A concepção de tradução que circula em um curso vinculado à área dos Estudos da Tradução, mais especificamente em interpretação, é um tema que ainda não foi abordado. A importância de coletar e sistematizar o que os alunos pensam sobre o que é a tradução está em poder, futuramente, comparar alunos em fase final do curso e avaliar sua evolução, além de servir como diagnóstico do pensamento vigente ao iniciar os estudos superiores. Esta pesquisa aconteceu no bacharelado EaD (ensino à distância) em Letras Libras (língua de sinais brasileira) da Universidade Federal de Santa Catarina e tem como foco de análise os traços do pensamento renascentista sobre a tradução que, ainda, repercutem na fala dos acadêmicos nos dias atuais. Para tanto, empreendo um ensaio de análise dos depoimentos que os alunos do Letras Libras postaram, durante a disciplina de Introdução aos Estudos da Tradução, no ambiente virtual de e nsino e aprendizagem (AVEA), com o seguinte assunto: “O que é a tradução?”. Os textos dos alunos foram um rico manancial sobre a concepção de tradução que vigorava logo ao começar o curso. Lido com a possibilidade de que estas idéias irão sofrer alterações no decorrer do aprendizado, porém o objetivo, aqui, é registrá-las como ponto de partida para uma melhor compreensão do que o aprendiz na área de interpretação de língua de sinais conceitua como tradução.
O Bacharelato Letras Libras EaD
O bacharelado em Letras Libras é um curso, promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que visa formar, em nível superior, tradutores e/ou intérpretes de língua brasileira de sinais (Libras) e tem como objetivos:
- Desenvolver habilidades específicas dos processos de tradução e interpretação da língua brasileira de sinais para a língua portuguesa e vice-versa.
- Possibilitar a compreensão da complexidade cultural dos processos de tradução e interpretação (UFSC, 2007, p.3).
Este curso faz parte de uma seqüência de conquistas da comunidade de pessoas surdas e de sua comunidade solidária (ouvintes: familiares, professores, religiosos, intérpretes e simpatizantes), em que posso citar as principais, cronologicamente:
- Decreto n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005 que regulamenta a Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei n. 10. 098, de 19 de dezembro de 2000, chamada de Lei de Libras.
- Exame Nacional de Proficiência em Libras (Prolibras), lançado em 2006.
- 3. Letras Libras, inicialmente licenciatura em 2006, que objetiva formar professores para atuar no ensino da língua brasileira de sinais como primeira e segunda língua com prioridade a candidatos não-surdos (Regimento, 2007) e que abriu caminho para, posteriormente, o bacharelado.
- Fundação da Federação Brasileira de Profissionais Intérpretes e Guiasintérpretes de língua de sinais (Febrapils), em 22 de agosto de 2008, em Brasília - DF.
- I Congresso Nacional de Pesquisas em Tradução e Interpretação de Língua de Sinais, nos dias 09 e 10 de outubro de 2008, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Contrastando com estes céleres avanços, existem poucos trabalhos no meio acadêmico que abordem a atividade do intérprete de língua de sinais. De acordo com Pereira,
O seu papel crucial como participante ativo nas intermediações lingüísticas e culturais entre pessoas surdas e ouvintes não é abordado na profundidade necessária para uma tarefa tão complexa, que requer alto grau de especialização. Um agente tão presente na garantia dos direitos das pessoas surdas merece ser tirado do obscurantismo e ser alvo de, cada vez mais, estudos acadêmicos, especialmente no que diz respeito ao seu papel de intermediador em constante contato e negociação com as pessoas surdas (PEREIRA, 2008, p.38-90).
O bacharelado Letras Libras EaD acontece, até o presente, em edição única, desde o ano de 2008, na forma semi-presencial nos seguintes pólos, espalhados pelo Brasil:
- Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (CEFET/GO).
- Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG).
- Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte (CEFET/RN).
- Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES/RJ).
- Universidade de Brasília (UnB).
- Universidade de Campinas (Unicamp).
