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Acessibilidade à cultura: o caso da comunidade S/surda
por porsinal     
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Quinta-feira, 18 de Junho de 2020 às 18:26:19
Com o início do período de isolamento, como medida de contenção da propagação da covid-19, vimos o trabalho de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa (LGP) assumirem um maior destaque na televisão. Partindo desse encontro tornado mais próximo do nosso dia a dia, decidimos aprofundar o conhecimento e refletir sobre a acessibilidade à cultura e à informação por parte da comunidade S/surda, em Portugal.

Pensar num acesso à cultura para todos é uma tarefa complexa, pela própria diversidade que a expressão “todos” integra. Nessa medida, Maria Vlachou, diretora executiva da Acesso Cultura, associação formada por profissionais da cultura, entidades culturais e outros interessados que se foca nas questões de acessibilidade física, social e intelectual à participação cultural, partilha com o Gerador que a associação “evita usar a expressão ‘para todos’”, pois “nada do que já se faz resulta na inclusão de todos”. Dentro da própria comunidade S/surda é, desde logo, importante fazer uma distinção a nível do discurso escrito. Maria explica-nos que se deve escrever “Surdo (com maiúscula) quando nos referimos à pessoa que fala língua gestual e surdo (com minúscula) quando a pessoa não fala LGP”. Já a “referência à comunidade em geral pode ser feita assim: S/surda”.

Olhando para a atividade de espaços culturais como museus ou salas de espetáculo, o acesso aos conteúdos culturais para a comunidade S/surda implica a existência de “interpretação em Língua Gestual Portuguesa de espetáculos, vídeos, visitas guiadas e (idealmente) de tudo o que é informação escrita”, explica Maria, acrescentando ainda que “a divulgação de exposições e espetáculos (por exemplo, os trailers) deverá também contemplar a LGP e a legendagem”. A inclusão desta última torna-se particularmente importante para as pessoas surdas, ou seja, aquelas que não falam LGP.

A integração de medidas de acessibilidade nos espaços culturais

Em Portugal, existem alguns espaços culturais que integram medidas de acessibilidade na sua programação. Um destes exemplos é o São Luiz Teatro Municipal que, desde 2007, integra a LGP na sua programação a pensar na comunidade Surda. “Fomos o primeiro teatro em Portugal a implementar sessões com interpretação em LGP e, desde essa data, e ao longo das várias temporadas, temos tido a preocupação e a missão de trabalhar para uma programação contínua para toda a comunidade, toda a comunidade Surda, inclusive em ambiente escolar”, explica Nuno Santos, responsável pela área de Acessibilidade no departamento de comunicação do São Luiz. “Toda a programação inclusiva (LGP – Língua Gestual Portuguesa, AD – Audiodescrição e SD – Sessões Descontraídas) é definida juntamente com a restante programação do Teatro, tendo em conta também aspetos técnicos e financeiros, resultando numa oferta contínua e regular de duas a quatro sessões por mês. O trabalho desenvolvido na área da acessibilidade, seja física e/ou intelectual, é também para nós uma questão de responsabilidade social e um desafio e compromisso assumidos desde o início por parte da direção artística do São Luiz, para com os criadores que ali se apresentam e o público que nos visita”, acrescenta.

Refletindo acerca de alternativas para pessoas surdas, Nuno partilha que “a comunidade que não sabe a língua usa frequentemente outros mecanismos como aparelhos auditivos ou implantes cocleares e são normalmente experts em leitura labial. Falam e interpretam como qualquer ouvinte. Normalmente, dominam o português falado e escrito e, também por isso, não necessitam de uma terceira pessoa envolvida na sua comunicação (um intérprete)”. “No geral, não vivem em função da surdez, ou diminuídos por ela, nem convivem apenas com outros surdos. É também por isto que o nosso trabalho de acolher público diversificado e proporcionar serviços na área da acessibilidade faz tanto sentido”, continua.

