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Entrevista com Josélia Neves
por porsinal     
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Quarta-feira, 03 de Outubro de 2012 às 00:19:07
Licenciada em Línguas e Literaturas modernas pela Universidade do Porto e um doutoramento em Estudos de Tradução, desde 2000 tem vindo a desenvolver projectos na área da comunicação acessível com diferentes parceiros a trabalhar nos domínios da comunicação social, produção fílmica, artes performativas, turismo, museologia e na educação. Josélia Neves fala à plataforma porsinal sobre comunicação inclusiva, acessibilidade para surdos e a importância da Língua Gestual.

Em que projetos está neste momento envolvida no âmbito da acessibilidade e da comunicação inclusiva?

Todos os projetos em que estou envolvida neste momento acontecem no âmbito do trabalho em curso no Instituto Politécnico de Leiria (IPL). Neste contexto, os projetos enquadram-se numa jovem unidade de investigação, o iACT – Unidade de Investigação Inclusão e Acessibilidade em Ação – que congrega investigadores de vários domínios, entre os quais investigadores interessados em questões relacionadas com a surdez. O meu trabalho tem estado ligado sobretudo ao estudo de soluções de comunicação inclusiva e multissensorial, trabalhando de um modo particular com a surdez e com a cegueira.

Tem tido uma forte intervenção nas áreas da inclusão e acessibilidade da pessoa surda. Enquanto especialista na área, quais as maiores dificuldades com que se tem debatido?

As dificuldades que tenho encontrado são a três níveis e creio que as partilho com outros investigadores: são dificuldades de ordem pessoal, de ordem logística ou técnica e de ordem social. A título pessoal, a minha maior dificuldade prende-se com o facto de eu não dominar a Língua Gestual Portuguesa (LGP) e, como tal, tive e continuo a ter dificuldade em interagir com os meus agentes, com o meu sujeito/objeto investigativo. A nível logístico e técnico, o facto de haver ainda pouca investigação neste domínio em Portugal levou a uma enorme dificuldade em encontrar bibliografia de apoio ao meu trabalho, o que me obrigou a procurar referências bibliográficas de sustentação teórica fora do contexto português. Isto revela uma lacuna séria no domínio da investigação sobre questões ligadas à surdez em Portugal e, de um modo particular, naquilo que me toca diretamente, uma grande lacuna na área da comunicação, interação e mediação entre pessoas ouvintes e pessoas surdas. Por outro lado, encontrei e continuo a encontrar – cada vez menos, felizmente – dificuldades de ordem social; isto porque, não dominando eu a LGP e enquanto investigadora, tive alguma dificuldade em compreender o outro enquanto minoria social – fechada por força das circunstâncias. E, se por um lado, eu não sabia interagir com o meu sujeito, também percebi que esse meu sujeito – a pessoa surda – duvidou das minhas intenções enquanto investigadora. Portanto, esta dificuldade em encarar o meu sujeito/objeto de estudo com objetividade – e sem o fator emocional pelo meio – resulta do facto de haver contingências sociais que dividem estes dois universos: o universo da pessoa surda e o universo do investigador ouvinte. Obviamente que nada disto seria um problema se eu fosse uma investigadora em causa própria, isto é, se eu própria fosse surda. Aí, provavelmente, reside a maior lacuna da investigação sobre questões ligadas à surdez, e não necessariamente sobre a surdez – a condição física e psicofisiológica –, mas sim sobre questões correlacionadas, tais como educação, comunicação e interação. Haveria muito a lucrar se os investigadores viessem, eles próprios, da comunidade Surda. Se assim fosse, estariam esbatidos uma série de problemas que eu, enquanto investigadora ouvinte não pertencente à comunidade surda, acabei por enfrentar. Em suma, foram grandes condicionantes ao meu trabalho, o não domínio da língua gestual portuguesa; a falta de conhecimento dos códigos desta comunidade; as questões de ordem mais científica e o facto de não ter bibliografia, de não haver um historial e um acervo teórico de sustentação para investigação nestes domínios em Portugal.

