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Viva a família surda!
por porsinal     
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Quinta-feira, 09 de Março de 2017 às 18:00:45
A mãe da Fiorella é psicóloga e professora da Universidade Federal de Pelotas Francielle Cantarelli. Ela conta que, assim como a menina, ela e o marido Fabiano também nasceram surdos. Na época, entretanto, o conhecimento sobre o tema era restrito, e ambos tiveram contato com a língua gestual muito tarde: ela com 12 anos e ele com 7 anos de idade.

No fim do ano passado, uma conversa sobre picadas de mosquitos viralizou nas redes sociais. O detalhe que mais chamava a atenção: mãe e filha se comunicavam na Língua Brasileira de Sinais (Libras). A pequena Fiorella tem dois anos e nasceu surda. Ela é protagonista de O Diário de Fiorella, uma página no Facebook criada para compartilhar com outros pais as belas aventuras do desenvolvimento de uma criança surda.

Fiorella nasceu e utiliza Libras desde cedo, não queremos que ela perca oportunidades como nós”, explica. Nesta entrevista Francielle explica que a ideia de falar sobre a maternidade no Diário da Fiorella também foi planeada para que outros pais de crianças surdas possam esclarecer dúvidas e aprender sobre Libras, e conta mais sobre os desafios na educação da filha. 

Você e seu marido são surdos desde o nascimento? Como foi a experiência de vocês com a iniciação à língua de sinais?

Eu nasci surda. Na época, o meu avô Geraldo tinha duas irmãs surdas, e não tinham conhecimento sobre Libras. Eles comunicavam através de sinais caseiros (sinais e gestos). Quando eu tinha menos de um ano, o meu avô desconfiou da minha surdez. A minha mãe Fátima não tinha aceitado, pois, na época, não havia muitas informações sobre Libras, associação dos surdos, identidade surda... Então, demorou para me levar aos médicos. Fiz os testes, com mais ou menos um ano e meio, e os médicos confirmaram a minha surdez. Foi um momento difícil para os meus pais, que não aceitavam e choravam muito. Os médicos não informaram nada sobre Libras aos meus pais, eles informaram que eu precisava aprender a falar com fonoterapia, usar aparelhos auditivos, entre outros, mas não Libras.

Quando tinha 12 anos de idade, a minha tia Janie descobriu que existe o mundo surdo, descobriu a associação de surdos de Pelotas, e conheceu algumas pessoas surdas. Ela decidiu levar-me para conhecer a associação de surdos. Eu não esperava que tivessem surdos no planeta. Lá descobri que tem outros surdos e conheci adultos surdos. Fiquei emocionada. Consegui entender o que eles sinalizavam, entendia quase tudo. Comecei a aprender Libras. Foi meu segundo nascimento! Pena que aprendi Libras aos 12 anos de idade. Foi tardio para mim, porém, consegui aprender e comunicar-me com pessoas surdas e ouvintes.

Fabiano também nasceu surdo, porém não tem certeza do motivo, pois os seus pais são primos em segundo grau e ele tem uma irmã mais velha (Magda) que também é surda (ele tem quatro irmãos e é o mais novo). Os seus pais descobriram a surdez da Magda, levaram-na a médicos e eles informaram que ela precisava de aprender a comunicar. Então ela começou a frequentar escolas específicas para alunos surdos. Na época, não tinha muita estrutura, porém ela começou a comunicar através de sinais. Muitos anos se passaram e Fabiano nasceu. Quando os meus sogros descobriram a surdez dele, os médicos informaram diferente, e disseram que ele não podia usar gestos, e precisava aprender a oralizar. Eles concordaram e obrigaram-no a aprender a falar. Fabiano tinha sete anos de idade quando Magda o levou para a associação de surdos de Pernambuco. (Ele nasceu em Alagoas e cresceu em Pernambuco). Nessa idade, ele aprendeu Libras e os seus pais perceberam que ele se desenvolveu bastante com a língua de sinais. Decidiram aceitar a Libras.

Então, percebe-se que eu aprendi Libras aos 12 anos; e Fabiano, aos sete anos. Nós concluímos que foi tardio para nós. Fiorella nasceu e utiliza Libras desde cedo, não queremos que ela perca oportunidades como nós. Nós apresentamos aquisição tardia e ela não.

A Fiorella também nasceu surda?

Sim, a Fiorella também nasceu surda. Quando ela tinha menos de um dia da vida, uma enfermeira me informou que precisava fazer teste de orelhinha. É lei da área de saúde, então aceitei, claro. Ela fez o teste de orelhinha e o resultado: não passou. Eu não fiquei surpresa, porque era comum no primeiro teste “não passar”. Ela pediu para repetir o teste quando Fiorella tivesse um mês. Quando completou um mês, e nós levamo-la à clínica, e o teste de orelhinha deu novamente negativo.