No que diz respeito à adesão por parte desta comunidade às iniciativas do teatro, Nuno afirma que tem sido crescente. “Estamos em contacto com grande parte das entidades, parceiras ou não, que trabalham e que desenvolvem projetos na área da surdez ou que mantêm contacto permanente com a comunidade Surda, permitindo também que a nossa informação e comunicação chegue às pessoas certas”.

Ademais, a forte ou fraca adesão a estas iniciativas não é o fator que dita a sua existência ou continuidade. “Assumimos que faz parte da nossa missão ter sessões em LGP enquanto Teatro Municipal, e, por isso, caso acontecesse oscilação nos números de aderentes por sessão ou por temporada, nunca seria impeditivo para a continuidade do trabalho que temos vindo a desenvolver. Trabalho este que tem sido seguido por outros equipamentos da cidade, e do país e aos quais muitas vezes temos dado apoio com o contributo da nossa experiência na área”.

Para o futuro, no que concerne as sessões com interpretação em LGP, o objetivo é aumentar a sua regularidade na programação de forma a “criar novos e bons hábitos culturais nessas comunidades e também fazer com que público geral reconheça e ‘aprenda’ sobre o trabalho desenvolvido pelas diversas instituições no sentido da oferta cultural dever, de facto, ser disponível para Todos”, elucida.

Outro exemplo, é o Museu da Comunidade Concelhia da Batalha que integra diversas soluções inclusivas. Tal como se pode ler no seu site, “é filosofia deste Museu integrar de forma discreta e efetiva, permitindo que os mesmos recursos e serviços possam ser fruídos por pessoas com ou sem deficiência. Só assim se entende que este seja ‘um museu de (e para) todos’”. No que diz respeito às soluções encontradas para pessoas S/surdas, o museu integra os seguintes recursos: “videoguia em LGP”, “videoguia textual”, “textos impressos em escrita fácil”, “espaço cão para surdos” e “filmes legendados”.

A criação do site Cultura Acessível, em que a Acesso Cultura, com o apoio exclusivo da Fundação Millennium BCP, reúne informação sobre a programação cultural acessível em Portugal, permite-nos identificar os vários tipos de serviços que tornam a programação cultural acessível a pessoas com diferentes necessidades e perfis e as entidades que os implementam. “Através do website Cultura Acessível, pretendemos facilitar o acesso do público à informação sobre programação cultural acessível. Ao mesmo tempo, queremos dar maior visibilidade ao esforço de algumas entidades culturais em Portugal para tornar a sua oferta acessível a pessoas com diferentes necessidades e perfis”, podemos ler na secção “Quem Somos”, do site.

Para os próximos meses, este site enumera os seguintes eventos culturais que incluem serviços a pensar na comunidade S/surda ou com deficiência auditiva: o ciclo de conversas sobre o futuro das artes performativas “Nada ficou no lugar, e agora?”, promovido pelo Teatro Municipal do Porto; os espetáculos de teatro “Tempo para refletir”, “Romeu e Julieta” e “O grande dia da batalha” no Teatro Nacional D. Maria II; a conferência “Longevidade: Regeneração, Precisão, Implicações Sociais”, pela Culturgest; a visita guiada “Mãos que falam de pintura”, pelo Museu Caloust Gulbenkian; ou a visita guiada “Walk and Talk in Serralves: ARTHUR JAFA”, pelo Museu de Serralves.

É ainda possível obter mais informações sobre os espaços e iniciativas que oferecem resposta às questões de acessibilidade no site da Associação Nacional de Arte e Criatividade de e para Pessoas com Deficiência (ANACED), que integra diretórios de acessibilidade em espaços culturais e artísticos nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra, Faro, Lisboa, Porto, Santarém, Viana do Castelo e Viseu e, ainda na área de Lisboa, no Guia Lisboa para Todos da Câmara Municipal de Lisboa.

Para além de espaços culturais, importa também pensar noutros tipos de consumo cultural como é o caso da compra de livros, visionamento de televisão ou até o consumo de rádio e/ou podcasts. A Livraria Surd’Universo, que desenvolve um trabalho há dez anos de divulgação da cultura surda e da língua gestual, ou a TV Jornal dos Surdos são dois exemplos existentes em Portugal.