- Universidade Estadual do Pará (UEPA).
- Universidade Federal da Bahia (UFBA).
- Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
- Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
- Universidade Federal do Ceará (UFC).
- Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
- Universidade Federal do Paraná (UFPR).
- Universidade Federal do Rio Grande do SUL (UFRGS).
Além desses pólos, é oferecido pela instituição promotora, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também, na forma presencial desde 2009. Os alunos deste curso, em sua maioria, já atuam como intérpretes de língua de sinais (ILS), porém sem uma educação formal nesta área. Esta é a realidade em boa parte do país. Até mesmo a designação da profissão como interpretação em língua de sinais é alvo de questionamentos, tais como:
[...] este termo não é adequado, porque transmite a idéia errônea de que a interpretação entre as duas línguas é unidirecional, ou seja, da língua oral para a língua de sinais, quando, na verdade, é bidirecional, podendo partir, também, da língua de sinais para a língua oral. Contudo, visto que a língua de sinais tem sido mais freqüentemente a língua de chegada, ou a língua receptora da interpretação, é possível que a denominação baseie-se neste fato. Outro termo que tem sido usado amplamente para fazer referência a este tipo de interpretação é “interpretação para os surdos”. Este termo tampouco define com exatidão a especificidade deste tipo de interpretação, porque tanto surdos como ouvintes necessitam da mediação do chamado “intérprete para os surdos” em u m nú mero infinito de situações de interação entre surdos e ouvintes (HORTÊNCIO, 2005, p. 41).
Como se pode perceber, muito ainda existe para ser investigado acerca da interpretação de língua de sinais, a qual precisa ser considerada não como uma atividade caritativa e sim como um campo profissional e acadêmico em crescimento. O bacharelado Letras Libras, portanto, é uma fonte rica de dados sobre vários temas, dos quais elegi investigar, neste texto, a concepção de tradução que os alunos trouxeram de suas vivências, ao iniciarem as disciplinas específicas sobre os Estudos da Tradução.
A teoria elocutiva da tradução no Rrenascimento
A tradução é um dos fenômenos da linguagem humana e, como tal, sofre influência direta da concepção de linguagem vigente. O motivo da eleição do período renascentista para ser o fio condutor da análise deve-se ao seu legado para uma concepção de tradução que, ainda, influencia o pensamento atual. Na leitura de textos que expõem o pensamento renascentista sobre a tradução “[...] o leitor hodierno pode perceber posições teóricas insuspeitadas por sua modernidade e vigência atuais, pode reconhecer em outras colocações a base de distintas linhas da ciência da tradução contemporânea, e pode vislumbrar entre aquelas reflexões um forte traço de união" (FURLAN, 2006, p. 26-7).
No Renascimento há um recrudescer da retórica clássica, especialmente em uma de suas subdivisões: a elocutio. Neste período a idéia regente é de que, entre alguns outros aspectos da retórica, a tradução só poderia tratar da elocução, ou seja, da parte do discurso que se refere à consecução do pensamento em linguagem, do estilo, da execução do discurso propriamente dito. Resumidamente, os aspectos que constituem a teoria elocutiva da tradução no Renascimento podem ser apresentados com base no esquema de Furlan (2006, p. 27):
A. Requisitos básicos
- Domínio da língua de partida: língua da qual se faz a tradução.
- Domínio da língua de chegada: língua para a qual se faz a tradução.
- Conhecimento da matéria.
- Habilidade poética: de uma forma abrangente considera-se como a harmonia do discurso (uso do ouvido).
Como domínio das línguas envolvidas é preciso considerar um conhecimento amplo que vai além do lingüístico e inclui as sociedades e os produtos de suas culturas, enfim, um saber filológico.
B. Elocutio: objetiva levar a fidelidade do pensamento e intenção do autor na língua de partida até a língua de chegada, inclusive no aspecto de sua arte textual (estilo do discurso, formas de expressão).
C. Principais problemas da tradução
- Língua do original e língua da tradução.
- Conteúdo e forma.
