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O que ouve quem não ouve?
por porsinal     
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Segunda-feira, 15 de Julho de 2019 às 15:11:54
A pergunta é estranha, sobretudo quando não falamos a mesma língua. Perguntámos a quem não ouve, para tentar perceber o som que existe no silêncio. Porque os surdos também ouvem.

Quando pesquisava sobre surdez e esperava uma resposta por parte da Associação Portuguesa de Surdos ao pedido de um testemunho sobre o que é o som para a uma pessoa que não ouve (resposta essa que nunca chegou), encontrei no The New York Times um artigo de opinião de uma realizadora norte-americana, filha de surdos e mãe de uma criança surda.

“Entre o som e o silêncio” era o título da coluna de Irene Taylor Brodsky, autora de diversos documentários sobre o assunto, que refletia sobre a revolução que os implantes cocleares significaram para a comunidade surda e sobre a reação negativa que muitos dos seus membros revelaram contra esta inovação tecnológica que, em algumas gerações, nos países desenvolvidos poderá vir a fazer da surdez uma opção.

A dúvida com que a certa altura se debateu sobre se devia ou não submeter o filho de 4 anos à cirurgia advinha sobretudo de ter crescido entre surdos e da experiência por que os pais passaram quando aos 65 anos decidiram colocar implantes cocleares – e sobre a qual Irene fez um documentário. O seu propósito era perceber a transformação da relação deles com o mundo e entre si a partir do momento em que começaram a ouvir.

O som das nossas vozes, a água e o vento eram emocionantes ao início, mas depois tornaram-se confusos, perturbadores e até irritantes. Os meus pais já tinham construído vidas tão significativas e realizadas vivendo em silêncio que eu perguntei-me se introduzir nas suas vidas a capacidade de ouvir valeria o risco de perder isso tudo. Tudo o que o implante faz é abrir um novo caminho para o som. O que o nosso cérebro faz disso é o que realmente importa”, escreve Irene Brodsky, que acabou por seguir os conselhos dos médicos e colocar o implante coclear o mais cedo possível ao filho.

A ideia de um implante que lhe permitisse ouvir tudo assusta Maria Nair, 60 anos, surda desde os 2 anos e meio devido a um trauma provocado por ter ficado fechada num estábulo de ovelhas e cabras. O barulho destes animais, assim como sons mais fortes “do metro, do comboio, do avião ou do aspirador” era tudo o que ouvia até aos 30 anos, quando colocou um aparelho auditivo.

O som para mim não é muito bom. Sentir que há barulho ou confusão à minha volta, uma discussão, por exemplo, deixa-me muito nervosa, fico com a cabeça baralhada e os sentidos alterados”, diz Maria, com a ajuda do professor Mário Rui Carneiro, que tem diversos projetos com a comunidade surda.

Maria usava aparelho auditivo até lhe ter sido roubado (está à espera de outro), mas não consideraria implante, a não ser que o tivesse feito logo em criança, porque torna os sons muito intensos. “Prefiro o silêncio, deixa-me tranquila, por vezes imagino o cantar dos pássaros ou o barulho das ondas do mar”.

Viúva, sem filhos, Maria é empregada de limpeza em lojas e escritórios, sem contrato de trabalho. Os pais e os dois irmãos eram “ouvintes”. Estudou no Porto, numa escola feminina para surdos até ao 4.º ano de escolaridade. Não escreve muito, mas sabe ler bem. Da infância, lembra que algumas crianças tinham medo dela por ser surda, outras sentiam curiosidade.

Foi difícil, mas com o tempo aprendi a ler os lábios e a arranjar algumas formas de comunicação com os ouvintes. Hoje, já me habituei a ir à padaria ou ao supermercado, e as pessoas também já me conhecem, mas continuo a sentir que tudo à minha volta me parece diferente do meu mundo”.

As barreiras são muitas, umas maiores do que outras, mas a comunicação é mais visível. São poucos aqueles que, fora da comunidade surda, sabem língua gestual portuguesa. “Felizmente, muitos têm boa vontade e bom senso e isso vai tornando as coisas mais fáceis”, diz Maria Nair, para quem ser surda é uma condição à qual se habituou. “O mais difícil para mim tem sido sempre encontrar trabalho”.

Maria ficou surda devido a um trauma, mas um em cada mil bebés nasce surdo dos dois ouvidos e por isso, se nada for feito, não consegue adquirir linguagem e oralidade. De acordo com o professor João Paço, coordenador da otorrinolaringologia do Hospital CUF Infante Santo, hoje, nos países desenvolvidos, é possível corrigir esta deficiência precocemente. “O rastreio auditivo neonatal é universal e, caso se determine que o bebé não ouve, o implante coclear, colocado entre os oito meses e 1 ano, permitirá à criança ouvir e desenvolver linguagem normalmente. Mas é uma opção. Já tive casos de pais surdos que não quiseram implantar a criança”.

Fonte: DN Life / Texto: Catarina Pires

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