No que diz respeito ao consumo de rádio e podcasts por parte da comunidade S/surda em Portugal, não existe ainda uma notória aposta em alternativas. Porém, Maria aponta um caminho possível. “No estrangeiro, é muito comum haver transcrição das conversas em rádio e dos podcasts. Isto serviria quem lê português. Para quem não o lê, deverá haver, para além da transcrição, um vídeo com interpretação em LGP”.

A Língua Gestual Portuguesa (LGP)

A LGP é a língua que permite a grande parte da comunidade Surda em Portugal comunicar, envolvendo cerca de 30000 pessoas que a sabem falar. Os falantes desta língua não são apenas as pessoas Surdas, mas também a comunidade envolvente que integra familiares, educadores, intérpretes, entre outros. Com um vocabulário e gramática próprios, é produzida através de movimentos das mãos, do corpo e por expressões faciais.

Esta língua foi reconhecida como língua oficial da comunidade Surda portuguesa pela Constituição da República em 1997, no dia 15 de novembro, que assinala também o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa, visando promovê-la e garantir o respeito pelos direitos da comunidade Surda.

Nos últimos meses, a presença de intérpretes de LGP tornou-se mais vincada, inclusive na televisão através dos noticiários dos canais generalistas. Em entrevista ao Gerador, Susana Barbosa, presidente da direção da Associação de Tradutores e intérpretes de Língua Gestual Portuguesa (ATILGP), partilhou que “os serviços de interpretação em tempo real trabalham para informar aqueles que elaboram e implementam políticas de interesse direto para o mundo inteiro”. Nesse sentido, “os intérpretes de língua gestual portuguesa são essenciais para fornecer essas informações o mais próximo possível do tempo real para a comunidade surda. O profissional intérprete, ao estar presente, está a tornar visível a normalização que deveria acontecer em todas as estações televisivas levarem em consideração que existem pessoas surdas, usuárias da língua gestual portuguesa e que têm o direito de ter acesso à informação, assim como os restantes cidadãos”.

No entanto, as áreas de atuação destes profissionais vão para além do meio televisivo. Os contextos de trabalho de um intérprete de LGP são variados: educativo, eventos, profissional, saúde, religioso, associativo, media, jurídico-legal, artístico, serviços públicos, entre outros. Durante este período de transformação que todos vivemos nos últimos meses, a covid-19, à semelhança do que aconteceu noutros setores, teve também impacto no trabalho dos intérpretes a vários níveis.

A LGP em cenário de pandemia

Nos meses marcados pela chegada da covid-19 a Portugal, Susana observou um aumento da procura por serviços de interpretação de vídeo. Porém, verificou-se uma alteração nas práticas de trabalho por as pessoas passarem a adotar o teletrabalho sempre que possível. “Usam-se diferentes plataformas, como o Zoom com o objetivo de fazer vídeo-interpretação. Ainda assim e apesar da situação pandémica, a ATILGP foi consideravelmente contactada para a prestação de serviços presenciais, nomeadamente em contextos educativos (ensino superior) e contextos jurídicos e notariais”, acrescenta.

Porém, “como as empresas/instituições/parceiros não podem receber presencialmente da maneira habitual, os serviços de interpretação de muitos desses eventos foram cancelados, afetando a comunidade de intérpretes. No entanto, apesar desses cancelamentos em massa, os intérpretes são importantes nestes contextos para que a informação chegue a todas as pessoas surdas de igual forma que os restantes cidadãos”, esclarece Susana.

Vera Macedo, intérprete de LGP no contexto religioso, partilha que as maiores dificuldades que tem encontrado no seu trabalho se prendem com as traduções online e as presenciais. “Nas traduções online, as plataformas não estão preparadas para ter o intérprete nas sessões e, com isto, quero dizer que faltam ferramentas para conseguir visualizar todo o ambiente de trabalho e conseguir fixar o(s) intérprete(s) na mesma janela. A qualidade da imagem dificulta a perceção dos gestos e ferramentas para conseguir captar a atenção do surdo que está do outro lado do computador”.