- Reconhecimento dos valores estéticos do original e tentativa de reproduzir a mesma beleza na obra traduzida.
D. Preocupação com o leitor
- Uso da língua comum.
- Sonoridade do texto produzido.
E. Tipologia de textos e de tradução.
Embora, na atualidade, consideremos que muitos dos preceitos acima apresentados são obviedades, não podemos esquecer que foram idéias, senão inéditas, das primeiras a se perpetuarem nesta forma sistematizada. Naquela época se constituíram como a base para muitas concepções de tradução que ainda trazemos nos dias atuais. Passo, a seguir, às reflexões dos alunos e ao seu cruzamento com alguns teóricos, principalmente renascentistas.
O que é a tradução ?
Introdução aos Estudos da Tradução foi a primeira disciplina, do bacharelado em Letras Libras, que abordou os Estudos da Tradução. Nesta disciplina, na Unidade 1, houve um fórum de discussão no ambiente virtual de ensino e aprendizagem (AVEA) que, visando um prognóstico dos saberes anteriores dos alunos sobre o tema central, propôs a questão: O que é a tradução? A partir dos depoimentos dos alunos, neste fórum, é que vou empreender um ensaio de análise tendo como questões norteadoras as seguintes:
- Qual a concepção de tradução que trazem os futuros bacharéis em Letras-Libras?
- Quais os resquícios que a teoria da tradução renascentista deixou nestes aprendizes?
Utilizarei, como contraponto teórico, textos diversos (ensaios, comentários, epístolas) concebidos no período renascentista e que tratem do assunto tradução. Também é necessário esclarecer que praticamente a maioria da teorização dos Estudos da Tradução trata de textos escritos e não especificamente da interpretação interlíngue. Estas questões terminológicas, para os alunos iniciantes, devem ser elucidadas, pois nem internamente no campo de estudos existe um consenso, mesmo desde os tempos renascentistas, como transparece no trecho de Longiano: "Esta [tradução], com outros nomes, pode ser chamada interpretação, versão, transposição, translação e similares. Mas observa que os latinos antigos e de melhor estirpe chamaram-na mais frequentemente interpretação, e ao tradutor, intérprete" (1556/2006, p.331). Em alguns casos, os alunos já anteveem uma diferenciação, como mostra o trecho seguinte:
BD: (...) nós intérpretes atuamos quase que instantaneamente com a tradução, sendo poucas as vezes que temos acesso ao material antes de realizar uma interpretação, já o tradutor que trabalha com o texto escrito terá muito mais tempo para consultar os instrumentos do ofício, uma vez que tem trabalhos de traduções que levam anos a serem concluídos.
Em outros casos, manifestam a incerteza se a referência é à interpretação interlíngue, propriamente dita, ou à interpretação no sentido geral de determinar ou induzir o significado, entender ou dar sentido a algo (HOUAISS; VILLAR, 2004), como em:
ST: (...) Em ambas [tradução e interpretação] precisamos fazer uma interpretação da linguagem, e traduzi-la para a língua destino. Respeitando, como foi citado, a cultura envolvida.
Em todas as situações, os excertos servem como uma amostra da concepção geral dos alunos do bacharelado Letras Libras e, de maneira relevante, às suas idéias iniciais sobre este tópico, pois a amostra foi colhida do primeiro fórum sobre tradução. Os informantes são identificados aleatoriamente por duas letras maiúsculas, sendo que pares de letras iguais correspondem ao mesmo enunciador. Tomei a liberdade de editar os depoimentos em sua forma, sobretudo a ortografia e a pontuação. O conteúdo, no entanto, não sofreu alteração.
Vários depoimentos dos alunos deixam transparecer vestígios que podem ser derivados da concepção renascentista sobre a tradução. O domínio sobre as línguas de trabalho aparece freqüentemente como uma das mais importantes características do ato tradutório, como é registrado a seguir:
KC: Para realizar um bom trabalho de interpretação além do domínio das línguas envolvidas é preciso também um profundo conhecimento das culturas envolvidas.