Tendo sido a LGP reconhecida há mais de dez anos em Portugal, como se explica o facto de não haver tanta investigação ou publicações como deveria haver? Abordou a necessidade de incluir investigadores surdos no próprio processo de investigação. Que condições há ou deveria haver nas próprias universidades para facilitar essa acessibilidade, uma vez que a inclusão desses investigadores teria de ser feita por ouvintes?

Estamos perante dois problemas completamente distintos. Por que é que há tão pouco? O haver tão pouco é o estado natural do início de um percurso. Não se pode esperar que haja investigação sobre uma realidade que nem sequer é reconhecida ou que haja investigação em número considerável e com pujança suficiente, quando o próprio reconhecimento da LGP é tão recente. Enquanto objeto, enquanto tema de estudo, estas questões são recentes no nosso país. Podem não ser tão recentes em países como a Inglaterra, e refiro-me por exemplo à minha área específica de investigação – a legendagem para surdos –, onde, desde que há televisão, há legendagem para surdos e como tal há investigação na área. Anos 40! Nós começámos a sério já no século XXI. Portanto, este atraso em relação à tomada de consciência deste tema como digno de estudo, obviamente faz com que, no momento em que alguém, como eu, arranca para este trabalho em 2000, não haja historial. Há um historial pequeno que se está a construir neste momento. Nós temos o privilégio de estar a construir os primeiros tratados teóricos sobre questões relacionadas com surdez em Portugal. Portanto, a culpa não é dos investigadores. A culpa é do sistema em que nós vivemos, do contexto em que nós vivemos, que não viu, até muito recentemente, este assunto como merecedor de algum trabalho de investigação.

A resposta à segunda parte da sua pergunta. Para termos investigadores surdos temos de ter pessoas surdas a chegar à universidade e a ir para além de uma licenciatura. Os nossos alunos surdos, durante muitos anos, não chegaram à universidade. Agora, sim. Ninguém os “ouviu”, durante muitos séculos, em Portugal. Começámos a “ouvi-los” e a vê-los agora. Só agora é que as universidades se estão a preparar para receber estes alunos. Enquanto as universidades não tiverem intérpretes de LGP para apoiar estes alunos, eles não vão acabar o curso superior com sucesso, porque os nossos alunos, mesmo os que chegam à universidade, trazem graves lacunas de leitura e de escrita em língua portuguesa. O sistema educativo português ainda não se encontrou, no que diz respeito à educação da criança surda. Só agora se respeita a LGP como a língua natural desta comunidade. Só agora se quer fazer uma educação verdadeiramente bilingue. Quantas dezenas de anos precisamos de ter ainda de formação séria, para que os nossos alunos surdos cheguem à universidade com competências de escrita suficientes para garantir o sucesso? Portanto, garantir condições na universidade não chega. Se nós queremos ter um dia cientistas surdos, se queremos ter pessoas surdas a sair da universidade com sucesso, o grande trabalho, o nosso grande investimento deve estar numa intervenção precoce, isto é, antes da escola primária, no berço, no lar, no apoio às famílias com crianças surdas e, de um modo particular, no ensino básico. É aí que a criança surda se faz doutor. É aí que o nosso sistema tem tudo a mudar.

Quais são as maiores dificuldades que o cidadão surdo encontra no seu relacionamento com os organismos públicos? O que está a ser feito para minimizar essas barreiras?

Por força de questões linguísticas, a pessoa surda tem vivido ao longo dos anos em isolamento. O peso, as dificuldades que eles sentem enquanto adultos, advêm de uma educação, eventualmente, menos eficaz. Não só as crianças muitas vezes nascem em famílias ouvintes e têm, por isso, um contacto tardio com uma língua natural que faça sentido na sua vida quotidiana, como o sistema educativo não prepara os surdos para uma vida ativa. Já os organismos públicos, também não estão preparados para os acolher, para os receber. Quando falo em organismos públicos refiro-me a todos os que fazem parte da vida de um cidadão de pleno direito. A pessoa surda tem dificuldade em comunicar porque não está na posse da língua oral e, muitas vezes, não está na posse dessa língua na sua forma escrita. Por outro lado, os organismos públicos não estão preparados, nem estão a fazer o esforço necessário para encontrar soluções. E às vezes as soluções são fáceis. A solução pode passar apenas por ter um telefone para ligar à linha de interpretação à distância e encontrar uma mediação que não tem de existir fisicamente no local. E como dizem os portugueses, isto é uma “pescadinha de rabo na boca”. Não tem, não usa, não pede: não vai ter! Ora, a culpa não está nem do lado da pessoa surda, nem do lado dos organismos. A culpa é repartida. A pessoa surda tem de dizer que existe. Tem de dizer o que quer e o que precisa, para que os organismos públicos possam criar as condições e assim responder às suas necessidades. Por outro lado, os organismos públicos têm de dizer à pessoa surda: – Nós temos soluções. Venha usá-las! É este ciclo que ainda não está oleado no nosso sistema. Portanto, há aqui todo um trabalho a fazer. Começa no berço, continua na escola, é da responsabilidade da comunidade surda e é da responsabilidade de toda a comunidade portuguesa. Há que assumir que há um grupo de pleno direito que merece soluções específicas.

