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Da deficiência à diferença: divisões na conceptualização de surdos e ouvintes
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Publicado em 2011
International Conference on Language and Linguistics – CILL, In Atas do International Conference on Language and Linguistics – CILL, Évora
Ana Isabel Pinheiro Silva
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Construímos e relacionamo-nos com o mundo pela linguagem. O seu uso revela preconceitos, fundamenta estereótipos e cria estigmas. Historicamente ancoradas à deficiência, a conceção de surdez varia entre comunidades ouvinte e Surda. A linguística cognitiva descreve este matizado de conceitos à luz da teoria da categorização, preferindo um tratamento da linguagem atualizada no uso pragmático da língua. Três formas de conceptualizar a surdez a partir da dicotomia deficiência – diferença, representadas por uma formadora de LGP, uma professora de educação especial e uma audiologista, reequacionando o jogo de palavras entre deficiência e diferença, que começa a diluir-se em múltiplas identidades.

1. LGP e Línguas Gestuais no friso cronológico

O conhecimento do código linguístico é essencial na comunidade escolar, contudo acreditamos ser cada vez menos a única forma de linguagem vigente. Por isso, a Língua Gestual Portuguesa (LGP), espaço de definição de identidades, e a sua prática na escola parece-nos ser um vasto campo de estudo no desenvolvimento de um melhor e mais eficaz ensino, defendido pela UNICEF, UNESCO, PNUD e Banco Mundial (1990) para “todas as pessoas - crianças, jovens e adultos” (in Sim-Sim et al, 1997:7).

Lê-se na primeira frase da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Trata-se de uma afirmação que ainda hoje, por motivos vários, está por cumprir. À escala global, defender os Direitos Humanos está longe de ser uma conquista. À escala nacional há ainda reivindicações latentes. Se considerarmos as questões relacionadas com a Educação, o compromisso com alunos com necessidades educativas está ainda em curso revela-se um processo incompleto e o direito a não ser discriminado por causa da língua 1 também permanece pendente, apesar de salvaguardado em sede do mesmo documento (DUDH, (1948) Art.º1.º e 2.º) 2. Seguindo esta linha cronológica, em 1966, a mesma Assembleia-Geral das Nações Unidas ratifica o princípio da igualdade de tratamento através do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos 3 e que, em Portugal, entra em vigor em 1978, comprometendo-se a garantir: “a todos os indivíduos que se encontrem nos seus territórios e estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto (…) de língua, de religião, de opinião política, ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de propriedade ou de nascimento, ou de outra situação.” (Artº2.º, Segunda Parte).

A luta pela igualdade de direitos e de oportunidades das pessoas s/Surdas nutre o fio da memória 4 da história dos s/Surdos. Trata-se de uma batalha que trava várias frentes: a coluna da legislação, a coluna da metodologia de ensino, a coluna da etiqueta de deficiência. Enquanto minoria, para se auto – afirmar, tem investido as últimas décadas por uma cultura de empowerment, orientada para um diálogo com a comunidade maioritária: a comunidade ouvinte, tal como é designada. Helena Melo (1999:1) entende esta postura como legítima numa sociedade multicultural que se afirma e que assenta no princípio de igualdade de oportunidades apenas possível através do respeito da LGP como Língua Natural dos Surdos. O panorama linguístico português reconhece a LGP constitucionalmente desde 1997, realidade consubstanciada internacionalmente como um direito no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. A Comunidade Surda reclama um estatuto de minoria nacional à luz da Convenção Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais 5 dotando esta comunidade de instrumentos legais que resultam de compromissos internacionais. À luz destes pressupostos, considera-se que uma sociedade plural e eminentemente democrática assume o dever de respeitar a diversidade cultural e linguística de qualquer indivíduo desta comunidade, alicerçando a criação de condições para o desenvolvimento e preservação dessa identidade, assegurando os seus direitos. Em 1992, a Carta Europeia da Línguas Regionais ou Minoritárias 6 está construída e ratificada pelo Conselho da Europa, consagrando à pessoa s/Surda a pertença a uma minoria linguística. Portugal assume protagonismo a 20 de setembro de 1997, aquando da Quarta Revisão Constitucional que confere na alínea h) do n.º2, do artigo 74.º determina, à luz das políticas de ensino, o dever do Estado na proteção e valorização da Língua Gestual Portuguesa enquanto instrumento de expressão cultural e de acesso à educação, como forma de promoção da igualdade de oportunidades. Desde 1998, o Parlamento Europeu na Resolução sobre as Línguas Gestuais 7 delibera acerca das mesmas, propondo aos Estados Membros que dinamizem ações de integração da pessoa s/Surda na sociedade ouvinte, de forma plena. Recomenda, ainda, a concessão de direitos às línguas gestuais como línguas oficiais e ofereçam uma verdadeira educação bilingue e serviços públicos às pessoas Surdas.