BN: (...) tradução (...) requer que se conheça de forma profunda a(s) língua(s) e cultura(s) em questão.
TM: Eu acho que um tradutor deve primeiramente estar integrado às duas culturas (a atual e a que será traduzida), depois o vocabulário deve ser rico, e por fim deve-se TENTAR manter-se imparcial, mas como somos seres humanos fica difícil.
Estes depoimentos relacionam-se com a declaração de que "[…] toda a graça da tradução consiste em traduzir corretamente o que foi escrito em uma língua para outra. Mas ninguém conseguirá fazer isto com eficiência se não possuir um amplo e profundo domínio de ambas as línguas em questão." (ARETINO, 1420-26/2006, p. 55).
MN: (...) Desta forma vemos a importância de conhecer o assunto previamente, (e de sermos pessoas bem informadas... bons leitores, termos um vocabulário amplo) o que além de resultar numa interpretação de melhor qualidade, nos dá muito mais segurança na hora de interpretar.
Neste sentido, Sebillet aconselha ao tradutor que "[…] tenhas um perfeito conhecimento tanto do idioma do autor que te propões a verter, quanto daquele ao qual decidiste traduzir, porque a falta de um dos dois ou dos dois fará com que a tradução se torne tão deselegante […]" (1548/2006, p. 293).
A questão de ser fiel apareceu em diversos trechos em referência direta, ou não, à necessidade de uma espécie de simbiose ou telepatia que pudesse reproduzir as exatas intenções do autor. Esta premissa consta, inclusive, no código de ética dos ILS:
2o. O intérprete deve manter uma atitude imparcial durante o transcurso da interpretação, evitando interferências e opiniões próprias, a menos que seja requerido pelo grupo a fazê-lo.
3o. O intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor da sua habilidade, sempre transmit indo o pensamento, a intenção e o espírito do palestrante. Ele deve lembrar dos limites de sua função e não ir além de sua responsabilidade. (FENEIS, 2008, s/p.)
Vejamos alguns trechos dos alunos em que o tópico da fidelidade é comentado:
TM: Porém se estiver interpretando uma palestra ou até um teatro, faria o mais fiel possível, porém com sinônimos mais brandos.
GG: Acredito que não estaremos sendo fieis com a interpretação/tradução se, sem autorização dos autores mudarmos o texto. Mesmo que sejam palavrões. Mas, como eu acho, se fosse uma platéia de crianças. Eu tomaria toda a liberdade de mudar... ou melhor, procurar sinônimos mais leves.
Seria interessante, embora não seja o objetivo desta pesquisa, sondar o que é tomado por “sinônimos mais brandos” ou “mais leves” e, até mesmo o que se entende por sinônimos, no caso da língua portuguesa brasileira e da Libras.
(...) O ideal seria o interprete traduzir exatamente o que se diz. Sendo fiel. Afinal, não é ele quem está dizendo aquilo, está apenas traduzindo.
A suposta fidelidade é percebida como o ideal de tradução, traduzir é reproduzir um discurso em outra língua, sem nenhuma influência da subjetividade do tradutor/intérprete que, nesta linha de pensamento é um ser oco, um canal, que não tem o poder, ou a permissão de enunciar-se como individualidade.
LC: Eu particularmente, numa situação assim onde as palavras fortes não caberiam ao público, ficaria meio sem jeito de interpretar sim. Mas, aí dá pra se pensar: estou sendo fiel a interpretação? OH! Dúvida cruel, hein!
O tópico abordado sobre traduções/interpretações delicadas, em que ocorrem temas ou palavras que causem comoção (ex.: palavrões) causou muito dilema, entre os participantes do fórum, que, ao mesmo tempo temem ser inadequados ao pronunciar termos de baixo calão e sentem-se coagidos a serem o mais fiéis possíveis ao que foi dito.