Por outro lado, num cenário marcado por uma pandemia que implica o uso de máscara em espaços públicos, existe ainda um outro obstáculo à comunicação na comunidade Surda, uma vez que a LGP é produzida a partir de movimentos das mãos, mas também do corpo e por expressões faciais e que as máscaras cobrem cerca de 1/3 do rosto. A este respeito, Maria afirma que a máscara constitui um obstáculo e que, “não há comunicação se esta for usada”.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Vera expõe que “máscara impede a leitura facial prejudicando a perceção da língua gestual. As máscaras opacas são impraticáveis durante a tradução, as viseiras ficam muito afastadas da face dificultando a tradução. As máscaras transparentes são eficazes e uma boa resposta para a tradução, mas têm o problema de ressoarem com a respiração ao fim de algum tempo, sendo necessário parar com alguma frequência. É uma nova realidade a que temos de nos adaptar e, a nível religioso, já temos práticas, como o distanciamento social, o reduzido número de pessoas por cerimónia, as máscaras transparentes e algumas traduções online”.

Foi a pensar neste obstáculo comunicacional, que advém do uso de máscaras, que uma empresa de confeção têxtil em Famalicão, a Elastoni Confeções, através da marca Be Angel e em parceria com o CITEVE (Centro Tecnológico Têxtil e Vestuário), criou máscaras a pensar na comunidade Surda, que apresentam uma região transparente na zona da boca.

Susana Branco, que trabalha como intérprete de LGP no contexto escolar, afirma que o desenvolvimento da máscara transparente “veio minimizar as dificuldades de compreensão inerentes” à interação entre os alunos Surdos e a comunidade ouvinte. “Com esta máscara, a leitura labial é conseguida, apesar de a leitura de expressão facial ficar limitada – parâmetro essencial na comunicação através da Língua Gestual”, acrescenta. Todavia, na sua opinião, existe uma vantagem na utilização destas máscaras em detrimento das viseiras, por permitirem “realizar a execução dos gestos quando estes apresentam a face como local de contacto”. Apesar de todas as limitações que podem estar associadas ao seu uso, a profissional afirma que é “de valorizar e de aplaudir que elementos da nossa sociedade demonstrem interesse e preocupação para com a comunidade surda e todos os agentes nela envolvidos”.

Liliana Duarte, intérprete de LGP em contexto televisivo declara que, devido à “fase muito conturbada, de grandes contingências” que vivemos, “o trabalho do intérprete tem assumido, desde março, um maior destaque na televisão”. “A atualização diária dos números referentes à covid-19 pela Direção Geral de Saúde socorre-se diariamente de um intérprete de LGP. O facto de os profissionais terem passado quase para um primeiro plano no que concerne ao tamanho da imagem tem contribuído para que a nossa classe profissional assuma maior destaque, o que nunca tinha acontecido antes, salvo raríssimas exceções em programas da RTP2 e da RTP Memória”.

Também durante este período foi necessário repensar as questões de atendimento pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS24). A 21 de abril Luís Goes Pinheiro, presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, apresentou em conferência uma nova funcionalidade no SNS24 que visa a comunidade Surda – um serviço de atendimento feito através de videochamada em que existiria um intérprete de língua gestual portuguesa como mediador. Como alternativa para as pessoas surdas, foi criado um chat em que as mesmas podem entrar em contacto com profissionais do SNS24 através de texto escrito.

Liliana relembra ainda o projeto Tele-escola, iniciado nesta fase de confinamento, que contempla, desde o seu início, um vasto número de intérpretes, no qual se inclui, que ainda se encontram em processo de filmagens juntamente com os professores.