Em 2007 é homologado o Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa Educação Pré-Escolar e Ensino Básico onde é explicitamente a vontade de reconhecimento e dignificação do seu estatuto quanto primeira língua da Comunidade Surda, sendo, doravante, e por direito, utilizada no ensino dos alunos s/Surdos (p.5). Trata-se de um documento oficial que difunde e legitima a construção de uma identidade cultural surda, já sublinhada no Adaptação do Programa de Português para alunos com deficiência auditiva de grau severo ou profundo do 10.º, 11.º e 12.º anos dos Cursos Científico - Humanísticos, Cursos Tecnológicos e Cursos Artísticos Especializados em 2006. Estes programas a par do Decreto-Lei N.º 3/2008 de 7 de janeiro preveem que as crianças s/Surdas possam o mais precocemente ter acesso a uma educação e escolarização bilingue, cabendo a responsabilidade aos docentes s/Surdos a sua concretização (Artigo 10º).

Mais recentemente, o Despacho n.º 7158 de 11 de maio de 2011, relativo à homologação do Programa de Português Língua Segunda (PL2) de 15 de fevereiro de 2011, destina-se a alunos s/Surdos gestuantes que frequentam as escolas de referência de ensino bilingue. A organização por níveis e ciclos de ensino, do 1.º CEB até ao fim do ensino secundário, foi elaborado partindo dos pressupostos do reconhecimento: da língua gestual portuguesa (LGP) como a L1 s/Surdo; da língua portuguesa escrita (PL2), e eventualmente falada, como uma língua específica para alunos s/Surdos; do português a língua veicular do currículo escolar, cujo domínio se constitui como um instrumento fundamental para o pleno acesso à educação e para a integração do aluno surdo na sociedade.8

Sabemos que até agora estes alunos eram raros no Ensino Secundário (Duarte, Ricou & Nunes, 2005:135) e, por isso, este despacho constitui mais uma conquista a implementar. O esforço pela determinação jurídica e legal desta Comunidade tem sido profícuo. Se a toda a documentação referida acrescentarmos a dinamização dos cursos de LGP que têm sido divulgados e promovidos pelas Associações de Surdos e por formadores particulares devidamente creditados, a LGP começa a ser conhecida no panorama linguístico. Paulatinamente vai, assim, sendo transformada num produto cujo marketing nos parece bastante eficaz.

Apesar desta faca de dois gumes, a divulgação da LGP é essencial na promoção de igualdades de oportunidades. A maioria das crianças surdas são filhos de pais ouvintes (Baptista, 2008:30; Leigh, 2009:65; Coelho, 2010:37; Silva, 2010:108; Souza & Silvestre, 2007:75) e à nascença fica profundamente prejudicada nas interações com o mundo e comprometida a aquisição e desenvolvimento da linguagem, restrita ao tato e à visão (Amaral, 2002a:374). A Declaração de Salamanca aponta a diretriz da sensibilização do público para esta realidade. Tal como aponta para a formação de recursos humanos capazes de trabalhar em equipas na promoção da literacia destas crianças. Parece-nos importante partilhar da opinião de Silva quando considera “as línguas como fatores de cultura” 9 (2001:1), logo de identidade.

2. Construção de identidade

Um mosaico de línguas cobre a Europa e realiza o projeto europeu de construir uma identidade europeia, por isso ultrapassam o valor instrumental de código que preenche a comunicação entre fronteiras e que se intercompreendem em plataformas de interseção. Esta realidade é característica das línguas orais, mas não em línguas visuais, como a LGP. Trata-se de uma plataforma embrionária e que suscita muita controvérsia, nomeadamente em relação ao seu estatuto e ao respetivo reconhecimento pela pessoa s/Surda e pela Pessoa ouvinte. Partilhamos da opinião de Rosa Faneca (2007:47) quando refere que “o estatuto da língua é complexo” e “as fronteiras ambíguas”. Há que considerar nesta parte do nosso trabalho que o papel desempenhado pelas Associações de Surdos é preponderante para a dinâmica desta língua, constituindo-se como vetores que conferem ou destituem o estatuto e o valor, neste caso, à LGP.

