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Maria José Freire
por porsinal     
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Domingo, 26 de Novembro de 2017 às 18:27:49
Docente da ESE/IPS foi uma das obreiras do reconhecimento oficial da Língua Gestual Portuguesa.

2017 é um ano especial para a comunidade surda portuguesa. Vinte anos passaram sobre dois feitos marcantes na sua história, nomeadamente o reconhecimento oficial, pela Constituição Portuguesa, da Língua Gestual Portuguesa, e o lançamento da primeira licenciatura em Tradução e Interpretação de LGP em Portugal, pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE/IPS). Recordar estas datas é também contar o percurso da docente Maria José Freire, atual cocoordenadora deste curso pioneiro e membro da já extinta Comissão para o Reconhecimento e Proteção da Língua Gestual Portuguesa. Nesta conversa, a pretexto da homenagem que lhe foi ser prestada, na sessão de abertura do VII Congresso Nacional de Pessoas Surdas, que decorreu no Fórum Lisboa, enumeram-se conquistas mas também o muito que ainda falta alcançar nesta demanda por direitos e oportunidades iguais.

Cumprem-se este ano duas décadas sobre o reconhecimento da LGP pela Constituição da República Portuguesa, conquista para a qual deu o seu contributo enquanto membro da já extinta Comissão para o Reconhecimento da Língua Gestual Portuguesa. Antes deste importante passo, que realidade se vivia junto da comunidade surda?

Antes da constituição da Comissão para o Reconhecimento e Proteção da Língua Gestual Portuguesa as associações de surdos promoviam o convívio entre os seus sócios surdos e as suas famílias e algumas associações de maior dimensão asseguravam alguns serviços de apoio às pessoas surdas. A Associação Portuguesa de Surdos, fundada em 1958, foi a primeira associação de surdos em Portugal e, para além de constituir um espaço de convívio e partilha de experiências, foi importante na criação de cursos de alfabetização para os seus associados. Os surdos tinham um acesso muito limitado à educação e seguiam sobretudo profissões manuais, onde a sua mestria era reconhecida, mas, infelizmente, na sua maioria eram mal pagos. Com a democratização da sociedade portuguesa, após o 25 de Abril de 1974 e com a entrada na União Europeia, houve uma abertura ao exterior e a possibilidade de promover cursos de formação profissional em diversas áreas, entre elas a formação de intérpretes de LGP e professores de LGP, no final da década de 80 e início dos anos 90. A educação de surdos em Portugal passou por muitas fases que seria impossível descrever aqui. Desde a fundação da primeira escola para surdos e cegos em 1823, pela mão do rei D. João VI, a pedido da sua filha Isabel Maria, passando pelos institutos de religiosas em Lisboa e Porto e pela Casa Pia, até às escolas com alunos surdos que tiveram projetos piloto com a língua gestual na década de 80, e à criação dos núcleos de apoio a alunos surdos no Ministério da Educação, que após o reconhecimento da LGP viriam a ser transformados em unidades de apoio a alunos surdos.

Como viveu este processo, que principais obstáculos teve esta comissão que enfrentar?

Sou filha de pais surdos e sempre vivi na comunidade surda, por isso sempre tive consciência das dificuldades e barreiras que as pessoas surdas tinham de enfrentar. Comecei a trabalhar como intérprete de LGP em 1980 na Associação Portuguesa de Surdos e acompanhei o processo de criação desta comissão. Foi com grande paixão que participei nos trabalhos e com muita alegria que vi alcançar o principal objetivo, que era o reconhecimento oficial da Língua Gestual Portuguesa. Creio que a energia positiva que se vivia entre os membros da comissão passou de alguma forma para os interlocutores que íamos encontrando nas reuniões de trabalho com diversas entidades oficiais, partidos políticos, grupos parlamentares e foi de tal forma convincente e genuína que venceu as barreiras que existiam na sociedade portuguesa. Talvez o espírito que se vivia, de maior abertura ao Outro e os valores da igualdade de oportunidades, tão apregoados nessa época, tenham também contribuído para quebrar barreiras.

Desde então, que outras importantes conquistas se seguiram no sentido da igualdade de oportunidades das pessoas surdas?

Desde o reconhecimento oficial da LGP na Constituição Portuguesa em 1997, a Comissão continuou a trabalhar para alcançar outros objetivos igualmente importantes. Entre eles passo a destacar três exemplos. A educação bilingue de crianças e jovens surdos (Língua Gestual Portuguesa/Língua Portuguesa), foi finalmente reconhecida e implementada em todo o País através do Despacho 7520/98. Por outro lado, foi reconhecido o direito de os cidadãos surdos terem acesso à informação e à comunicação na televisão, com legislação e protocolos que introduziam a interpretação em LGP e a legendagem nos programas de língua portuguesa (visto que em Portugal, felizmente, os programas estrangeiros já tinham legendas). Em 1998 foi igualmente publicada uma Lei da Assembleia da República que definia "as condições de acesso e exercício da profissão de intérprete de língua gestual portuguesa".

Que importância atribuiu ao papel desempenhado neste processo pela ESE/IPS, que lançou, há também 20 anos, a primeira licenciatura em Tradução e Interpretação de LGP em Portugal?

A ESE/IPS teve um papel extremamente importante ao lançar a primeira licenciatura em Tradução e Interpretação de Língua Gestual Portuguesa. Este ato pioneiro veio valorizar e dar mais visibilidade à língua gestual e à comunidade surda portuguesa, pois foi criada em parceria com a própria comunidade. Os principais obreiros desta iniciativa foram os professores José Catarino Soares, da própria ESE, e José Bettencourt, pela parte da Associação Portuguesa de Surdos, entidade que já possuía uma vasta experiência na formação profissional de intérpretes de LGP.

Foi recentemente homenageada, no âmbito do VII Congresso Nacional de Pessoas Surdas, em Lisboa, enquanto membro da referida comissão. Como é que isso a fez sentir?

Naturalmente que me sinto orgulhosa com esta homenagem, mas sobretudo feliz por poder reviver os momentos e os companheiros desta viagem, que teve um final tão desejado pela comunidade surda portuguesa.

Hoje, que desafios se colocam hoje à comunidade surda - o que é que ainda falta fazer?

Hoje existe uma nova comissão, a Comissão para a Defesa da Língua Gestual Portuguesa, também criada no seio da comunidade surda e que tem muitos novos desafios pela frente. Alguns deles são a criação de um código de recrutamento para a LGP, para lhe dar a dignidade e os argumentos de que necessita para ser tratada como disciplina, como qualquer outra língua, nos ensinos básico e secundário; a profissionalização dos professores de LGP; o direito de todos os surdos a terem intérpretes de LGP em todos os contextos da vida em sociedade, entre eles no âmbito da saúde e ensino superior; e a salvaguarda da igualdade de oportunidades para os cidadãos surdos em todos os contextos da vida em sociedade.

Fonte: Instituto Politécnico de Setúbal

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