O Museu da Batalha (MCCB) é o primeiro museu totalmente inclusivo em Portugal. Como principal responsável pela componente de acessibilidade deste projeto, considera possível, a médio prazo, estender este conceito a outros museus e outros espaços culturais ou de lazer em Portugal, tais como salas de teatro, de cinema, etc.?

Nada é alguma vez acessível a todos. Esse conceito é em si mesmo perigoso. Mas sim, o MCCB procura ter uma resposta para cada visitante que lá vai, independentemente do seu perfil pessoal. Não duvido que é possível, em todo o lado, na vida quotidiana, e muito em particular nas áreas do lazer e do turismo, criar condições de acessibilidade para qualquer cidadão. Digo até que é mais fácil arranjar soluções em contextos muito específicos – num museu, num teatro ou num cinema –, do que pensar em soluções para organismos públicos. Porque esse tipo de soluções obriga a intervenções de base que têm repercussões de grande escala, enquanto que isto – como acontece no MCCB – são ações muito pontuais. Aquilo que se fez no Museu da Batalha mais não é do que um exemplo do que pode ser feito em qualquer museu do país. Quem diz museu diz qualquer espaço cultural ou qualquer momento em que se abre as portas a uma aprendizagem lúdica, ao prazer de aprender pelo prazer de viver, que é aquilo que deve acontecer nos nossos museus, nos nossos teatros, nos nossos parques de diversão. Agora, se me pergunta: é fácil isto acontecer noutros museus? É preciso reunir condições e essas condições são de vários tipos. É preciso haver vontade política. É preciso que quem manda perceba que ao fornecer serviço de acessibilidade estará a potenciar um encaixe de verbas. Se eu tenho um museu, uma peça de teatro ou um espetáculo de cinema com condições especiais de acessibilidade, eu vou ter mais clientes. Clientes que estariam à partida excluídos daquela experiência! Então, enquanto agente político eu devo perceber que não estou a fazer caridade. Estou a investir numa solução que vai ter um retorno efetivo que, por um lado, é um direito que eu estou a garantir para o cidadão com necessidades especiais, mas, por outro, é um ato inteligente, pois estou a potenciar este meu espaço para que ele se diferencie dos demais e isso será um elemento agregador e um elemento de riqueza para o meu património. Para além desta vontade política é preciso know-how. Eu posso querer muito fazer qualquer coisa mas é preciso também saber fazer e, neste caso, para que haja um museu acessível, ou qualquer outro espaço ou momento da vida cultural acessível, é preciso encontrar os técnicos que saibam criar e dar soluções para os problemas. Não havendo o conhecimento necessário dentro dos espaços, já existem técnicos especializados em todo o país. Se não está ao lado, está mais longe.