A construção da identidade e da autoimagem no indivíduo s/Surdo passa por integrar a surdez nessa construção. Do mesmo modo, integra esta identidade a qualidade da sua comunicação com o mundo no qual vive. Este mundo, tem já representações dominantes da surdez e do que será ser s/Surdo, nomeadamente porque o acesso à linguagem é igualmente precário (Silvestre & Souza, 2007:75). Acrescem a estas significações construídas, as imagens das famílias no seio das quais nasce uma criança s/Surda. Estas representações negativas passam por um processo de desmitificação para o qual a educação inclusiva contribuiu. A identidade é alvo de controvérsias na educação de s/Surdos. Nesta discussão, Kauchakje (2003:57) refere que a identidade s/Surda obedece à permuta de paradigma de deficiência para o de minoria linguística e cultural. Esta passagem pressupõe um processo de construção de significado com base na experiência cultural e/ou como um conjunto de atributos culturais.

2.1. O peso da história

Sabemos que as representações da surdez e sobre o indivíduo s/Surdo não são as mais positivas e frequentemente consignadas num discurso impregnado de sentimento de culpa, ora associado à caridade cristã, ora associado ao castigo divino ou à presença demoníaca e testemunha do pecado. Durante a Idade Média, por exemplo, a Igreja ainda que tenha condenado o infanticídio, atribuiu a surdez e outras deficiências ao poder da ira divina. Este discurso assume outros contornos quando não há um discurso consensual acerca da designação a utilizar, oscilando entre pessoas diferentes, pessoas com deficiências e pessoas deficientes (Silva & Oliveira, 2011a:8) ou como Kauchakje (2003:58) pessoa com necessidades específicas. Para esta abordagem descrevemos a herança do friso cronológico da História, cujo peso aponta a marca invisível da surdez no corpo ancorada a processos ora de ostracização ora de acolhimento. No Egito os s/Surdos eram adorados como intermediários diretos a quem cabia a transmissão de mensagens secretas das divindades ao Faraó. Sendo pessoas com formas distintas de comunicar, eram por isso temidos e respeitados pela restante população. Aristóteles em 355 a.C. confere a primordialidade ao sentido da visão, mas defendeu ser a audição o sentido mais importante no que diz respeito ao desenvolvimento do intelecto. Esta visão consubstanciou-se no Código de Justiniano, 529 a.C. no qual se evidencia a interdição de direitos em razão da surdez (Gomes, 2007:32). Santo Agostinho (354-430 d.C.) considerava que um filho s/Surdo representava um castigo divino para que os progenitores se redimissem dos pecados e que a salvação dos surdos era possível pela comunicação com gestos, equivalentes à fala. Na Idade Média, o Catolicismo atribuía a mortalidade à alma dos s/Surdos. Só no século XIII é adquiriram o direito ao matrimónio (Carvalho, 2007:14).

Kant e Hegel conferem, no século XIX, a primazia à visão, iniciando o que se pode denominar e era oculocêntrica, o mesmo perdura durante o século XX. Martha Ewards (1997) analisa a apreensão social das pessoas surdas no contexto grego era profundamente subalternizante e depreciativa. Isto porque, dado o caráter eminentemente oral da comunicação, acrescido da ausência de uma linguagem gestual, a surdez era associada à inaptidão intelectual. As pessoas surdas eram excluídas de uma importante esfera a vida social, como eram ainda sujeitas às consequências da menorização da sua aptidão intelectual (in Martins, 2006:50). A escolaridade da população s/Surda foi um pré-requisito para tornar especializados os trabalhadores de manufaturas. Não havia desperdício de mão de obra à qual pertenciam os s/Surdos, cegos e mudos, que em 1823 fizeram parte de uma política de homogeneização e generalização da escolaridade, tendo obtido formação profissional através da criação do Instituto de Surdos, Mudos e Cegos por D. João VI (Cabral, 2005:39; Carvalho, 2007:IV). Pedagogicamente, as práticas, anteriores ao século XIX, que interditavam as crianças de utilizarem e desenvolverem linguagem gestual em virtude de se assumir que estimulariam uma sexualidade desviante, como a dança, o exercício físico, passam físico, passam a ser consideradas na formação holística e referências nas metodologias escolares. Parece ter havido um deslocamento histórico de uma educação eminentemente impositiva para uma educação que privilegia a negociação e recetiva a novas ideias e metodologias (Lopes, 2007:48). No século XX a expressão do corpo é um elemento de divulgação e de quase exclusividade da cultura s/Surda. Jodelet (1989:36) considera as representações sociais como uma modalidade do conhecimento partilhado em interação cujo intuito passa pela edificação de uma realidade comum. Neste momento, parece-nos útil assaltar o artigo de Paulo Henrique Duque sobre Teoria dos protótipos, categorias e sentido lexical 10 explicitando que se baseiam em representações mentais que correspondem a categorias cognitivas, não sendo homogéneas; têm como suporte a realidade e o saber extralinguísticos ao nível conceptual e percetível. A falta de acesso à palavra pelos dos s/Surdos coibia-os de obter a salvação da alma. Facilmente se constroem mitos e rapidamente se disseminam numa ótica de estigma e marginalização dos s/Surdos. Generalizam-se estes estereótipos e sublinha-se a surdez como deficiência a partir de uma perspetiva exclusivamente ouvintista (Lopes, 2007:51) e que Harlan Lane mostra no quadro seguinte:

CARACTERÍSTICAS ATRIBUÍDAS AOS SURDOS
LITERATURA PROFISSIONAL
(Lane, 1992:47)
SOCIAL COGNITIVO COMPORTAMENTAL EMOCIONAL

A-social
Infantil
Fechado
Competitivo
Dependente
Irresponsável
Desobediente
Atrasado
Desintegrado
Isolado

(…)

Concreto
Céptico
Fraco discernimento
Mecanicamente inapto
Raciocínio estreito
Pensamento confuso
Pouco inteligente

(…)

Agressivo
Imaturo
Impulsivo
Teimoso
Desconfiado
Personalidade pouco desenvolvida
Falta de iniciativa

(…)

Inconfidente
Ansioso
Depressivo
Emocionalmente perturbado
Explosivo
Frustrado
Facilmente irritável
Neurótico
Paranóico

(…)

Neste quadro são evidenciadas as características que o médico experiente imagina quando perante um cliente s/Surdo em quatro domínios. Esta lista, consistente pela representação negativa, foi testada na entrevista da Audiologista (A1). Procurámos cada uma das palavras e expressões aqui referidas nas suas respostas. A pesquisa por localização revelou que em 33 palavras e expressões, apenas o adjetivo “fechado(s)” foi referido e com uma frequência. Perante esta evidência, parece haver uma mudança na representação e construção de imagens e disseminação de estereótipos dos Audiologistas, representante da comunidade e paradigma médico – terapêutico, em relação ao s/Surdo. Lodi (2005:419) discorre acerca da construção da identidade da pessoa s/Surda à luz do conceito de subjetividade de Bakhtin, sublinhando a relação dialógica com o outro como leitmotiv para o processo de construção de significações, de âncoras identitárias. O diálogo entre línguas, culturas e experiências enriquecerão todos os envolvidos, permitindo trabalhar no âmbito da promoção da cidadania e respeito pelo outro (Santomé, 2008:8). A este respeito cabe-nos dizer que o conceito de alteridade se desenha com a presença de dois pólos em que cada um é um EU e um OUTRO e cuja diferença não reside no OUTRO mas como sugere Américo Peres (1999:49) no EU. Sá (2006) sublinha que a construção social da surdez sobressai a valorização do que denomina de modelo ouvinte. Este modelo é um elemento de comparação que não permite uma ideia de igualdade, pelo caráter de normalidade que lhe subjaz e diminui o conceito de Surdo ao facto de não poder vir a tornar-se normal. Esta primeira representação advém do facto de haver uma taxonomia médica que denota a incapacidade física. A linguagem, não sendo inócua, nem sempre filtra a ideologia subjacente, aliás, para Vygotsky (2001:11) era mediadora e construtora de significados do mundo. Para o s/Surdo será feita pela LGP e pelas interpretações resultantes da interação entre ele e o outro, que neste trabalho estão representadas pelos entrevistados.

É o modo como é descrita a surdez ideologicamente que torna lenta a mudança de terminologia e representação de doença a diferença. Trata-se de uma mudança de perspetiva que resulta de alterações de padrões construídos e sedimentados ao longo da história. Esta transfiguração passa por adotar a surdez como uma condição de fenómeno social ou político. Depois das investigações da década de 60 (Stokoe, 1960;1974;1995;1996) qualquer terminologia utilizada vem acompanhada de um conceito comprometido, seja ao adotar deficiente auditivo, surdo ou Surdo, diferente ou pessoas com deficiência. Estas etiquetas trazem a marca ideológica de lutas sociais e políticas que resultam na sobrelotação legislativa. Nesta comunicação, optámos por desvincular qualquer representação da surdez, por isso optámos por utilizar como Leigh (2009) a dupla consoante quando referimos s/Surdo 11.

