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Empenho e desafio: O cotidiano estudantil de crianças surdas na quarentena durante a pandemia
por porsinal     
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Terça-feira, 12 de Maio de 2020 às 17:24:15
Adaptação e inclusão em sala de aula virtual não são realidade para todos e alunos dependem de dedicação dos pais.

Se a inclusão nas escolas já não é uma realidade para todos no Brasil, imagine-se num mundo em que alunos surdos precisam acompanhar as aulas a distância. Esse é um dos grandes desafios de crianças e adolescentes que têm deficiência auditiva na quarentena durante a pandemia de coronavírus.

A publicitária Mariana Candal, é mãe de Joana, de oito anos, que está no 3° ano. A deficiência auditiva da menina foi descoberta nos primeiros dias de vida. Com implante coclear bilateral, ela teve muita dificuldade em acompanhar as aulas online no início. “A aula dela é pela plataforma Teams e ao vivo. São 25 crianças de oito anos participando simultaneamente. Nas primeiras semanas foi muito frustrante porque ela, que tinha uma compreensão ótima no ambiente escolar, de uma hora para outra, estava entendendo muito pouco. Por melhor que sejam os seus equipamentos e até a internet, a qualidade do som, a clareza, é bem diferente. Se nós ouvintes prestarmos atenção vamos perceber isso. Imagina para quem já precisa ouvir através de um dispositivo eletrônico, no caso dela, o implante coclear”, conta.

Mariana percebeu que a filha também não conseguia lidar com o ruído provocado por colegas em sala que não fechavam o microfone durante a fala dos professores.

Nem as crianças, nem os pais, nem os professores estavam preparados e não sabíamos como nos comportar em plataformas virtuais. As primeiras semanas, e ainda temos alguns episódios, foram desesperadoras porque as 25 crianças deixavam seus microfones abertos e muitas queriam falar ao mesmo tempo. Nem eu entendia, imagina ela? Eu tentava tranquilizar, respirava fundo, mas a angústia dela e minha por vê-la perdida era tamanha que a gente tinha vontade de desligar tudo. Claro, enfrentamos, falei com a professora no privado, falei com os pais no WhatsApp, com muita insistência e repetindo muito para os pais o quanto isso impactava na motivação dela e, aos poucos, fomos conseguindo uma mudança de comportamento”, desabafa.

Hoje, depois de um mês de aula, Joana está mais adaptada. As crianças só abrem o microfone quando solicitadas e falam uma de cada vez, o que diminuiu muito o barulho de fundo. A garotinha voltou a ter confiança para participar das aulas. “O bom dessa loucura toda é que estamos desenvolvendo novas habilidades nas nossas crianças também”, avalia a mãe.

Outra dificuldade é com os vídeos pedagógicos enviados para tarefas de casa. Muitas vezes, eles têm uma má qualidade de som. E nenhum deles têm legenda, que seria a acessibilidade adequada para a Joana, e nem janela de Libras, outra possibilidade para os surdos sinalizados.

A escritora e palestrante Lakshmi Lobato Austregesilo, que é deficiente auditiva desde criança, ressalta que a lei não fala em inclusão escolar para aulas a distância. “E de repente todo mundo foi pego tendo que ensinar as crianças em casa com vídeoaulas. Vi as mães e pais dos grupos falando sobre a falta de acessibilidade. Adaptação e inclusão em sala de aula já não são realidade para todos, depende da escola, do tipo de adaptação que aquela criança precisa, de informação para as famílias. Imagina essa realidade colocada na era virtual sem nenhum preparo para isso”, analisa.

A falta de acessibilidade nos materiais escolares é um desafio também para Maurícyo de Oliveira, de 11 anos, e que está no 6° ano do ensino fundamental. O garoto não escuta desde que nasceu e é usuário de dois implantes cocleares desde o primeiro ano de vida. A mãe dele, Geraldine Brandeburski de Oliveira, afirma que teve de traçar uma estratégia de adaptação para que o fiho pudesse acompanhar o conteúdo das videoaulas. “Tenho que assistir com ele. Implantados deficientes auditivos e surdos apresentam dificuldades com palavras novas. Tudo tem que ser explicado e mostrado. Necessitam de legendas. O aplicativo adotado pela escola foi o Microsoft Teams. As legendas só têm em inglês, então tive que usar computador e telemóvel juntos. E usar um aplicativo que se chama web captioner para legendar as falas. Melhor seria se mandassem um texto já escrito antecipado e adaptado com imagens”, ressalta.

