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Ana Raquel Oliveira Lima
Ana Raquel Oliveira Lima
Intérprete de Língua Gestual Portuguesa
Os imprescindíveis mais prescindíveis
Inserido Terça-feira, 10 de Fevereiro de 2015
Autor: Ana Raquel Oliveira Lima
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A origem deste artigo decorre da minha vida profissional enquanto Intérprete de Língua Gestual Portuguesa e da instabilidade vivida por mim e pela maioria dos profissionais com quem partilho esta apaixonante profissão. Somos considerados por muitos como imprescindíveis para a verdadeira inclusão das pessoas surdas mas, na verdade, acabamos sempre por ser os mais prescindíveis.

Os Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa são profissionais com formação específica em Língua Gestual Portuguesa, maioritariamente licenciados pela Escola Superior de Educação de Coimbra, Setúbal e Porto.

O sonho de muitos, incluindo o meu, começou com as primeiras aulas práticas numa destas escolas, onde mergulhei num mundo visual no qual as mãos se mexiam numa dança harmoniosa de gestos e expressões faciais que, no momento, a poucos fazia sentido. Descoordenadamente tentava imitar a professora. Alguns, muitos, dos meus colegas surdos com uma bagagem imensa, com uma riqueza linguística admirável ajudavam-nos com uma paciência enternecedora, outras vezes soltavam gargalhadas sonantes por tamanhos disparates. Vi-os desprender de muitos sem entender o porquê e com o receio de um dia ser eu mesma, até que compreendi que apenas insistiam com os que tinham interesse em os ouvir no silêncio que era deles e agora também meu. Foi e continua a ser maravilhoso esta aprendizagem que nos enriquece, nos faz crescer e pertencer ao mundo das mãos que falam.

Cresci com alguns colegas que se licenciaram em Interpretação, tal como eu, vários formaram-se na via de ensino, são Professores e outros, muitos, são Desempregados. Uns por opção, outros sem opção têm vidas adiadas. Mesmo os empregados têm essa vida adiada pela cor do papel verde que têm de emitir ao fim do mês, com poucas certezas de quando surge uma seta verde no extrato bancário. Também os há, muitos, com contratos de imprescindíveis muito prescindíveis nos meses de agosto e setembro; ao dia 1 de setembro lá vão, com o coração cheio de esperança para a fila pedir um subsídio como se esmola fosse enquanto os concursos não se realizam. Os verdinhos continuam à espera, também eles têm direito a essa espera, mas sem direito à fila. Porque esperar é o único direito que lhes é conferido. Esperam sem condizer com a cor do papel porque muito pouparam ou têm quem os apoie.

A precariedade em que vivem estes profissionais que frequentemente permanecem nesta luta desmedida entre o coração e a razão, num limbo entre o desistir ou persistir. E muitos vão persistindo e insistindo pelo “amor à camisola”, acredito piamente que nesta, como em tantas outras profissões, é isto que move. O desejo inusitado que nos consome na vontade de querer mais e melhor para as pessoas com quem trabalhamos, os surdos, é o que nos faz levantar todos os dias e ir. Ir para locais onde por vezes não somos respeitados, onde as pessoas que connosco trabalham nada percebem de especificidades sobre surdos, igualdade, inclusão e até mesmo têm dificuldade no que é tão geral, as relações humanas. As pessoas não se conseguem colocar no lugar do outro e perceber que também somos pessoas e que “dar às mãos” é o nosso ganha-pão, é o nosso trabalho, a nossa forma de viver, pagar contas e comer.

E não só, Nós, os intérpretes mas também, Eles, e sobretudo eles, os surdos, são quem mais sofre e se prejudica com a situação.

Adiar a contratação de intérpretes porque “se aguentaram até agora podem aguentar mais umas semanas sem intérprete”, ou “fazem leitura labial porque o professor fala devagarinho”, ou “então mas eles não sabem ler?” são alguns dos comentários de quem não os faria se de seu filho se tratasse. Diz o povo sabiamente que “se fosse seu filho…”.

Sujeitos a concursos sempre confusos e questionáveis; onde quem avalia não avalia o verdadeiramente importante, as capacidades linguísticas de cada um, o que, ano após ano, faz com que surjam injustiças e todos os anos as queixas persistam. A qualidade da interpretação para muitos pouco importa até porque a relação com os professores é ótima e decorre com normalidade mesmo quando não há intérprete. “O aluno entende tudo e está a acompanhar muito bem” são as palavras de defesa que muito se ouvem por aí, no entanto, é visível a forma perdida com que os alunos se comportam quando são questionados sobre determinado trabalho ou conceito abordado antes da colocação do imprescindível, mas muito prescindível intérprete.
Contratos estáveis são de uma mínima percentagem que, com o merecido mérito e esforço os prendem por um futuro menos penoso. Mesmo estes, adiam sonhos profissionais e desdobram-se com o devaneio de se completarem profissionalmente.

É por acreditar que ainda é possível fazer muito mais e muito melhor que não desisti porque no dia que isso acontecer pintarei as unhas de vermelho e vestirei camisolas às riscas!

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