2.2. Da deficiência à diferença

O respeito pela diferença não deverá excluir a possibilidade de descrever e fazer discurso sobre a própria diferença. Qualquer análise de qualquer história deverá ser contextualizada, e nesse contexto, ancorada ao tempo e ao espaço, devendo cada época ser descrita e explicada nos seus próprios termos e nesse caso abrir a possibilidade de relativizar a diferença: “A conceptualização da história como sistema de diferenças no espaço e no tempo, está justamente a reconhecer a necessidade de um enquadramento que estabeleça os termos de comparação entre sociedades ou culturas diferentes” (Rowland, 1997:42).

Leigh (2009:5) refere que a identidade é um processo em construção e reclama reflexão que envolve as dimensões da motivação, conhecimento cultural e capacidade de desempenhar diferentes papéis em diferentes contextos, e por isso é dinâmica. Esta construção dinâmica da identidade é mediada pela experiência individual do s/Surdo, pelas posições sociais, culturais e linguísticas que ocupa em diferentes contextos. A perceção de si mesmo vai-se alterando ao longo do tempo e em função das etapas de vida associadas a um friso cronológico. As interações com elementos de toda a comunidade envolvente permitem a sedimentação de características e identidades multifacetadas, permitindo o que se Paddy Ladd (2003) referida por Irene Leigh (2009:19) designou de “deafhood” como um conceito emergente, designado a consciencialização do s/Surdo, reconstruindo as conceções e crenças associadas à manutenção do ser s/Surdo. Esta reconceptualização permite uma abordagem mais eclética e múltipla das várias perspetivas coexistentes na cultura s/Surda. Neste processo, as variáveis associadas à evolução tecnológica criam uma plataforma de discussão cujas conclusões estão ainda por definir. Neste ponto reequaciona-se o “futuro da surdez”. O futuro da surdez tem vindo a ser associado à tecnologia, esta é frequentemente arremessada pela referência pelos mais defensores acérrimos da teoria do cyborg como forma de aniquilar a surdez, para a qual se pretende encontrar uma panaceia acerca da qual, para a comunidade científica parece não ser uma questão, mas antes o quando será encontrada (Levete, 2009: 38). Representa esta uma passagem para a audição como característica que torna o s/Surdo o ouvinte perfeito. Esta solução não anula o potencial fator de discriminação, já que se o s/Surdo pudesse ouvir (utilizando uma prótese auditiva) e falar deixaria de ser discriminado ou de ser visto como s/Surdo?

2.3. Estacionamento no limbo: o espectro da deficiência

Abordar a diferença passa por categorizar três atitudes face a este conceito e face aos grupos sociais deslindando a forma de convivência em relação às minorias, como a comunidade Surda: exclusão, convivência regulada e inclusão. A última é entendida como um movimento e por isso dinâmico que reconhece a diversidade humana, pressupondo o direito à igualdade na participação de todos no espaço social. Contrariamente aos dois primeiros que implicam a institucionalização e a estigmatização pela imposição de espaços separados (Kauchakje, 2003:67). Abordar a perspetiva inclusiva enquanto processo e enquanto prática do Ensino Especial em Portugal remete-nos, por um lado, para o século XVIII, cujos fundamentos passam por lutas sociais e ideais políticos ancorados à emergência de democracias; por outro lado para a documentação específica como a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos (1990) onde se estipula no Artigo n.º3 a garantia “de igualdade de acesso à educação de todas as categorias de pessoas com deficiência como parte integrante do sistema educativo.” 12 Bueno (1998) tece considerações acerca da relação entre surdez e normalidade, sustentando que existe uma imprecisão conceptual em relação ao s/Surdo. Não sendo uma patologia, também não é uma doença, nem uma invenção dos ouvintes. Para este autor, a surdez não é uma questão de ambiguidade ou retórica, mas antes conceptual e como tal é uma questão do domínio teórico a tratar sem constrangimentos. O autor considera-a uma deficiência apropriando-se de “evidências científicas, sociais e culturais” (p.7). A palavra deficiência está associada a uma restrição auditiva que existe e caracteriza o déficit de audição em relação à pessoa ouvinte e que marca a construção identitária do s/Surdo.

