materialidade constitui-se do verbal-oral para o verbal-oral. No caso da interpretação de/para a língua de sinais em que o par linguístico seja uma língua falada, a transposição, independente da esfera de produção, será de uma materialidade verbal-oral para uma materialidade verbal-sinalizada, tornando, por recorrência, o ato interpretativo com línguas orais e línguas de sinais uma atividade interlingual que mobiliza textos de dimensões verbais, visuais e verbo-visuais.

Essa totalidade será considerada aqui uma

[...] enunciação, um enunciado concreto articulado por um projeto discursivo do qual participam, com a mesma força e importância, a linguagem verbal e a linguagem visual. Essa unidade significativa, essa enunciação, esse enunciado concreto, por sua vez, estará constituído a partir de determinada esfera ideológica, a qual possibilita e dinamiza sua existência, interferindo diretamente em suas formas de produção, circulação e recepção (BRAIT, 2010, p.194).

Construídas indissoluvelmente, a interligação verbal-oral/verbal-visual do ato interpretativo enquanto enunciação é constitutiva da tarefa do profissional que media discursos entre línguas diferentes e, nesse caso, de modalidades diferentes. Essa diferença de modalidade produz discursos de diferentes consistências, textos de diferentes aspectos. E, para abordar a multiplicidade material desses discursos, adotamos como concepção de materialidade linguística, de texto, a proposta de Brait (2010) que, partindo dos pressupostos bakhtinianos, o designa como semiótico-ideológico, abrangendo a dimensão visual, verbal e verbo-visual da língua e das linguagens que a partir dela circulam como participantes da produção de um enunciado concreto:

Assim concebido, o texto deve ser analisado, interpretado, reconhecido a partir dos mecanismos que o constituem, dos embates e das tensões que lhe são inerentes, das particularidades da natureza de seus planos de expressão, das esferas em que circula e do fato de que ostenta, necessariamente, a assinatura do sujeito, individual e coletivo, constituído por discursos históricos, sociais e culturais [...] (BRAIT, 2010, p.195).

A língua de sinais, conforme já sugerimos na introdução deste artigo, possui sua enunciação produzida no espaço (QUADROS, KARNOPP, 2004). Essa enunciação é constituída por signos linguísticos visuais, passíveis de serem analisados automaticamente, a partir de si mesmos, da menor à maior unidade, na inter-relação com os outros signos, conforme salienta a proposta saussureana de análise e estudo da língua 1. Dessa forma, a transposição de sua materialidade em um ato tradutório (no sentido mais amplo do termo) vai além do enquadramento textual das línguas envolvidas nesse processo e requer uma ressignificação dos sentidos, das orientações do texto para dentro e para fora de si mesmo, implícitas no processo enunciativo da língua em sua totalidade, que ultrapassam a transposição, apenas, lexical marcada pela relação sinal-palavra e palavra-sinal.

Essa (re) produção de sentidos é determinada, dentre outros aspectos, pela esfera de produção discursiva desse ato de enunciação, pois “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.118). Nessa perspectiva, a interpretação da língua de sinais na esfera televisiva será marcada por forças coercitivas, pelos elementos extralinguísticos, pelos enunciadores e marcas enunciativo-discursivas ligadas aos discursos que são produzidos a partir desse contexto. Propomos, com base nessa fundamentação, um olhar para os aspectos de variação estilística constituintes na diversidade da produção telejornalística para, então, sugerirmos estratégias para a interpretação da libras nessa esfera.

2 Verbo-visualidade do jornalismo televisivo e os processos interpretativos da língua de sinais

Uma das especificidades do telejornalismo é a variação de estilo. Cada produção possui características específicas de como transmitir a notícia ao telespectador e essa variação é determinada não apenas pela mudança de emissora ou rede concessionária responsável pela produção, mas também pelo horário que é exibido, pelo público que deverá ser alcançado em determinado horário e pelas temáticas abordadas durante as reportagens.

Segundo Rossi (2005), toda prática jornalística é orientada por uma norma de estilo que impõe, do ponto de vista da chegada da notícia, seis perguntas básicas: quem, quando, onde, como, porque, o quê. Essas perguntas orientam a produção da notícia, focando o telespectador e/ou leitor, buscando construir uma ponte entre aquele que transmite a notícia e aquele que a recebe.