Outra condição que é absolutamente essencial… não vale a pena ter se não se divulga. Podemos ter uma solução fabulosa dentro de um espaço, mas se as pessoas não souberem que ela lá está, não a vão usar, e todo aquele esforço e dinheiro não é rentabilizado. Por outro lado, para além de divulgar, temos de educar uma “clientela” que não sabe utilizar estes espaços. Não está habituado porque nunca teve acesso! Então, quem neste momento cria soluções de acessibilidades em contextos culturais tem a responsabilidade acrescida de educar novos públicos. As pessoas surdas, as pessoas cegas, possivelmente nunca terão ido a museus, simplesmente porque “não havia lá nada” para eles e, como tal, não sabem viver a experiência museológica. Se calhar, nunca foram a um teatro, porque nem lhes passou pela cabeça que o que lá se passa lhes dissesse respeito! Portanto, para termos mais “museus da Batalha” teremos de apostar em projetos concertados, em que juntamos a vontade politica e económica, os técnicos especializados que façam o trabalho, uma belíssima equipa de comunicação para dar a conhecer essa oferta e um enorme empenho na componente “educação”, para ensinar as pessoas a utilizar essas soluções e a fruir daquilo que foi feito para elas. Ou seja, é possível “fazer” em Portugal? É. “Faz-se” em Portugal? Sim. O MCCB não é o único. Há muito trabalho, e muito bem feito, em muitos museus, muitos teatros, em muitos cantos de Portugal. Mas muito desse esforço continua desconhecido por muitos de nós.

Qual tem sido a abertura dos media e audiovisuais à implementação de mecanismos ou técnicas que permitam uma maior acessibilidade dos cidadãos surdos? Como perspetiva o futuro?

Em primeiro lugar é importante definirmos o que é que entendemos por meios audiovisuais, porque estamos perante uma panóplia de media e cada uma tem o seu problema. Por um lado, temos a televisão, e neste contexto estamos a considerar a TV de sinal aberto, a TV paga – por cabo e satélite – e temos ainda as novas “televisões”, que são aquelas que chegam até nós através da Internet e das plataformas móveis. Todos estes meios trazem problemas e exigem soluções diferentes, levantando também questões diferentes. Este é um grande grupo, a que vou chamar “televisão”. Existe depois o outro grande universo, o do DVD, que é um universo em extinção. São os dinossauros tecnológicos do presente. Temos, ainda, uma outra área mista – a do mundo multimédia – em que encontramos os vídeolivros, onde eventualmente vamos introduzir os videojogos e toda uma componente multimédia com interação, que pode estar ou não ligada à Internet. Nós estamos a viver um momento de convergência entre os diferentes media e tudo o que eu possa dizer acerca de um qualquer tipo de media pode eventualmente cruzar-se com os outros media. Mas vamos ao básico.

Comecemos então pela TV de sinal aberto, os nossos quatro canais: RTP1, RTP2, SIC e TVI. Nós sabemos que a RTP1 tem, enquanto entidade pública, uma responsabilidade acrescida com deveres para com o cidadão português e, aí, parte-se do princípio que há uma preocupação real em fornecer soluções de acessibilidade, impostas por Lei – pela Lei da TV e também pelo protocolo assinado entres os vários canais –, e sabemos que a RTP está a fazer esforços efetivos para dar à comunidade surda aquilo de que ela precisa. Aliás, é com agrado que digo que a RTP estará mesmo à frente da BBC, no que toca à oferta de língua gestual. Proporcionalmente, temos mais língua gestual na nossa RTP do que a BBC oferece, porque esta apostou essencialmente na legendagem, enquanto em Portugal, por razões políticas, económicas, de facilidade técnica e outras foi mais fácil fornecer interpretação gestual do que legendagem para surdos nos nossos canais de sinal aberto. Houve um maior investimento na oferta da interpretação gestual do que houve na legendagem para surdos e, agora, na audiodescrição para cegos. Acho, no que toca à TV pública, que neste momento não nos podemos queixar da quantidade no que toca ao acesso à informação por parte de telespectadores surdos. O ideal seria atingir 100% de acesso a todos os conteúdos televisivos, mas sabemos que não podemos lá chegar (ainda!). No entanto, o que me preocupa mais é a qualidade. Não me posso pronunciar sobre a qualidade da interpretação gestual. Tenho a certeza que aquele quadrado é demasiado pequeno. Quanto a isso não tenho dúvidas. Quanto à qualidade da interpretação não me posso manifestar. Posso manifestar-me, sim, em relação à qualidade da legendagem. Infelizmente, a legendagem que temos em Portugal, neste momento, ainda não atingiu os patamares de qualidade que nós quereríamos que tivesse. E, de modo particular, o que considero de fraquíssima qualidade são as legendas geradas por computador, as legendas eletrónicas que não são mediadas pelo ser humano. Aí, basta olharmos para as legendas via teletexto que recebemos nos telejornais, para percebermos que ainda há muito caminho a percorrer. É importante que se passe a ter legendas que se consigam ler efetivamente, porque muitas das legendas que nos são dadas não se conseguem ler… nem mesmo por pessoas ouvintes, e muito menos por pessoas surdas. Agora, tendo nós tantos canais pagos, esses outros canais não têm legendagem para surdos, e nem me refiro aqui à audiodescrição para cegos, porque aí a lacuna é total. Obviamente tenho de perguntar: e todos os outros canais pagos? A pessoa com deficiência sensorial (surdez ou cegueira) só tem direito a usufruir dos quatro canais nacionais de sinal aberto e apenas às vezes? Está na hora de os operadores que disponibilizam programas nos meios comerciais refletirem e perceberem que há aqui um potencial de negócio que eles ainda não exploraram totalmente. Portanto, no que toca à TV, este é, sem dúvida o momento ideal para a mudança: a Internet potencia novas soluções. E agora com a TDI, a televisão interativa e de alta definição, etc., espero que haja mudanças para melhor. Podendo haver imagem sobre imagem, espero que libertem o intérprete da sua caixa espartilhante, que lhe deem tamanho de corpo inteiro ou que possa (por vontade do recetor) ocupar todo o ecrã, porque cada pessoa tem direito a aceder à informação da melhor forma possível e a tecnologia já o permite fazer.