Oliver Sacks (2011:110) refere, a propósito da vertente neurológica, que a língua gestual é uma língua e é tratada pelo cérebro e organizada espacialmente e não sequencialmente. Como tal, é processada pelo hemisfério esquerdo do cérebro, biologicamente especializado para tal. Porém, as línguas gestuais passam a fronteira entre as funções deste hemisfério e o direito, ao qual é atribuída a função de trabalhar com o mundo visual e espacial. Herculano de Carvalho (1970: 67-68 in Baptista, 2008) considerou a língua gestual um sistema de sinais organizados equivalente a uma língua verbal, mas atribui-lhe o caráter artificial, criada por “indivíduos sãos (…) para o uso daqueles outros indivíduos fisicamente deficientes”, alvitrando que é, também, na conceptualização de língua gestual no domínio da teoria da linguagem que se constitui o embrião e posterior legitimação da representação da línguas gestuais e
consequentemente a LGP.

A linguística cognitiva explicaria este matizado dos conceitos à luz da teoria dos protótipos e da teoria da categorização. Esta área do conhecimento leva-nos para o tratamento da linguagem atualizada no uso pragmático da língua. No caso, o conceito de deficiência está ou não associado à surdez, ou se a surdez é ou não uma deficiência. A título de exemplo, urge citar Augusto Soares da Silva ao definir que “os sentidos de um determinado item não são dados mas construídos: são interpretações que surgem de um contexto particular” (2003:150). É sabido, neste momento, que os inputs do s/Surdo são diferentes e por isso, o mundo por eles experienciado será diferente. A fomentação da luta da Comunidade Surda pelo acesso à igualdade de oportunidades e a constatação de que existem instrumentos que permitem a comunicação têm permitido o jogo de palavras entre deficiência e diferença, diluindo as fronteiras de cada uma delas, consubstanciando o caráter social associado às diferentes identidades assumidas em contextos diversificados. A Resolução n.º 48/96 das Nações Unidas, de março de 1994, Normas sobre a Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiência 13 propõe a utilização de Língua Gestual na educação dos s/Surdos através da presença de intérpretes como mediadores da comunicação, mencionado, explicitamente, que as crianças surdas constituem um caso especial no que diz respeito à integração no ensino regular. Em 1994, a Conferência Mundial de Salamanca, onde Portugal também esteve representado, sintetiza as suas conclusões na Declaração de Salamanca e Enquadramento da Acção na Área das Necessidade Educativas Especiais 14 especificamente sobre os Princípios e Práticas na área das Necessidades Educativas Especiais. Trata-se de um momento quase de epifania pois consigna o conceito de educação inclusiva. A mesma Declaração (1994: 18) sublinha a necessidade de acesso à educação através da Língua Gestual do respetivo país em unidades especiais em escolas de ensino regular. Em Portugal foi consubstanciada na alínea h) do artigo 74.º da Constituição da República Portuguesa que, na realização da política de ensino, incumbe ao Estado a responsabilidade de proteger e valorizar a LGP enquanto veículo de uma cultura e instrumento de acesso à educação e igualdade de oportunidades. Porém, a referida Declaração não colmatou todas as necessidades. Face a esta realidade e mediante a urgência de atualizar e alargar a legislação que regula a integração dos alunos portadores de deficiência nas escolas regulares, vigente há mais de 10 anos pelo Decreto-Lei N.º 319/91 de 23 de agosto, foi publicado este ano o Decreto-Lei N.º 3/2008 de 7 de janeiro. Este documento consubstancia mudanças no paradigma da educação especial baseadas nas experiências de integração anterior, determinando que o conceito de alunos com necessidades educativas especiais seria classificado com base em critérios pedagógicos e não em decisões de foro, exclusivamente, médico.

