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Isabel Sofia Correia
Isabel Sofia Correia
Professora e Investigadora
A Língua Gestual Portuguesa é uma língua
Inserido Domingo, 09 de Fevereiro de 2014
Autor: Isabel Sofia Correia
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O título deste artigo de opinião poderá parecer genérico ou até descabido. Poderá pensar-se que as linhas que abaixo se lerão pretendem esclarecer o público em geral, explicando que a Língua Gestual Portuguesa (LGP) é um idioma natural, com propriedades comuns às línguas humanas, como a arbitrariedade e a convencionalidade, específica de uma minoria de gestuantes, designada comunidade surda. Poderia ainda acrescentar-se que a LGP está, desde 1997 consignada na Constituição da República Portuguesa, artigo 74º ponto 2, alínea h, como expressão cultural da comunidade surda que importa preservar e que deve ser usada para e por essa comunidade, também, como língua de ensino.

As afirmações acima poderão ser novidade para alguns, o tal público geral, mas para quem lida de perto com esta língua e com os surdos são sabidas e consolidadas. Porém, paradoxalmente, é a este público específico que me dirijo. A opinião que expresso pretende ser a base de um diálogo, ou reflexão, com docentes de alunos surdos, intérpretes, professores de ensino especial, terapeutas da fala, entre outros profissionais que, em contexto de trabalho, sobretudo letivo, lidam com a LGP e a surdez diariamente.

Poderá então o público que acabo de nomear achar inusitado o título quando, como eu já referi, estamos perfeitamente cientes de que a LGP é uma língua. Porém…. Será isso mesmo que colocamos em prática?

Muitas vezes, docentes de Português, Matemática, Geografia, enfim, de diversas áreas curriculares, recorrem ao docente de LGP para que os apoie na lecionação de conteúdos. Muito bem. Defendo que o trabalho deve ser em equipa! Não é tarefa fácil transmitir conhecimentos que se encontram solidificados numa língua oral, o português, a alunos surdos que não têm acesso ao suporte fónico do idioma luso. Como ensinar Física, Matemática, ou Luís de Camões a quem não ouve? Trabalhando, arduamente, em equipa. O docente da disciplina, o docente de LGP e o intérprete. Tendo em conta que um considerável número de professores que tem alunos surdos não domina a língua gestual portuguesa é essencial, para que todos façam um bom trabalho, que as estratégias pedagógicas sejam preparadas em conjunto! E, neste caso, o português é basilar. Como sabemos, todo o conhecimento que pretendemos transmitir está escrito em… português. Ora, se o surdo não conhece o termo… como proceder?

Não basta, na minha opinião, a criação de school signs entre o surdo e o intérprete, ainda que seja uma grande ajuda. Não podemos pedir a um profissional de interpretação que domine léxico específico e terminológico de um vasto leque de disciplinas e de anos letivos. Assim, o docente de uma qualquer disciplina deve, em conjunto com o docente de LGP, verificar qual a melhor maneira de o aluno aceder ao conceito que se quer transmitir, discutindo eventuais school signs que se possam criar, paráfrases que o intérprete possa realizar, ou outras técnicas de interpretação. E, porque o intérprete é um intérprete, deve, o docente de LGP, fluente e/ou nativo daquela língua validar o discurso gestual. Passo a um exemplo, de entre imensos que poderíamos apresentar:

Camões refere-se aos “barões assinalados” nos grandiosos Lusíadas. Estas duas palavras, com forte pendor literário e específico de uma época, pouco sentido farão para um aluno surdo. Uma tradução literal seria, perdoem-me a expressão, mas abuso aqui do facto de este ser um artigo de opinião, ridícula. Antes de passarmos ao pânico típico do “não há gesto” ou ao preconceito infeliz de “ a LGP é uma língua pobre, não dá”, voltemos ao título deste artigo. A LGP é uma língua. As línguas dão para tudo. São sistemas que servem para a expressão e comunicação do ser humano. São dele e a ele se adaptam. As palavras não nascem de um dia para outro, nem aparecem por milagre. Muitas levam séculos a consolidar-se. Por isso, provavelmente, não haverá gesto-espelho ( poderia haver?) para a expressão que acima citei. Porém, sabendo que barão era um homem importante e com uma posição social marcada (e, saliente-se, este conceito possui signo gestual) e que, assinalados, neste contexto, significa “os que ficaram para a história” a paráfrase em LGP é, evidentemente, possível. Este raciocínio, que agora aqui expus, deve ser, no meu entender, feito a três: o docente de Português, porque é quem detém o conhecimento literário e linguístico do idioma de partida, o intérprete, que executará a paráfrase e o docente de LGP que verificará se ela faz sentido.