TM: Para mim a tradução é um tema muito complexo, porque se trata de transpor, transcrever, transferir, etc., um determinado texto ou uma pessoa explanando um certo tema, é complexo devido ao fato cultural que influi muito, e principalmente nossa visão de sociedade, de moral e bons costumes, mesmo que tentemos nos manter distantes e neutros sobre o tema a ser traduzido. Não importa se é escrito ou oral, para mim o importante é fazer com que a tradução seja clara e coerente, seguindo o mais fiel o original.
US: Bem, também percebi que para uma tradução precisamos respeitar sempre o original, pois cada língua tem suas características seus valores.
Nos excertos acima a preocupação com a fidelidade ao texto e autores primeiros é demonstrada por vários alunos e esta discussão é muito frequente. A noção que o ILS deve apagar-se diante do autor remete a Arentino que prescreve que "[…] o bom tradutor se transformará com toda a sua mente, alma e determinação no autor primeiro do escrito e de algum modo o transformará tratando de expressar a forma, a postura e a textura do discurso, sua cor e os diversos matizes" (1420-26/2006, p. 61). “A literalidade, em seus vários graus, também é um debate recorrente entre os intérpretes de língua de sinais. Um dos prováveis motivos é o desprestígio do que se costuma chamar de "português sinalizado" e que é definido, por alguns autores, como um sistema oral sinalizado, no qual a gramática que predomina é a da língua oral e no qual (sistema) existe o empréstimo do léxico da língua de sinais do país em questão” (SOUZA, 2003, p. 338). Atualmente já existem alguns linguístas que estão revendo esta questão, pois ainda não está claro se o português sinalizado deve ser considerado como um pidgin, uma interlíngua, uma língua veicular, uma forma de sobreposição de códigos (code blending) ou, ainda, outras possibilidades a serem desveladas.
Outra questão polêmica, apontada pelos alunos, foi a tradução literal, identificada como “interpretação palavra por palavra” como pode ser visto a seguir:
HS: (...) E que ambas, tradução e interpretação não podemos fazer a tradução e interpretação palavra por palavra e sim o sentido, o significado, o contexto do que se está falando ou lendo.
NM: o que nos impede de fazer uma tradução literal é a barreira cultural.
Também na Renascença, alguns autores não recomendavam a tradução mais literal, uma vez que "[…] as traduções de palavra por palavra não têm graça, não por estarem contra a lei da tradução, mas simplesmente pelo fato de que duas línguas nunca são uniformes em suas frases. As concepções são comuns ao entendimento de todos os homens, mas as palavras e as maneiras de falar são particulares a cada nação" (DU MANS, 1555/2006, p. 315).
O próximo trecho indica uma aproximação ao que é concebido como consideração dos valores estéticos do original, quando o informante diz que é preciso respeitar as especificidades da Libras e a harmonia no discurso, prescrevendo a não utilização de elementos gramaticais da língua de partida, mas valorizando os recursos próprios da língua de sinais.
ST: Acredito que isso seja tradução: onde você respeitou as particularidades da Libras, não usando conjunções, verbos de ligação, e outras regras exigidas na língua de partida da frase.
O termo ética surge várias vezes nos textos dos informantes, porém nem sempre com uma reflexão mais particularizada sobre o seu sentido. Na verdade, a expressão falta de ética ou não ter ética tem sido aplicada a ILS que: se atrasam aos eventos, cobram por seus serviços, vestem roupas chamativas, etc. Então, frequentemente a dimensão do comportamento ético é percebida de uma maneira distorcida. Ligada a este assunto, a imparcialidade também é citada:
LC: (...) o ambiente, a cultura, o próprio regionalismo, foram bastante influentes na atuação do intérprete ou será tradutor? Enfim... Onde entra nossa ética nessa questão? Seremos fieis ao autor, palestrante, etc... Ou de acordo com a situação, ambiente, plateia, faremos o máximo para passar as informações beneficiando os presentes? Até que ponto cabe a nós intérpretes decidir, por assim dizer, o caminho ou a direção dessa tradução?
UD: (...) A imparcialidade do Tradutor ou do Intérprete fica em não distorcer o que está sendo ou falado ou escrito na língua de origem. Colocando ou retirando informações.