Eu comecei a desconfiar se ela era surda ou ouvinte, porque, quando tinha barulho em casa, ela ficava assustada, por isso achei que era ouvinte, pois ouvia o barulho e ficava assustada. Com três meses de vida, a levei para outra clínica para realizar o teste de novo. Deu negativo, e a médica achou melhor fazer outro tipo de teste mais profundo, que se chama “Bera”. Com quatro meses ela fez e o resultado indicou surdez profunda. Pulamos de alegria! Começamos a mencionar “Viva a família surda”.

Sinceramente, não esperávamos este resultado. Hoje, ela tem 25 meses de idade, é uma menina muito esperta e inteligente, sabe muitos sinais e sinaliza muitas frases. Não vemos diferença entre crianças surdas e ouvintes.

As mães comentam que aprendem a identificar as necessidades da criança pelo choro. Como foi a sua relação com a Fiorella nos primeiros meses de vida dela?

Acredito que é coisa de intuição e instinto. Sempre sinto que tem alguma coisa errada com a Fiorella: cólica, fome, incómodo, entre outros. Porém o mais importante é ter "ama eletrónica" (nós usamos com câmera e vibração). Como somos pais surdos e como não temos alguém ouvinte que vive connosco, desde o nascimento dela nós adaptamos tudo. Aprendemos muito como identificar os choros, principalmente cólica e incómodo. Nas noites, sempre usamos "ama eletrónica" que vibra quando a Fiore chora.

Os primeiros meses de vida dela não foram fáceis, porque descobri que ela tinha APLV (Alergia à Proteína do Leite de Vaca). Como ela mama no peito, tive que fazer dieta rígida, fiz dieta de leite, derivados, soja, ovo, castanhas, entre outros. Até um ano de idade dela, como falei, que todas as mães conseguem identificar os choros, Fiore chorou muito nos primeiros dias da vida e eu logo percebi que tinha alguma coisa errada. Levei aos médicos, então eles confirmaram que Fiore tinha APLV. Comecei a fazer dieta por causa de amamentação, e ela melhorou e os choros diminuíram.

Quando ela nasceu, a minha mãe ficou comigo uns dias para me ajudar a organizar as coisas, ajudar nas limpezas e comidas, mas percebeu que eu não precisava mais da ajuda dela (ela ficou só quatro dias). Eu me adaptei bem com Fiore e o meu marido Fabiano ajudou muito.

Só que ficamos tristes, porque conheço várias mães e pais surdos que sempre dependem das famílias ouvintes para ajudar. Famílias ouvintes moram com eles só porque se sentem inseguros, acham que pais surdos não sabem cuidar ou não escutam o choro de bebé. Para nós, tem adaptação sim, só tem que comprar "ama eletrônica" que vibra e câmera para ver. Muitas coisas podem ser adaptadas e não é necessário ter família ouvinte para ajudar. Preferimos ser pais surdos independentes.

A partir de que momento já foi possível estabelecer com a Fiorella algumas relações de comunicação a partir da língua de sinais?

Desde recém-nascida. Quando a Fiorella nasceu, só me comuniquei com ela através da Libras, pois é minha primeira língua. Não importava se Fiore fosse ouvinte ou surda. Libras é a primeira língua dela também. Acredito que todos os bebês surdos - ou ouvintes de pais surdos - precisam utilizar Libras, primeira língua deles. Então todos os pais surdos se comunicam com bebês ouvintes e surdos, desde cedo.

Como Fiore frequenta o programa de estimulação precoce na escola dos surdos em Pelotas, tem colegas surdos. Alguns não sabem Libras, só porque os pais não aprendem Libras para comunicar, provavelmente aquisição tardia para eles também, como eu e meu marido. Então desde bebé os pais devem utilizar Libras para se comunicar.

O problema é que muitos médicos confirmam a surdez de bebés e crianças surdas e os pais só sabem chorar. Os médicos não nos informam sobre Libras, só informam sobre fonoterapia, aparelhos auditivos, implante coclear. Mas Libras? Nada! Então bebês e crianças crescem e não comunicam nada, não chegam ao desenvolvimento certo.

Em um dos posts do Facebook, você conta que a Fiorella está aprendendo que o símbolo do nome dela não “funciona” para identificar qualquer pessoa, e que o nome é formado pelas letras. Como identifica cada fase do desenvolvimento dela, para inserir níveis de dificuldade maiores em relação à linguagem?

Você sabe que as pessoas podem ter sinal em Libras? Dar um sinal para uma pessoa é como receber o nome de batismo. Então cada pessoa tem seu sinal. Só soletra (datilologia, ou seja, alfabeto manual) se for necessário, mas para identificar a pessoa é necessário ter sinal (batismo), pois a datilologia faz parte do português. A Fiore ainda não aprendeu em português (escrita), por isso comunica em Libras e daqui a pouco já vai começar a aprender português como segunda língua.

Quais foram as maiores dificuldades de vocês até agora, quando se trata da comunicação com a Fiorella? E quais foram as maiores dificuldades dela durante a aprendizagem?