Quanto ao DVD, este está a morrer e o investimento é nulo. Não vale a pena investir neste mercado porque o retorno não é significativo.

Se pensarmos, agora, numa outra vertente que está aí por explorar, os vídeo livros, os videojogos, toda uma gama de material ludopedagógico com enorme potencial interativo – está muito pouco feito. Temos pouquíssimo material lúdico ou didático com língua gestual. Pouquíssimo material preparado para pessoas surdas com necessidades especiais poderem utilizar. Este é um enorme mercado por explorar.

Colaborou recentemente com nomes da música nacional, como Boss AC e The Gift, e à escala global como os U2. Como se pode transformar a música em algo percetível ou acessível para o cidadão surdo ou, dito de outra forma, qual é o interesse de um surdo em ir a um concerto?

A pessoa surda tem todo o interesse em ir a um concerto. Por ser surda não deixa de “ouvir”. Não tem é… audição através de este aparelho ao qual chamamos ouvidos e orelhas. Ele ouve através das vibrações. Ele ouve através do seu corpo. Mas, acima de tudo, as pessoas não vão a estes concertos apenas para ouvir. Porque para ouvir, ouve-se em casa! As pessoas vão a estes concertos para partilhar com outros a alegria e a experiência do “ao vivo” e de estar ali perante o seu ídolo, perante alguém que é respeitado e querido pelo grupo. Portanto, mais importante do que a fruição estética ou artística será a vivência social. Quem participa num evento vai poder estar no café com os colegas no dia seguinte, a debater a atmosfera fantástica que foi vivida no concerto, por exemplo de os The Gift, no dia anterior. E mais, quem viu a abertura solene dos jogos olímpicos deste ano, em Londres, apercebeu-se da riqueza que é a diversidade humana e de como a surdez não é inibidora de nada. A pessoa surda canta, a pessoa surda ouve com o seu corpo e a pessoa surda produz música. Esta possibilidade de participar em concertos e conviver de forma direta – com nomes como o Boss AC, como os The Gift, como a Paula Teixeira, e como tantos outros que já estão a trabalhar pela inclusão – é fundamental para uma cidadania plena. É permitir que estes jovens, estas pessoas, acompanhem as namoradas, as famílias, e que vivam aquilo que faz com que a nossa vida seja boa. Momentos de puro prazer, de lazer, de partilha, de vivência estética, de vivência social e cultural. Porque ouvir, ouvimos todos. Cada um à sua maneira! Viver a música todos podem viver e os surdos adoram a música. Portanto, só podem querer partilhar a experiência musical!