Para compreendermos a variação estilística do telejornalismo e sua importância para a atuação do TILSP nesse gênero do discurso, convocaremos o conceito de estilo presente no pensamento bakhtiniano. Este conceito que, assim como tantos outros, é definido não apenas em uma obra, mas no conjunto de textos de todo o Círculo de Bakhtin (BRAIT, 2004), nos norteará para entender os diferentes estilos telejornalísticos que determinam o uso da linguagem e, por consequência, a compreensão do telespectador.

Para Brait (2003), o conceito de estilo no pensamento bakhtiniano está relacionado com um enfoque específico sobre o discurso, os textos, as formas linguísticas, enunciativas e discursivas que, reiteradas, modificadas, retomadas apontam para um estilo genérico, isto é, aspectos que caracterizam um determinado conjunto de textos produzidos e que dão forma a um gênero ou, até mesmo, a uma época ou um enunciador.

Na obra Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochínov (2009) afirma que “[...] a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação” (p.118), conforme já lembramos anteriormente. Partimos do pressuposto de que uma produção telejornalística constitui-se em um enunciado concreto, isto é, uma realização na vida que é arquitetada pela relação sujeito/esfera/tempo/espaço de produção discursiva. Todo telejornal tem por objetivo transmitir informação para um telespectador que, por sua vez, direciona-se para essa produção buscando encontrar essa informação.

O telejornal, ao entrar no ar, geralmente endereça-se para diferentes interlocutores: do homem de família que chegou do trabalho à dona-de-casa atarefada com o preparo da refeição e com o cuidado das crianças. Essas pessoas querem se informar. Há aqueles que assistem ao telejornal logo pela manhã, quando acordam, outros no horário do almoço, outros quando chegam em suas casas no início da noite e outros ainda antes de dormir. Cada momento do dia determina diferentes aspectos tanto de busca por parte do telespectador, quanto do estilo por parte da produção tele jornalística.

A construção estilística de cada telejornal é condicionada a partir da situação concreta de exibição e do projeto discursivo que visa à interação com o telespectador. Nesse sentido, fazemos coro com Bakhtin (2010):

O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipo de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo integra a unidade do gênero do enunciado como seu elemento (p. 266).

O gênero jornalístico televisivo é constituído dessas características composicionais comuns às diferentes produções. O conjunto deste gênero é formado por elementos composicionais, temáticos e estilísticos que o denunciam como um gênero do discurso que tem por objetivo transmitir informação. É possível, porém, encontrar traços de especificidades que diferenciam essas produções e revelam diferentes estilos de fazer e transmitir notícia.

Tomemos como objeto de análise e compreensão das diferenças estilísticas do telejornalismo as produções realizadas pela Rede Globo de televisão, especificamente as chamadas de conexão com repórteres que estão como correspondentes em outros países, ou até mesmo em uma reportagem fora do estúdio, e as chamadas para as reportagens, conhecidas como lead (ROSSI, 2006).

No primeiro jornal do dia, Bom Dia Brasil (figura 1), o jornalista âncora encontra-se sentado em uma poltrona e entra em contato com o repórter correspondente por meio de uma televisão. A organização composicional do cenário e o posicionamento do jornalista em estúdio apontam para a transmissão de um jornalismo informal, de uma interação mais relacional com o telespectador, de saudação, de “sala de estar”, de um contexto familiar por ser esse o primeiro telejornal do dia.

Diferente do que acontece com o telejornal que é exibido no horário do almoço, Jornal Hoje (Figura 1), em que os âncoras estão posicionados atrás de uma bancada e a televisão, outrora posicionada em frente à poltrona do primeiro telejornal do dia, encontra-se, neste momento, atrás dos apresentadores. No entanto, nas duas produções tele jornalísticas há um traço de informalidade durante a transmissão da notícia marcada pelo uso de gestos menos rígidos e maior uso de expressividade facial e de variação vocal (KYRILLOS, COTES, FEIJÓ, 2003), sugerindo a possibilidade de certa aproximação do telespectador. Ainda que no segundo telejornal a bancada marque um distanciamento entre aqueles que apresentam daqueles que assistem, a interação entre os apresentadores parece ser uma ruptura com a necessidade dessa formalidade.