2.4. Estatuto da LGP

O reconhecimento do estatuto da LGP, enquanto Língua Natural dos s/Surdos é um tema controverso e ainda com pouca visibilidade no panorama das Ciências da Educação. Os grupos de estudo firmados na problemática que envolve as Línguas Gestuais em todo o mundo, nos Estados Unidos da América, Holanda e Suécia, têm contribuído, desde a década de 60, para que as línguas gestuais sejam progressivamente reconhecidas em vários países, renovando a conceção de linguagem, desde sempre atribuída à correspondência de som – significado, já referida por Chomsky (John C. Marshall in Bellugi, Klima & Poizner, 1967;2000:XIII) e Damásio & Damásio (2000:405). Atualmente, esta correspondência passa por signo - significado. Em Portugal, já se conhecem trabalhos científicos nesta área desde 1994 15 . Em 2002 publica-se material didático para o ensino da Língua Gestual a crianças surdas 16. Recentemente, o Ministério da Educação homologa o Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa (2007), dez anos após o seu reconhecimento constitucional: “Proteger e valorizar a Língua Gestual Portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades” [(Artigo 74º, h) – Educação, 1997]. Este reconhecimento na Constituição da República Portuguesa ocorre quase simultaneamente com a Recomendação do Parlamento Europeu em 1998, através da Resolução sobre as Línguas Gestuais dirigida aos governos dos Estados – Membros, exortando-o a considerar a concessão de plenos direitos às línguas gestuais. Promove o seu reconhecimento como línguas oficiais das pessoas surdas, conferindo-lhes acesso à educação bilingue bem como a serviços públicos. Ainda que haja legislação vária sobre este tema, a LGP é ainda considerada uma língua recente, uma língua cujas perceção e produção são diferentes das línguas orais. Trata-se, então, de uma língua cuja representação é demonstrada e partilhada pelo gesto, percecionada pelo sentido da visão e realizada num espaço tridimensional, onde se marca a dinâmica da localização e orientação da mão, dos movimentos, configurações, expressão facial e corporal (Baltazar, 2010:3).

A configuração neurobiológica segue caminhos diferentes (imagens percetuais) dos ouvintes, mas não há evidência de menor potencial de desenvolvimento da mente e da inteligência (Baptista, 2008: 137). O hemisfério esquerdo está especializado na utilização da linguagem e não só da linguagem falada, mas antes para a linguagem em geral (oral, gestual, visual) (Hickok & al., 2001 in Baptista, 2008: 138). Adquirem a linguagem nas mesmas etapas e segundo os mesmos mecanismos, havendo, porém matrizes diferentes. As línguas gestuais são processadas exatamente como a língua falada e com o envolvimento das mesmas regiões (Hickok & al., 2001 In Baptista, 2008:138). A estrutura profunda é a mesma entre as Línguas Gestuais e as Línguas orais. Nada revela a superioridade de uma em relação à outra. É no corpo que é dado a ver e é na própria matéria do signo gestual que reside a natureza corporal do signo (Bouvet, 1997 in Correia, 2010:166) e se destitui o caráter arbitrário dado ao signo linguístico, por um lado e o caráter de mutabilidade. Ora, a identidade está marcada neste corpo e a LGP, enquanto língua que cria a realidade, cria esta diferença, mas torna-a exclusiva na divulgação da sua cultura e de múltiplas identidades. É na fase da adolescência que se edifica e define a identidade, resultando num processo de consolidação. No caso do adolescente s/Surdo, o processo é o mesmo, porém a escolha passa por pressupostos distintos, por representações e imagens do corpo, pelo que está implicado no impacto social e da comunicação com a perda de audição e pela consciência da diferença e pela relação que se estabelece com o uso de próteses auditivas, podendo difundir uma imagem negativa ou positiva (Correia, 2010:157). Nesta escolha há fatores que intervêm como as suas mundividências no domínio familiar, nomeadamente com o estatuto de ouvintes dos pais, com o percurso escolar e escolha do modo de comunicação nos diferentes contextos. Estes parâmetros influenciam a escolha de identidade do adolescente como ouvinte, deficiente auditivo, culturalmente Surdo. Existem matizados e identidades híbridas. E não há uma categoria social uniforme, recusando a mesmidade. Recorrer à invenção da comunidade s/Surda como um elemento aglutinador e de reivindicação de diferença é uma prioridade para que a manifestação política e emancipatória se expressem. Núria Silvestre e Regina Souza (2007:76) descrevem que, na década de 90 do século passado, formou-se um novo conceito de identidade da pessoa s/Surda. Cada indivíduo escolhe, assim, a sua identidade: surda, ouvinte ou dupla implicando maior ou menor benefício.