Em seguida, partindo do contexto literário para o pragmático, o docente de Português deve produzir exercícios que evidenciem que a palavrae, sobretudo esta última que não tem vincada a marca da história que a primeira tem, podem ser usados noutros contextos. Os exercícios devem ser validados em LGP, por forma a verificar se o aluno acede aos conceitos, mas são da exclusiva responsabilidade do docente de Português. Porque um docente de LGP é… um docente de LGP.

Desta forma, nas aulas de LGP deve aprender-se…. LGP em LGP. Existe um Programa Curricular que deve ser seguido, mas, creio, o objetivo último é que os alunos aprendam a língua, reflitam sobre ela e consigam cada vez mais aprimorá-la para, com ela, poderem comunicar o mundo para o mundo. Não é tarefa do docente de LGP traduzir léxico de português para LGP ou vice-versa. As metodologias de ensino da LGP passam pelo manejamento de estratégias da pedagogia visual onde o gesto deve ser exclusivo. Ou melhor, preferencialmente, acompanhado da escrita da LGP, o signwriting. Todavia, sabemos bem que isto, em Portugal, é ainda uma utopia, ainda que seja uma diretriz de um Programa Curricular aprovado pelo governo.

Todavia, convém recuarmos mais um pouco antes de falarmos das Tágides ou da Ilha dos Amores. No pré-escolar e no primeiro ciclo, anos cruciais para o desenvolvimento linguístico das crianças, a equipa primordial não inclui o intérprete. Evidentemente que, estando o intérprete afeto a um agrupamento, pode-se, suponho, pedir a sua colaboração. Porém, centremo-nos apenas em quem lida em primeira instância com as crianças surdas: o Educador, o Professor titular de turma e o docente de LGP. No meu entender é fundamental que as crianças sejam desde cedo expostas a palavras escritas e a algarismos. Como se sabe, as fases de pré-aprendizagem da leitura e da escrita são fulcrais para o desenvolvimento cognitivo e comunicativo das crianças e, muitas vezes, a literacia emergente supõe a exposição a contextos literácitos que não implicam, necessariamente, a compreensão leitora. Assim, é imprescindível que as crianças vejam os grafemas, mesmo que não os decifrem, associados a imagens e ao signo gestual. A educadora deve providenciar os materiais escritos e imagéticos e o docente de LGP o seu equivalente gestual que poderá ser dado in loco ou em registo fotográfico, a par da imagem e da escrita. Também sabemos como as histórias são importantes na construção que as crianças fazem do mundo. O docente de LGP deve contar histórias em LGP e mostrar vídeos com narrativas nesse idioma. A par disso, urge a criação de mais materiais didácticos bilingues em que histórias tradicionais, por exemplo, com versão em LGP.

Porém, inquietar-se-ão alguns dos que tiveram a paciência de ler até aqui: “Como é que os surdos apreendem os conceitos?”, “Como é que os alunos percebem os conceitos das minhas aulas? E a escrita dos surdos que é tão desestruturada?”

Tento responder, tranquilizando: com muito trabalho árduo, muitas estratégias de visualização, memorização e aplicação pragmática e, sobretudo, com a LGP. Tendo em conta que a língua portuguesa é oral só através de uma língua outra, o aluno percebe o idioma maioritário do país. Voltemos ao trabalho de equipa que atrás referi. E insistamos em exercícios pragmáticos. E, especialmente, voltemo-nos, nós, docentes de Português, Matemática, ou o que seja, para a LGP. Aprendamo-la. Convivamos com a comunidade surda. Respeitemo-la. E, definitivamente, perceba-se que a LGP não é um sistema comunicacional de apoio aumentativo ou o que seja. A LGP é uma língua. Caros que me leram até quase, quase ao final: alguma vez aconselharam o professor de inglês sobre as matérias que deve ou não ensinar? Creio que não… “Ah, mas aqui é diferente”, dirão alguns. E pergunto-lhes eu? O que é que é diferente? Sim a surdez é diferente, por isso os caminhos também têm de ser distintos. A surdez não é impeditiva de igual acesso ao mundo. Nós, os que também estamos neste mundo, é que temos o dever de encetar o percurso que conduz ao conhecimento com eles, os surdos.

O trabalho, deve, pois, ser conjunto, em confluência, mas o detentor do saber de cada disciplina é quem foi formado para a lecionar. Deixemos o docente de Português mostrar o mundo luso aos surdos além da Taprobana e deixemos o docente de LGP ensinar-lhes poesia surda, deafhood, deaflore, matérias que ele sabe e deve, com respeito, ensinar.

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