Figura 1

Os apresentadores interagem durante a chamada da reportagem e conversam entre si sobre a temática daquilo que será exibido, realizando comentários sobre a notícia. O sorriso durante os comentários, os gestos faciais e manuais que indicam um ar mais “simpático” ao falar da notícia e a interação entre os âncoras mostra que, neste caso, o texto varia entre o oral – espontâneo – e o falado – lido.

Cotes (2003) pontua que a gestualidade é um aspecto de extrema relevância para a transmissão da notícia, tanto no que tange à credibilidade quanto à precisão dessa transmissão. A autora afirma que é na comunicação não verbal que se encontra grande parte da expressividade discursiva de um comunicador. Voz e corpo, encarados como elementos não verbais da comunicação, marcam um jornalismo sério e comprometido com a informação e com o telespectador. Ampliando essa concepção, afirmamos que nessa relação é possível mapear, também, o estilo jornalístico de fazer notícia. Para Cotes (2003), o uso de elementos não verbais, isto é, os gestos corporais, devem estar adequados para o contexto e para o conteúdo da mensagem.

No pensamento bakhtiniano, encontramos pistas de que esses aspectos fundem-se no enunciado como um todo e tornam-se constitutivos da enunciação do jornalista, pois, conforme nos diz Bakhtin (2010, p.313), “[...] esses elementos extralinguísticos (dialógicos) penetram o enunciado também por dentro”.

Se no Jornal Hoje a interação entre os âncoras parece ser um fator que contribui para o apontamento de uma informalidade na transmissão da notícia, no Jornal Nacional, produção exibida durante o horário considerado “nobre”, a interação entre os apresentadores parece não existir. A ausência dessa interação revela um formalismo e distanciamento daquele que está do outro lado da tela, o telespectador, e a bancada que marca fisicamente essa distância parece ganhar essa dimensão ao ser focalizada por inteiro antes do início das transmissões da notícia. Formalidade que não aparece no Fantástico, outra produção audiovisual que mistura jornalismo e entretenimento, que possui características de uma revista eletrônica informativa e que, no primeiro dia da semana, informa aos telespectadores um apanhado dos acontecimentos na semana que precede a exibição, estabelecendo uma interação direta com aquele que está do outro lado da tela por meio de fóruns, do envio de vídeos baseados em acontecimentos reais, comentários via Twitter, etc. (Figura 2, adiante).

Esses aspectos que marcam diferentes estilos de transmitir notícia entre estes dois telejornais são relevantes quando abordamos a formação e a atuação do tradutor intérprete de libras/português, principalmente no que tange às escolhas linguísticas para marcação enunciativa durante a interpretação. Por essa razão, pontuamos especificamente três aspectos que delineiam a atuação do TILSP a partir do gênero jornalístico televisivo.

a) Competência referencial: a presença do TILSP na equipe editorial

Aubert (1994) apresenta algumas competências necessárias que um tradutor/intérprete deve desenvolver para atuar profissionalmente, dentre elas encontra-se a competência referencial, que corresponde ao conhecimento prévio daquilo que o tradutor/intérprete deverá interpretar. Consideramos importante para atuação do TILSP na esfera televisiva, gênero jornalístico, que a interpretação da produção audiovisual não seja realizada com base em um acesso prévio ao material que será exibido apenas minutos antes da gravação. A nossa proposta, a partir de toda a discussão da composição verbo-visual desse gênero, é que o TILSP deverá compor a equipe editorial e de jornalismo da produção que deverá ser interpretada.

Com a participação efetiva e diária do TILSP na equipe editorial da produção telejornalística, a construção da competência referencial ocorrerá a partir da materialidade discursiva construída na organização da pauta do programa ou telejornal.

A pauta de uma reportagem, apontada por Rossi (2005) como um fio condutor que delimita o que será levado ao ar, funciona em duas direções: orienta repórteres para o que devem fazer no seu dia-a-dia e informa chefias, diretores e/ou proprietários das diversas publicações sobre quase tudo aquilo que está sendo trabalhado pela redação. O acesso a esse fio condutor das reportagens e do concretismo organizacional da produção telejornalística possibilitará ao TILSP mapear, rastrear e planejar a sua produção linguística na libras, visando construir um discurso nesta língua que transmita o projeto discursivo do telejornal enunciado pelos seus apresentadores.