Habituada a trabalhar em contexto jurídico-legal como intérprete de LGP, Bitia Faria partilha que durante este período teve oportunidade trabalhar em diversos contextos – em escolas, universidades, televisão e serviços jurídicos. Destas, quis destacar a experiência que teve no último contexto, por ter sido o único que realizou num regime presencial durante a situação pandémica. “Esta experiência fez me perceber como estão a ser realizados os julgamentos e audiências de inquirição, isto é, existem normas que têm de ser cumpridas, como por exemplo, o uso da máscara e o distanciamento social. Em todos os serviços jurídicos que efetuei, fui orientada de forma a manter o distanciamento social e em todas as salas pelas quais passei foi-me pedido que desinfetasse as mãos. Os lugares ocupados cumpriam as distâncias de segurança”.

Dadas as limitações comunicacionais inerentes ao uso de máscara, como enunciado anteriormente, Bitia explica que, por vezes, sentiu a necessidade de solicitar permissão para retirar a máscara por uns momentos, ressalvando que “as distâncias de segurança foram sempre cumpridas”. “Como Intérprete de Língua Gestual Portuguesa denoto que trabalhar nesta situação de pandemia tem sido um desafio grande no que diz respeito a situações laborais com interação física. Apesar das dificuldades e de todas as novas condições a que estamos sujeitos, procuro equilibrar o desejo de fazer um bom trabalho, o respeito pelas normas de distanciamento social e o uso de máscara de forma a proteger todos os envolventes. Fico satisfeita por ver que estão a ser mantidas as regras de segurança nos serviços jurídicos e que, ao mesmo tempo, existe a flexibilidade necessária para que o trabalho dos intérpretes continue a ser feito de forma rigorosa e segura”.

Estendo a reflexão acerca dos cuidados necessários para assegurar a qualidade e segurança no trabalho dos intérpretes, Vânia Ferreira, que tem focado o seu trabalho como intérprete de LGP nos contextos sociais, afirma que em regime de teletrabalho, em que tem trabalhado, encontrou “cuidados a manter e novos a ter em atenção”. Tocando no ponto supracitado referente às videochamadas, que nesta altura foram uma prática recorrente, Vânia realça a importância de ter uma “boa câmara” e uma “boa qualidade de Internet” de forma a garantir a qualidade de imagem. Por outro lado, aponta a importância de manter o contraste de cores, “usando uma indumentária lisa e contrastante com o tom de pele, bem como usar um fundo neutro para que não haja desvios de atenção”. “Um bom domínio das tecnologias ajuda a agilizar o trabalho. Conhecimento sobre os programas com que trabalhamos, saber como colocar uma vista em grelha (ver todos os intervenientes ao mesmo tempo), usar o chat em momentos oportunos, usar o email e mesmo a drive. Isto relativamente à interpretação simultânea em contexto de aula”, conclui.

Já no que diz respeito à interpretação de vídeos, explica que há vários cuidados a ter: “não cortar gestos, ter um bom enquadramento e focagem, usar um fundo neutro. Para além disto, é necessário que o conteúdo do vídeo, ou seja, a interpretação, fique com boa qualidade, exigindo ao intérprete a repetição de takes, tendo em conta tudo o que é necessário para além da interpretação em si. Habitualmente, é realizada a interpretação dos conteúdos e enviada para edição, onde o trabalho é finalizado”. Desta forma, este período de distanciamento social exigiu-lhe a aplicação de capacidades que vão para além das de intérprete, como é caso do “domínio tecnológico”, “edição” e “flexibilidade de horário”.

Ainda no domínio da educação, Ana Oliveira, intérprete de LGP que tem trabalhado no contexto do Ensino Superior, partilha a sua experiência com um estudante surdo com baixa visão. Esta comunicação, que envolvia diferentes níveis de exigência como realizar “gestos próximos do corpo” e a “utilização de sistemas alternativos de comunicação, como os sistemas alfabéticos e sistemas de comunicação através da língua gestual e língua gestual tátil que se reflete no facto de a pessoa surda com baixa visão colocar as suas mãos” na da intérprete enquanto realiza a interpretação, encontrou novos desafios nesta fase de distanciamento social. As aulas passaram a ser dadas via Zoom, “em que o estudante surdo com baixa visão necessita de adaptações como dois monitores maiores e a interpretação necessita de cuidados ainda mais redobrados como boa luminosidade, roupa lisa e escura, gestos próximos da câmara e lentos para tentar colmatar a ausência da língua gestual tátil e para que o estudante consiga, ainda que com muita dificuldade, ultrapassar esta barreira da distância”, explica.