NH: (...) um tradutor deve considerar o contexto e pessoas envolvidas para significar a tradução e ser imparcial.
As palavras traduzir e interpretar são comumente utilizadas no sentido de compreender e fazer compreender, noções estas percebidas pelos acadêmicos em suas explicações sobre os tradutores e/ou intérpretes serem, inclusive, guias e explicadores de cultura, tal como Arentino (1420-26/2006, p. 55) afirma que não basta o domínio de ambas as línguas de trabalho, pois para ele "[...] na realidade há muitos que são idôneos para compreender, mas não para explicar". E para explicar é preciso, antes, compreender, como Dollet também expõe: "[…] é desejável e necessário a qualquer tradutor compreender perfeitamente o sentido do autor que ele verte de uma língua a outra" (1540/2006, p. 199).
GG: (...) tradução é transformar sem mudar. Imagino o trabalho dum guia de turistas brasileiros num país com costumes bem diferentes do nosso. Além de traduzir as conversas das pessoas conosco, ele vai nos dizer o que podemos fazer e o que não podemos, onde podemos ir, irá nos ensinar como se come ali, etc. Isso é traduzir.
BN: (...) tradução seria a ação de tornar claro, compreensível algo que se quer dizer ou se tem por escrito na mesma língua ou em línguas diferentes para outras pessoas e que requer que se conheça de forma profunda a (s) língua (s) e cultura (s) em questão.
BN: Entendo como tradução o trabalho de estudar uma língua e a cultura que a envolve para poder passar para uma segunda língua o que se viu na primeira. Fazer com que o leitor possuidor de uma língua diferente compreenda o que se diz naquele texto ou legenda. A tradução requer tempo e pesquisa (precedente e inclusive no ato) para ser realizada.
Todos os depoimentos são de alunos iniciantes e, como tais, deixam transparecer algumas idealizações sobre a tradução. Em alguns pontos é possível perceber que a concepção que eles possuem sobre o traduzir é ainda uma reprodução do que circula na sociedade como senso comum e não, como um conceito que deve ser analisado e refletido em profundidade, especialmente em um curso em que traduzir e/ou interpretar é a meta de formação.
Considerações Finais
Apesar de a interpretação de língua de sinais ser um campo que tem merecido atenção só recentemente, mostra-se uma área fértil de investigações e questionamentos. Por abordar, inclusive, uma língua de modalidade diversa daquelas que são consideradas, por muitos, as únicas legítimas, as línguas orais, o estudo da interpretação de língua de sinais expande as concepções de linguagem que circulam na maioria dos meios acadêmicos. Este alargamento da percepção do que pode, também, ser uma língua abarca o ato tradutório entre modalidades variadas e nos impele a pesquisar os diversos aspectos constituintes deste modo de tradução/interpretação. Neste ensaio, propus-me a iniciar uma reflexão sobre a concepção de tradução que permeou os primeiros passos dos acadêmicos do bacharelado Letras Libras de modo a assinalar os traços que a teoria elocutiva da Renascença deixou em depoimentos atuais. Não posso, no entanto, considerar esta análise como completa, pois outros elementos também se sobressaíram, advindos, talvez, das especificidades do trabalho com as pessoas surdas, de crenças e concepções individuais dos depoentes, de contatos prévios com outras teorias da tradução e, até mesmo, de discursos reproduzidos dos cursos de interpretação de língua de sinais que, muitas vezes, não passaram por alguma reflexão mais aprofundada. Neste sentido, é preciso ponderar que alguns temas recorrentes necessitariam de uma investigação à parte, sobretudo alguns itens muito citados nos depoimentos: fidelidade, literalidade, imparcialidade e neutralidade, assuntos pertinentes aos Estudos da Tradução em geral, e os aspectos culturais advindos da convivência intensa e próxima entre os intérpretes de língua de sinais e seus potenciais clientes, as pessoas surdas. Muito ainda tem que ser feito em termos de investigação nesta área.
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