O mapeamento das características estilísticas não é perceptível a partir de apenas uma edição do telejornal a ser interpretado, visto que são marcas de um estilo específico e que pode ser identificado no conjunto das produções, nas marcas genéricas desse gênero (BRAIT, 2003). Por essa razão a participação do TILSP na equipe editorial da produção telejornalística poderá contribuir para o mapeamento das marcas estilísticas do telejornal a ser interpretado, bem como para a construção de estratégias de incorporação desses elementos de estilo na enunciação em libras.

b) Indissolubilidade verbo-visual nas escolhas linguístico-enunciativas

Nas figuras 2 e 3 recuperamos uma notícia de importante significado histórico, que ganhou proporções internacionais pela força física e ideológica do seu acontecimento, e que foi exibida em todos os telejornais do Brasil e do mundo: o atentado terrorista contra o World Trade Center no dia onze de setembro de 2011. Para manter uma coerência da discussão estilística genérica de produções telejornalísticas de uma mesma organização produtora, utilizaremos, para sugerir possibilidades de encaminhamento de incorporação do todo verbo-visual da reportagem na enunciação em libras, a transmissão realizada pelo Jornal Nacional, produção telejornalística produzida e exibida pela Rede Globo de Televisão, no dia do acontecimento.

Figura 2

 

Figura 3

O projeto verbo visual para a transmissão do maior atentado terrorista da história, conforme sinaliza o próprio texto do telejornal, inicia ainda antes da transmissão da matéria gravada no local do atentado quando a apresentadora, enquadrada mais a esquerda do vídeo, deixa um espaço à direita para a inserção da imagem de um mapa dos Estados Unidos, com um rastro amarelado parecendo de um fogo, com o desenho de uma das torres do World Trade Center em chamas, marcada pelo desenho de um alvo ao centro do mapa (Figura 2). Essa imagem acompanhou todo o texto da cabeça da reportagem narrada pela jornalista e introduziu ao telespectador o que seria noticiado sobre aquele dia histórico para toda a humanidade.

Realizada a introdução da matéria sobre o atentado, inicia-se a exibição da cobertura do acontecimento com imagens das torres em chamas e com a narrativa em off do repórter responsável pela cobertura. A descrição do choque dos aviões com as torres acontece durante a primeira imagem, que é sucedida pela captação da mesma cena de outros ângulos (figura 3). Nesse caso, o acontecimento, marcado jornalisticamente pela soma do texto verbal, ganha dimensão de sentido quando, sem o texto, passa a mostrar ao telespectador, de diferentes perspectivas, o mesmo momento do choque do avião nas torres.

Perguntamos: como, então, a interpretação dessa reportagem ocorreria e como o TILSP poderia trazer para a libras o sentido transmitido pela arquitetônica verbo-visual construída na transmissão dessa notícia? Um dos aspectos que possibilitaria construir uma interpretação que abarcasse o projeto discursivo instaurado pela totalidade verbo-visual seria o uso de uma sinalização policomponencial 2, baseados no posicionamento das torres a partir do ângulo inicial captado pela câmera. A marcação das torres em um dos polos espaciais (direita, esquerda ou frente) e o uso do léxico AVIÃO, tomando como início de produção do sinal o mesmo ponto que o próprio avião se desloca na imagem em direção à torre, daria conta da transmissão do texto verbalizado pelo repórter. Possibilidade que se constituiria em uma compressão (LAWRENCE, 2007) do texto fonte e teria uma realização e organização mais visual, constitutiva da própria enunciação em língua de sinais.

O uso de outro recurso poderia ser utilizado como, por exemplo, o apontamento para a imagem transmitida. O posicionamento com o olhar direcionado a todo o momento para a câmera é uma característica dos jornalistas do Jornal Nacional e deve se manter na sinalização, visto que esta é uma das marcas estilísticas que denunciam o formalismo na transmissão da notícia e um distanciamento do telespectador.

c) Incorporação de gestualidades extralinguísticas

O uso e o não uso de gestos corporais, o posicionamento do corpo, a interação entre os apresentadores podem ser incorporados na interpretação da libras para a transmissão dos sentidos produzidos por meio da totalidade discursiva marcada pelos elementos linguísticos e extralinguísticos durante a enunciação dos jornalistas 3.