Não tenho dificuldade de comunicar com ela. Ela utiliza Libras como eu. Libras é nossa primeira língua, língua nativa. Então o que tenho de dificuldade? É comunicar com pessoas que não sabem Libras. Por exemplo, sempre que a levo ao médico e tenho que chamar intérpretes e tradutores para que ajudem na comunicação entre eu e os médicos. Agora, Fiore começa a conversar com pessoas. Percebe que as pessoas não respondem. Eu tive que explicar para ela que as pessoas não sabem Libras. Não sei se ela compreendeu, mas, mesmo assim, explico-lhe que há pessoas que não sabem Libras e outras pessoas que sabem.

Isso me incomoda: uma vez, Fiore ficou doente na madrugada, tive que a levar ao hospital. A secretária demorou para entender, e o médico não queria me atender porque eu não tinha alguém ouvinte para acompanhar. Sempre preciso levar alguém ouvinte para me acompanhar?! Claro que não! Sou mãe independente, nunca precisei de alguém para me acompanhar. Infelizmente, muitas instituições como hospital não têm estruturas para atender pacientes surdos. Eu e Fiore nos comunicamos muito bem, mas a sociedade não se comunica bem com a gente. Ainda existe a barreira de comunicação.

A Fiorella está em idade de ir para a escola? Como é essa experiência? E como está a acontecer a socialização dela com as outras crianças surdas (e com aquelas que não são surdas)?

No momento, ela não está ainda a ir para a escolinha, só frequenta o programa de estimulação precoce. Infelizmente, não tem escolinha específica para crianças surdas aqui em Pelotas, muitos estados não têm. No momento, eu e Fabiano nos preocupamos com a educação dos surdos. Queremos que Fiore tenha uma educação boa e de qualidade, já que eu cresci nas escolas sem acessibilidade e Fabiano também cresceu sem acessibilidade. Aqui em Pelotas, não há escola bilíngue para surdos, mas há escola especial para surdos. A escola bilíngue e a escola especial são bem diferentes e com métodos diferentes. Na escola especial, a metodologia é mais antiga. Os professores não são fluentes em Libras, não têm disciplina de Libras (depende das escolas). Então, procuramos uma escolinha para Fiore - e ela precisa ir para o  ano que vem, pois pretendo voltar ao trabalho.

Encontrámos uma escola que a aceita, que quer que a professora aprenda Libras para se comunicar com ela, também quer criar algum projeto para os colegas aprenderem Libras e comunicarem com a Fiore. Nós gostamos muito da proposta, porém, mesmo assim, sempre nos sentimos inseguros. Não queremos ver a Fiore se perdendo no mundo como eu e meu marido nos perdemos muito na época.

Sempre a levámos para instituições onde há crianças ouvintes. Percebemos que ela se integra bem com eles, provavelmente na escolinha ela vai-se integrar bem, só que vai precisar se adaptar e perceber que os colegas são ouvintes.

No programa de estimulação precoce, onde ela frequenta (desde os seis meses), há duas professoras (uma surda e uma ouvinte) e dois colegas surdos. Ela integra-se muito bem com eles. Adora ir para conversar, brincar, fazer as atividades com colegas e professoras, pois este programa tem estruturas para os surdos. No futuro, não sabemos se ela irá ser matriculada na escola dos surdos ou escola regular, pois depende dela. Se ela se sente bem com colegas ouvintes, então vai para a escola regular; se ela prefere estudar com surdos, irá para a escola dos surdos e nós respeitamos a decisão dela.

De onde veio a ideia do Diário da Fiorella? Vocês pensam que podem ajudar outros pais - talvez, em especial, aqueles que não são surdos, mas tem um bebê surdo ou com deficiência auditiva - a melhorar as experiências de infância das crianças a partir da língua de sinais?

Quando decidimos criar a página O diário da Fiorella, confirmámos que a Fiore é surda. Começámos a pesquisar e procurar os artigos e textos sobre bebés e crianças surdas e pais surdos. Não encontramos muitas informações. Sabemos que, aqui no Brasil, não é comum ter filhos surdos de pais surdos (acho que só tem 5% de filhos surdos de pais surdos e 95% filhos surdos de pais ouvintes). Então percebemos que era necessário abrir uma página para trocar ideias: como podemos comunicar com filhos surdos? Como podemos ensinar? Como podemos auxiliar a desenvolver? Nosso objetivo é ter educação para surdos como crianças ouvintes. Queremos ensinar a Fiore e queremos ver o desenvolvimento dela igual outras crianças ouvintes. Única coisa diferente é ter Libras.

Também recebemos muitas informações sobre como estimular crianças surdas. Alguns me pediram para colocar implante coclear, aparelho auditivo, terapia, entre outros. Começamos a procurar informações corretas até decidirmos que a Fiore irá aprender Libras até se sentir pronta e irá aprender a falar com fonoaudiologia. Provavelmente, daqui a um ano ou dois irá fazer terapia. Ela tem seu tempo. Libras é a primeira língua dela.

Fonte: Revista Arco

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