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Surdos nos hospitais. Como é estar doente e não perceber os médicos.
por porsinal     
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Terça-feira, 04 de Fevereiro de 2020 às 01:42:25
Ter uma dor, estar à frente do médico e não conseguir ouvi-lo. O Orçamento de 2019 previa uma verba para a contratação de 25 intérpretes de língua gestual. A maioria dos hospitais não a usou.

Apesar dos tratamentos, a doente acabou por morrer. “É incrível pensar que aquela pessoa andou meses a caminhar para o hospital sempre sem saber o que tinha. Não tinha direito à informação?”.

Amélia, sendo já uma habitué nos consultórios médicos, ensina língua gestual por lá a quem tiver vontade de aprender. Também “nunca tinha acompanhado ninguém com uma doença dessas”, até que um dia, na oncologia, uma frase lhe ficou para sempre na memória. A médica, desprovida de amarras comunicativas, “pediu-me para dizer à senhora que, no dia em que ela fosse operada, tinha de pensar nas coisas mais bonitas da vida, porque isso também ajuda a curar”. Faz uma pausa e diz, com um sorriso. “Onde é que isto seria possível sem um intérprete?”.

A cirurgia correu bem, a doente “tirou o peito e está bem”. Mas nem todas as suas histórias acabaram com finais felizes.

Da necessidade de explorar uma fórmula, como nas emergências

Portugal é um país em que se estima “existirem pelo menos cerca de 85 mil pessoas surdas”, disse a Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, por altura da inauguração da aplicação MAI 112, em julho, que confere aos surdos a possibilidade de fazerem uma videochamada para o 112, quando têm uma emergência. “Trata-se de uma conferência a três”, descrevia a governante, entre o surdo, o intérprete e um assistente do Centro de Orientação de Doentes Urgentes.

Em cinco meses, durante a fase piloto que terminou a 4 de dezembro, esta aplicação registou apenas 237 interações. O Ministério da Administração Interna garante ao Observador, ainda assim, que nas “próximas semanas” irá avançar para uma “segunda fase, com a disponibilização da aplicação MAI 112 na Google Play Store e na Apple Store, aumentando o alcance da mesma”.

Claro que é uma mais-valia, é um primeiro passo”, mas, pelo que Ana Bela conhece do Porto, os surdos não recorrem muito à aplicação. Amélia acha que não chega, porque “estes utentes não vão aos hospitais apenas em situações emergentes”.

Apesar de o serviço disponibilizar também mensagens de texto, assim como é possível na linha de Saúde 24, a língua portuguesa não está no domínio de grande parte dos surdos. Amélia diz mesmo que conhece no norte apenas duas pessoas surdas — “mas que sejam seis em todo o país” — que entendem bem o texto escrito, “que são capazes de ler um livro de José Rodrigues dos Santos, por exemplo”. “Isso é muito raro”. A língua portuguesa é, para os surdos, o mesmo que uma língua estrangeira é para um ouvinte.

Ana Barbosa, ou Anita, é surda profunda de nascença. Apesar de ter estudado numa escola preparada para alunos surdos, no Porto, e de ser licenciada em Educação Social, também não domina o português como domina a língua gestual, sua língua mãe.

Num café ao lado do mar, em Vila Nova de Gaia, onde vive e trabalha, conta com a destreza de trinta e três anos de língua gestual como foi quando consultou um médico sem intérprete.

Não foi fácil”. Tentou fazer leitura labial ou levar familiares, mas quer entender tudo, diz ao Observador. “Às vezes o médico pode prescrever uma medicação e diz lá que são três vezes por dia. Eu chego a casa e pesquiso na internet. Não me sinto independente nem autónoma”.

Incomoda-a levar alguém da família atrás, para as consultas. Por isso, sempre que tem oportunidade de escolha, é consultada no Hospital de Gaia e Espinho, onde Andreia, a trabalhar como administrativa, também faz, desde 2012, trabalho de intérprete. E não recebe mais por isso.

É um dos “profissionais dotados de competências” que a Direção Regional da Saúde do Norte indicou ao Observador existirem na região. Caso repetente no Alentejo, onde o Hospital do Espírito Santo de Évora “tem na sua equipa uma profissional com o curso de Língua Gestual Portuguesa, contactada sempre que necessário”.

Um dia, Andreia cruzou-se, em trabalho, com um casal surdo com o qual teve dificuldades em comunicar. “A minha primeira reação foi falar mais alto”, descreve, ao mesmo tempo que lhe escapa um riso revelador de que, a esta distância, a situação lhe parece anedótica.

Interessou-se por saber como é que poderia comunicar com pessoas surdas. “Fui ter à Associação de Surdos do Porto, tirei os três níveis, apaixonei-me pela Língua Gestual Portuguesa e passei para a licenciatura”. Tentou candidatar-se a algumas escolas, mas “é muito difícil e a experiência também é pouca”. Então pensou: “Eu tenho experiência em meio hospitalar, não há intérpretes no hospital, os surdos precisam. Porque não?” Fez a proposta ao hospital e foi aceite.

Ana Bela chegou a falar desta dificuldade com uma enfermeira chefe de um hospital público. “Ela disse-me que também não entendia, porque quando chegam lá ucranianos, russos ou pessoas que falam línguas menos comuns, o hospital tem uma bolsa de intérpretes com números de telefone. Porque é que para os nossos, portugueses surdos, não existem intérpretes de língua gestual?”, questiona-se. “É uma resposta que não se admite como é que não existe”.

Estamos melhor, mas ainda não saímos da base da pirâmide de que nos fala Amélia Amil. “Neste momento, o que está em cima da mesa é aquilo a que se chama Diversidade Funcional, em que vamos caminhando para não haver deficientes surdos, deficientes visuais, deficientes motores”. No futuro idílico da intérprete, as cidades terão de se adaptar a quem tem um problema num dedo, no nariz, não ouvir ou não andar. Mas “ainda estamos a resolver os problemas da base da pirâmide das necessidades”.

Enquanto isso, Amélia dá o corpo às balas: “Todos os dias, na cidade do Porto, não há milhares de pedidos. Não há”. Como é “uma mulher também das economias”, enquanto “cidadã que paga os seus impostos” considera exagerado “contratarem para lá três intérpretes a tempo inteiro para quatro casos por dia”.

Como Ana Bela, defende uma bolsa de intérpretes, em que “o Ministério da Saúde teria de assumir os custos, como assume o Ministério da Justiça” no caso dos tribunais. “Se não estivesse um disponível, havia de estar outro”, antecipa Ana Bela. Mas seria “presencialmente” porque “a pessoa pode não ter um domínio assim tão bom da língua gestual e muitas vezes a situação é agravada pelo facto de estar doente".

Fonte: Observador (texto de Joana Ascensão e ilustrações de Kimmy Simões)

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