No Jornal Hoje, analisado acima, há momentos em que os âncoras conversam entre si, como podemos notar na imagem (Figura 1), assim como no Fantástico, em que a interação entre os apresentadores é mais recorrente do que nos outros telejornais apontados, marcando uma “parede” entre eles e os telespectadores. Essa interação entre os dois apresentadores e a marcação de uma quebra de olhar para a câmera podem aparecer na interpretação da libras a partir do recurso de tridimensionalidade (LAWRENCE, 2007). A marcação dos sujeitos do discurso na construção enunciativa nos diferentes polos espaciais durante a sinalização transmitirá ao telespectador surdo o sentido dessa interação, que é característica do estilo destes telejornais.

Figura 4

As variações estilísticas, marcadas predominante pela interação entre os enunciadores e as marcas gestuais corporais e vocais presentes nos tipos de textos produzidos nesse gênero, bem como as formas composicionais dos telejornais apresentados, que mostram quais temas serão abordados na transmissão da notícia, precisam ser incorporados pelo TILSP durante o processo interpretativo.

Considerações finais

A partir do empoderamento da comunidade surda e de sua inserção nas diferentes esferas sociais, a atuação do TILSP vem crescendo exponencialmente nos últimos anos, o que configura um cenário de demandas formativas para que esse profissional possa assumir com excelência a função que lhe é devida: intermediar discursivamente sujeitos surdos e ouvintes que desconheçam a língua de sinais.
Apresentamos aqui sugestões de leituras da totalidade verbo-visual para atuação do TILS na esfera televisiva, no gênero jornalístico. Certos de que essa temática não se esgota neste trabalho, esperamos que as reflexões aqui tecidas possam contribuir de maneira significativa na atuação desse profissional, na construção de propostas de formação e nos estudos do discurso que abordem a verbo-visualidade como objeto de análise e estudo, independente da constituição material verbal que componha essa relação indissolúvel.

Notas

1 Não pretendemos nos estender na discussão sobre o caráter linguístico da língua de sinais, pois sua constituição enquanto língua natural já foi comprovada cientificamente. No entanto, vale recordar que foi em 1960 que as primeiras pesquisas, realizadas por Willian Stokoe nos Estados Unidos, comprovaram que a língua de sinais possui a mesma função, tanto simbólica quanto neurolinguística, além da complexidade das línguas orais (SACKS, 1998).
2 A expressão policomponecial tem sido utilizada em algumas pesquisas relacionadas à descrição da libras (McCLEARY e VIOTTI, 2011) para substituir o termo classificadores, historicamente utilizado nas publicações da área. Esses termos correspondem, segundo a definição de Quadros, Pizzio e Rezende (2009), a “uma representação visual de objetos e ações de forma quase que transparente, embora apresente características convencionadas de forma arbitrária” (p.16). Segundo as autoras, que observam a questão do gesto nas enunciações em libras, parece que houve um processo de migração do gestual para o gramatical, mantendo algumas das características do primeiro e tornando-se parte do sistema linguístico das línguas de sinais.
3 Os estudos atuais sobre as línguas de sinais vêm observando os limites entre a gestualidade linguística e a gestualidade extralinguística desta língua. McCleary e Viotti (2011) observam que “[...] se nas línguas orais é razoavelmente fácil separar o que é linguístico do que é gestual, nas línguas sinalizadas, o fato de o canal de produção de língua e gesto ser o mesmo dificulta imensamente a tarefa de definir o que é propriamente verbal e o que é propriamente gestual” (p. 290). Nessa perspectiva, quando abordamos a gestualidade ligada à enunciação oral dos jornalistas e a sugestão da incorporação dessa gestualidade à interpretação da libras, focamos na possibilidade de utilização de um elemento linguístico-enunciativo presente nos discursos em língua de sinais: a tridimensionalidade (LAWRENCE, 2007), também nomeado de processo dêitico- anafórico (PRADO, LESSA-DE-OLIVEIRA, 2012).

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