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Proficiência Lingüística e Fluência em Língua de Sinais: Uma Necessária Revisão Teórica
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Publicado em 2006
VI Encontro de Pós-Graduação e Pesquisa. Fortaleza: Unifor
Maria Cristina Pires Pereira
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Resumo

O presente trabalho, que faz parte da pesquisa de mestrado “Intérprete de Língua de Sinais: um estudo sobre proficiência lingüística”, apresenta uma revisão teórica sobre os conceitos de fluência e proficiência utilizados em avaliações lingüísticas. Devido à falta de consenso, os termos fluência e proficiência lingüísticas não têm sido utilizados adequadamente. Este estudo traz indícios de que avaliar a fluência é apenas um dos aspectos ligados à testagem de proficiência lingüística. Uma compreensão maior destes conceitos pode auxiliar na elaboração, montagem e aplicação de testes de proficiência lingüística, sejam de língua de sinais ou de línguas orais.

Introdução

Esta comunicação refere-se, em parte, à pesquisa de mestrado “Intérprete de Língua de Sinais: um estudo sobre proficiência lingüística”. Esta investigação surgiu, principalmente, da observação dos critérios e procedimentos intuitivos, utilizados nas bancas de avaliação de proficiência para a entrada em cursos de formação para intérpretes de língua de sinais, e da necessidade de um estudo que visasse a uma sistematização desses testes.

No Brasil, a língua de sinais brasileira (LSB), mais comumente chamada de Libras, foi regulamentada pelo Decreto nº 10.436, de 24 de dezembro de 2005. Com o seu reconhecimento lingüístico e legal surge a necessidade de profissionalizar os intérpretes de língua de sinais. Com este intuito, o primeiro teste oficial de proficiência lingüística em Libras está para ser lançado, neste ano de 2006, pelo MEC, e um estudo mais aprofundado dos conceitos de fluência e proficiência é mais do que oportuno neste momento. Para boa parte da população surda, o intérprete é a pessoa que possibilita a acessibilidade em interações lingüísticas diversas, tais como: conferências, trâmites de identificação e documentação, consultas médicas, audiências jurídicas, aulas no sistema de inclusão educacional e várias outras. Verificar a proficiência desses profissionais é qualificar as relações culturais e lingüísticas entre pessoas surdas, usuárias da Libras, e pessoas ouvintes que não são capazes de interagir nesse idioma.

Muitos pesquisadores têm chegado à conclusão de que ainda não se dispõe de um consenso sobre o que testar, pois o grande problema tem sido determinar exatamente o que é a proficiência lingüística que precisa ser definida tanto de uma forma conceitual quanto empiricamente dentro de um contexto específico (VECCHIO e GUERRERO, 1995; KAUR, 1999; KARNAL, 2002).

Fluência e Proficiência: Revisando Conceitos

A concepção do que seja um indivíduo proficiente não é unânime, devido às várias abordagens e critérios utilizados para este fim. Existe, também, o senso comum de que uma pessoa fluente é automaticamente proficiente em uma língua e fazer a devida distinção entre esses dois conceitos pode resolver muitos mal-entendidos em relação, principalmente, à testagem lingüística. Há muitas décadas têm sido feitos estudos sobre a exata natureza da proficiência lingüística, porém a influência dos fatores sócio-culturais somente começa a ser seriamente considerada com Hymes (1972) e seu conceito de competência comunicativa, que reconhece o contexto do discurso como fator a ser considerado e é daqui que partem as ponderações feitas neste texto.

Como o termo fluência está ligado, comumente, à capacidade de comunicar-se e interagir eficientemente em uma língua, então, preliminarmente, a investigação foi iniciada pela determinação do que seria a conceituação de fluência. Proficiência, em si, não se refere unicamente à área lingüística, pois significa excelência, maestria ou domínio em uma determinada área. Portanto, a seguir, delimita-se a proficiência lingüística como objeto de estudo. O estudo até agora realizado tem apontado para o fato de que a fluência é apenas um dos componentes da proficiência lingüística.