Ao nível da comunicação inclusiva e das acessibilidades para a comunidade surda, que tipo de colaboração e parcerias se têm desenvolvido entre os países de língua portuguesa, nomeadamente entre Portugal e Brasil?

É fundamental que estes dois países irmãos trabalhem em conjunto. O Brasil tem um historial enorme, pelo tempo e pela dimensão do próprio país, e tem um potencial de investigação incrível neste domínio. Nós, Portugal, pela nossa dimensão, pela história da nossa LGP e pela história dos surdos no nosso país, temos um menor peso, quer em termos de conhecimento quer em termos de intervenção nesta área. Portanto, nós temos tudo a ganhar em trabalhar em conjunto. Não nos podemos é esquecer que estamos perante duas realidades linguísticas diferentes. Não só no que diz respeito à própria língua portuguesa, que é efetivamente “diferente” como de modo particular no que toca às línguas gestuais. A LGP é diferente da LIBRAS, e isso será sempre um fator a ter em conta. Projetos e esforços conjuntos, sem dúvida que podemos e devemos desenvolvê-los. É curioso que o meu próprio trabalho de investigação tenha nascido aqui em Portugal com uma telenovela brasileira: a legendagem para surdos da telenovela “Mulheres Apaixonadas” que passou num canal de televisão português.

Já que é um assunto que divide opiniões e que tem estado muito em voga, qual a sua opinião relativamente aos implantes cocleares?

Faltavam os implantes cocleares (risos)! Essa é uma questão muito delicada, porque o implante coclear é uma janela que se abre para o som, mas também pode ser o fim da sanidade mental de quem o coloca e o fim do sentido de pertença. Não me posso esquecer de um dia em que um pai surdo me disse: “Eu sou pai de duas crianças surdas, graças a Deus!” Perante tal comentário e ao estar a viver a experiência da surdez dentro da minha própria casa, questionei-me muito na altura e levei algum tempo a compreender aquilo que ele me estava a dizer. Só um pai surdo com filhos surdos conseguem criar uma família surda e, assim, entrar na comunidade Surda, com aquilo que é a Deaf Way, a Deaf Life.

Ao introduzirmos um implante coclear nós estamos a forçar a pessoa a entrar no mundo dos ouvintes, quando possivelmente seria melhor para essa pessoa continuar a viver no universo Surdo. Mas também aí se vive no plano das hipóteses, pois nunca sabemos o que é melhor ou não quando se projeta no futuro.

A questão que me coloco mais nem é o colocar ou não colocar o implante. É o direito à escolha. Uma vez que o implante é essencialmente questionado perante a surdez de uma criança, é uma escolha dos pais e nunca a escolha do próprio. Relativamente ao implante coclear, sabemos que quanto mais cedo for feito, maior hipótese de eficácia ele tem, mas a pessoa pode não querer ter esse implante ou esse implante pode não ser a melhor solução para a sua vida. Por isso, esta é uma questão extremamente delicada! Uma escolha que será sempre individual e como tal só pode ser respeitada.

Nota biográfica

Josélia Neves é licenciada em Línguas e Literaturas modernas (português-inglês) pela Universidade do Porto. Tem um mestrado em Estudos Ingleses pela Universidade de Aveiro  e um doutoramento em Estudos de Tradução, com uma tese sobre Tradução Audiovisual: Legendagem para Surdos, pela Universidade de Surrey Roehampton, em Londres.

Lecciona, desde 1995, no Instituto Politécnico de Leiria onde introduziu a disciplina de Tradução Audiovisual. Ao longo dos últimos anos tem também leccionado como professora convidada na Universidade de Coimbra, no âmbito dos Cursos de Mestrado e de Doutoramento em Estudos de Tradução. Colabora ainda em cursos de Mestrado e de Doutoramento em várias Universidades estrangeiras.

Presentemente é bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia para a realização de um pós-doutoramento sobre Comunicação Inclusiva em Contexto Museológico no Imperial College London e na Universidade de Aveiro.

Publicou dois guias práticos para a criação de materiais acessíveis – Vozes que se Vêem. Guia de Legendagem para Surdos e Imagens que se Ouvem. Guia de Audiodescrição.

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