Daniel, de sete anos, é filho de Simone Silva. No 2° ano do ensino fundamental, o garoto é um surdo oralizado e não faz uso de Libras. “Com dois anos a gente percebeu que ele não falava direito e a pediatra dizia que era normal. A gente decidiu procurar uma fonoaudióloga e ela sugeriu que fosse feita a audiometria. Fizemos alguns testes e foi constatado que o Daniel tinha uma surdez de moderada a severa. Foi indicado uso de aparelhos auditivos. Essa notícia é muito dolorosa. Assim que chega para a família, a gente passa um bom tempo lutando contra essa dor, chorando e buscando uma resposta, mas a gente se adapta e não dá para ficar parado”, lembra.

No ano passado, Daniel acordou um dia sem ouvir nada. “Ele dormiu ouvindo e acordou totalmente surdo. Nós já tínhamos um acompanhamento médico e prosseguimos com a cirurgia para o implante coclear, numa das orelhas. Na outra ele ainda está com aparelho auditivo, sendo um utilizador bimodal”, afirma Simone Silva

Para Daniel, que é dependente realmente do áudio, a complementação visual é muito importante nas aulas online. “A maior dificuldade com certeza é o áudio porque a maioria das aulas tem muitos vídeos e áudios das professoras falando com os alunos. Nem sempre o sinal de internet ajuda. Em casa também, durante as aulas, a gente tenta deixar um ambiente silencioso, com o mínimo de ruído possível para ele ficar mais atento a aula. O primordial é que tenha uma pessoa da família, mãe, pai, irmão, que fique ao lado dessa criança, que ajude e fique fazendo essa ponte entre ela e a escola, às vezes repetindo, coisas que você percebe que ela não entendeu. É preciso que a família ampare”, acrescenta.

Na avaliação da escritora Lak Lobato, é preciso destacar as diversas realidades de crianças surdas e que estão participando das aulas online a quarentena. “Tem pais que conversam com as escolas para pensar em alternativas como receber o conteúdo em PDF e ensinam junto com o professor. Outros que buscaram acessórios para melhorar o áudio e a criança conseguir acompanhar melhor. Outros sentam para ter aulas junto. E outros preferiram ignorar o currículo e ensinar por conta própria. Também fiquei sabendo de gente que desistiu do ano escolar porque o aluno não conseguia aprender e pais não tinham conhecimento para ensinar”, diz.

Para ela, criatividade e reinvenção é o ponto chave. “Mas, sobretudo, é uma oportunidade de conhecer de perto as necessidades do seu filho, ver como ele aprende a buscar alternativas para isso. Não ter vergonha de conversar com a escola e cobrar ajuda para contornar o possível obstáculo. E até não ter medo de improvisar soluções. Minhas lives, por exemplo, são legendadas e é uma gambiarra de filmar a tela do computador usando um programa que transcreve a fala. Não fica perfeito, mas ajuda”, conclui.

O empenho de mães de alunos com deficiência auditiva na quarentena

A vida de mães acompanhando as aulas dos filhos na quarentena não tem sido fácil. E isso é ainda mais desafiador para as crianças que não ouvem. Além do trabalho e das tarefas de casa, elas tentam de tudo para auxiliar a adaptação dos pequenos.

Para mim está sendo feito um esforço muito grande porque a minha secretária está na casa dela para não se expor ao covid-19, então, estou tendo que dividir meus horários. Tem horas que faço coisas da casa. Mas eu já me ajustei, sei que em determinados horários tem as aulas. Nos intervalos tem o almoço e vou me organizando. Mas as crianças são tranquilas, minha mais velha já é uma adolescente e faz aula online. Meu marido ajuda também. E o que não dá pra fazer, a gente deixa para outro dia. O mais importante é a gente se manter saudável dentro de casa, né? E inovando para passar bem essa quarentena”, diz Simone Silva, mãe de Daniel.

Joana, filha de Mariana Candal, tinha uma situação de inclusão muito bem resolvida na escola regular antes da pandemia. “Foi um baque para mim quando ela se viu perdida nas aulas online. Foi muito frustrante, uma sensação de retrocesso. Depois do primeiro mês posso dizer que hoje está mais fácil. Ela já está acompanhando sozinha a maior parte do tempo, me chama em momentos esporádicos”, ressalta a mãe da garotinha.

Apesar de a filha estudar em um colégio particular e obter bons resultados, a publicitária desabafa. “Não houve nenhuma proatividade de entrarem em contato para pensarem no que poderia ajudar ou minimizar as dificuldades. É como ser jogada aos leões. Isso é bom em alguns aspectos porque nos faz crescer, aprender, desenvolver outras habilidades, mas a criança com uma deficiência precisa ter um olhar diferenciado, para que esses obstáculos tenham uma proporcionalidade adequada e que não se tornem barreiras intransponíveis provocando bloqueios, angústias, sofrimentos desnecessários”, afirma.

 

Fonte: Estadão

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