Fluência vem da palavra latina fluens, fluir. Assim, pode-se entender como fluência “(...) o fluir de sons, sílabas, palavras e frases ditas sem interrupções que o ouvinte leigo classifica como normal” (JACOBICZ, 1997, p. 130). Aparentemente mais simples, para Milloy (1997, p. 75), “fluência é o fluxo da fala”. Conforme essa autora, “para satisfazer os requisitos de significado e clareza, o fluxo da fala deve seguir uma forma pré-determinada que não admite distorções ou interrupções, a não ser pausas aceitáveis e variações de velocidade”. Comparativamente a essas definições, relativas às línguas orais, a fluência em língua de sinais poderia ser relacionada a um encadeamento harmônico entre os movimentos que compõem os sinais, pois se a fluência na fala é caracterizada pelo índice de velocidade, freqüência e duração das pausas (TROFIMOVICH E BAKER, 2006), o processo de sinalização pode se guiar, neste caso, pelos mesmos referenciais. Contudo, uma investigação mais detalhada teria que ser feita a esse respeito já que não contamos com muitas fontes de pesquisa sobre este tema. A força tarefa da American Speech-Language-Hearing Association (ASHA), órgão que congrega especialistas da fala e da audição nos Estados Unidos, aconselha à comunidade científica que invista esforços em distinguir a “fluência motora” da “fluência lingüística”, pois freqüentemente usos contraditórios e conflitantes do termo fluência devem ser esclarecidos para minimizar a confusão que ainda reina nas duas áreas (BLOOD et al., 2002).

Admite-se que fluência e proficiência lingüísticas estão relacionadas, porém falantes de uma língua podem ser considerados fluentes, sem serem considerados proficientes. A fluência é a capacidade de produzir uma fala rápida, fluente, espontânea, mas não necessariamente gramaticalmente compreensível, nesse caso o termo mais apropriado seria exatidão ou precisão (accuracy) lingüística. A proficiência lingüística é um termo mais abrangente que deve ser entendido como bem mais do que a competência gramatical (WOLFE-QUINTERO; INAGAKI e KIM, 1998). Segundo Vecchio e Guerrero (1995), a proficiência lingüística é a coordenação coerente de elementos discretos, tais como vocabulário, estrutura do discurso e, até mesmo, gestos para comunicar o significado em um contexto específico. O modelo mais difundido, no entanto, de acordo com Schachter (1990), Bachman (1997) e Silva (2001), é o de Canale e Swain (1980), mais tarde aperfeiçoado por Canale (1983), que compreende as competências: gramatical, sociolingüística, discursiva e estratégica. Para alguns autores, como Bachman e Palmer (1996), a proficiência lingüística tem que ser avaliada como linguagem em uso, ou seja, como a linguagem que utilizamos na negociação dinâmica e interativa de significados pretendidos entre duas ou mais pessoas e que envolve os aspectos de conhecimento lingüístico, conhecimento do tópico, características pessoais, competência estratégica e emotividade.

Nesta sucinta retrospectiva teórica podemos perceber a complexidade que envolve o conceito de proficiência lingüística e os variados aspectos que devem ser levados em conta em uma avaliação de proficiência. Além disso, o público alvo e os objetivos desta testagem deveriam ser específicos como, por exemplo, alunos de segunda língua (comunidade, acadêmicos), professores que utilizarão a língua testada no seu dia-a-dia profissional, tradutores e intérpretes (de línguas orais ou sinalizadas) e outros contextos.

Considerações Adicionais

Como é possível perceber, as definições quanto à proficiência lingüística e uma de suas propriedades, a fluência lingüística, embora não se contradigam, não conseguem abarcar, na totalidade, todas as nuances que estes termos podem assumir, fazendo com que uma seja erroneamente tomada pela outra. Em língua de sinais, investigações mais especializadas devem ser feitas sobre a fluência, pois são escassos os trabalhos nessa temática.

Esse é um tema que poderia unir várias áreas do conhecimento, além da Lingüística, considerando a língua de sinais não como um desvio da linguagem, mas como uma língua com grandes possibilidades de pesquisas.

Este estudo não se esgota aqui, as seguintes fases estão previstas visando um aprofundamento em temas que emergiram desta investigação prévia:

  • Análise de testes de admissão a cursos de interpretação de língua de sinais aplicados a ouvintes utilizados em locais e por instituições reconhecidas por sua seriedade e experiência.
  • Observação participante em testes de admissão de cursos de interpretação língua de sinais.
  • Experimento inspirado em Lupton (1998), que terá como participantes intérpretes de língua de sinais a serem filmados fazendo narrativas e interagindo em língua de sinais, entre pares: tais situações serão analisadas por intérpretes experientes e pessoas surdas, professoras ou instrutoras de língua de sinais, com o objetivo de definir o que caracteriza a proficiência.

Esta investigação sobre a proficiência lingüística dos intérpretes de língua de sinais é um trabalho que se situa na interface da Lingüística Aplicada, Estudos Surdosi, Estudos da Tradução e Educação e poderá dar importantes contribuições, conectando diversas práticas ainda carentes de apoio teórico e metodológico. Entre elas, mais especificamente, encontra-se o ensino-aprendizagem da língua de sinais como segunda língua por pessoas ouvintes (professores, profissionais que trabalham com surdos, familiares e comunidade em geral) e as avaliações de proficiência lingüística e tradutória de língua de sinais.

Bibliografia

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