O caminho para mais espaços culturais com medidas de acessibilidade

O número de entidades que abarquem soluções inclusivas nos seus espaços e programação é ainda reduzido, se pensarmos na totalidade de espaços e iniciativas de fruição cultural. Nesse sentido, Maria enumera algumas ações que, postas em prática, podem promover a adoção por parte de mais entidades de medidas diárias de acessibilidade nos seus espaços e programação: “reuniões, formação, conferências, partilha de notícias sobre entidades que implementam serviços de acessibilidade”. “É o que a Acesso Cultura faz, não só para sensibilizar as organizações culturais, mas também para informar o público S/surdo”. Um exemplo, é o site Cultura Acessível.

Como maiores obstáculos neste processo, destaca a “falta de conhecimento, falta de formação e a perceção de que isto ‘deve ser caro’. Não é, mas mesmo que o fosse, as organizações culturais não podem discriminar os cidadãos”.

Susana partilha que as principais lacunas encontradas no trabalho desenvolvido pela ATILGP centram-se na “necessidade de reconhecimento e valorização da profissão” de intérprete “uma vez que este profissional é o mediador de comunicação entre duas comunidades (Surda e ouvinte) e a sua presença deveria ser assegurada em todos os contextos sociais e educativos promovendo, assim, a acessibilidade aos espaços e a participação ativa da comunidade surda”.

Nuno partilha que, no que diz respeito aos obstáculos existentes na aplicação de medidas de acessibilidade na programação do São Luiz, estes são “residuais tantas vezes ou mesmo inexistentes”. “As questões financeiras estão previstas a um número fixo de sessões por temporada, número esse que justifica a resposta que temos por parte da comunidade; as questões técnicas, essas poderão por vezes ser um desafio já que os espetáculos têm características artísticas e técnicas próprias e particulares e nem sempre o papel do intérprete pode ser estático, ou seja, muitas vezes temos de trabalhar com as companhias no sentido de integrar o próprio intérprete no espetáculo, de alguma maneira, de modo a que o público Surdo na sala não perca a atmosfera e o conteúdo ali transmitido”. O compromisso que o Teatro assume é o de querer “saber e poder dar uma resposta e crescer sempre mais um pouco”, permitindo que a oferta do São Luiz “seja do usufruto de Todos”, remata.

Para além da responsabilidade das entidades, organizações e do próprio público, existe também um papel que o Governo deve assegurar. Neste ponto, Maria Vlachou enumera algumas medidas que deveriam ser implementadas de forma a fomentar e assegurar uma maior acessibilidade nos espaços culturais: “A insistência no cumprimento da Lei da Acessibilidade e da Lei da Não Discriminação em função da deficiência; um bom sistema de fiscalização (capaz de agir sobre incumprimentos); linhas de financiamento para a adaptação dos espaços/serviços; políticas de acessibilidade e inclusão escritas em cada organização cultural pública (no que diz respeito ao público, mas também às equipas); e garantia de condições de acesso ao ensino superior (áreas artísticas/gestão cultural) de pessoas com deficiência e S/surdas”.

O caminho para a integração de medidas de acessibilidade no domínio cultural, assim como noutros contextos, ainda será longo. É importante notar o papel ativo que algumas entidades têm demonstrado ao edificarem programações inclusivas e que apresentem soluções para a comunidade S/surda, mas também um número maioritário de organizações que ainda não deu este passo. Maria salienta que “o esforço não pode ser de um lado apenas: tem de haver oferta e tem de haver procura, também”. E é neste caminho de responsabilidades múltiplas que devemos seguir na procura de informações e soluções de aplicação de forma a que o maior número de pessoas possa fruir de algo que constitui um direito vincado pela Constituição da República Portuguesa – a Cultura.

Fonte: Gerador (Texto de Andreia Monteiro)

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