Esta mudança enceta a diversidade de identidades e plasma a ideia de que o s/Surdo, como qualquer outra pessoa atua conforma as suas necessidades e em função de uma escala de benefícios. As mesmas autoras mencionam Bat – Chava (2000) e Cole e Edelman (1991) para referir que, das três apenas a dupla e a surda parecem ser benéficas, excluindo a de ouvinte. A propósito deste ponto, na entrevista P1 encontramos uma perceção que concretiza este matizado e esta escolha de dupla identidade. Esta entrevistada concorda com a construção do indivíduo s/Surdo como sendo diferente e não deficiente associada à edificação da identidade s/Surda aportada à ideia de comunidade Surda. Sustenta a sua resposta e levanta uma questão delicada que passa pelo exercício da cidadania no plano material, usando quando convém e uma identidade e uma etiqueta e, quando perante situações de benefício legal, recorre a identidade alternativa. A atualidade e o seu caráter mutante também interferem nesta edificação identitária e como Vigotsky legitima: sendo o signo linguístico mutável e geracional, também a identidade e autoimagem vai sendo sedimentada e reconstruída. A época em que o s/Surdo vive determina a sua capacidade de adaptação. As crianças implantadas têm acesso a condições educativas que promovem a sua educação. A diferença entre significado e sentido remonta à discussão entre linguistas Vigotsky e Bakhtin, por um lado e Saussure por outro (Goldfeld, 2002:65). O psicólogo russo remete para a evolução do significado e para a mutabilidade do signo, já que o significado altera ao longo do desenvolvimento do indivíduo. Nesta noção, o mesmo acrescenta a noção de sentido como parte do signo linguístico e cuja formação se baseia nas relações interpessoais e nas mundividências. O sentido retoma a história do indivíduo e respetiva cultura. Bakhtin confere semelhante visão, ao referir-se à multiplicidade de significados que a palavra comporta. Estas possibilidades de sentido são vinculadas aos contextos e às especificidades dos indivíduos e as suas circunstâncias. O significado é, assim, socialmente compartilhado e o sentido é particular para cada indivíduo e surge no momento do diálogo (Goldfeld, 2002:64).

3. Metodologia

3.1. Caracterização da amostra

Nesta plataforma, considerámos aferir acerca de três formas de conceptualizar a surdez a partir da dicotomia deficiência vs diferença. Discorreremos acerca do contributo de uma Formadora/Docente de LGP (F1), uma Professora/Educadora de Infância em exercício na de Educação Especial (P2) e uma Audiologista (A1), reequacionando o jogo de palavras entre deficiência e diferença, que parece começar a diluir-se na construção da identidade s/Surda (Leigh, 2009). As entrevistas surgem no âmbito do doutoramento em curso e as perguntas selecionadas para analisar fazem parte de um guião de 23 questões dirigidas a estes três grupos profissionais. As três entrevistadas têm contato direto com s/Surdos na vertente profissional. Foram selecionadas de forma aleatória de entre um grupo de entrevistados que pertencem à mesma categoria profissional. No caso da Formadora/Docente de LGP (F1) é s/Surda tipo congénito, grau severo, tem 30 anos e encontra-se a terminar a licenciatura em LGP com habilitação para a docência. Leciona num Agrupamento de escolas do ensino público, a diferentes níveis de ensino há seis anos. A Audiologista (A1) tem 34 anos, é licenciada em Audiologia, tem dez anos de serviço, encontrando-se a trabalhar em estabelecimento hospitalar público. A Professora de Educação Especial (P1) tem 45 anos e 2 anos de serviço. Licenciada em Educação de Infância com pós-graduação em Problemas auditivos graves, Comunicação e Linguagem e leciona num Agrupamento de Referência de Ensino Bilingue para Surdos com alunos no pré-escolar e 1.ºCEB.

3.2. Discussão de resultados

As representações sociais referem-se a conceitos racionais e científicos incorporados no senso comum e que facilmente se transformam em imagens, crenças e esterótipos que habitam o imaginário das pessoas. Estas conceções determinam, frequentemente, a forma como encaramos a realidade e como manifestamos o nosso poder e o exercemos para construir e mudar a realidade. Passam por um sistema de pensamento desenvolvido por de grupos em relação a si e aos demais grupos, ao outro que não é o mesmo eu e que se constitui numa relação de intersubjetividade. Estas ideias plasmam ideologias e vai-se edificando a ideia de, neste trabalho, ser s/Surdo. É um jogo de espelhos entre três entidades que constituímos nesta investigação. Estas imagens mudam, por isso construímos um triângulo para verificar qual das perspetivas interfere e influencia a identidade do s/Surdo e como é que este se vê, se projeta em relação a si, ao outro e ao que o outro constrói de si. Haguiara – Cervellini (2003:57) acrescenta que a representação construída surge como uma forma de lidar com as necessidades em contextos culturais específicos nos quais se constroem vínculos relacionais. Enfrentar o que se não conhece é o desafio constante e obriga a reformular conceções cristalizadas.

Fizemos levantamento da frequências dos nomes deficiência e diferença e dos adjetivos deficiente e diferente presentes nas respostas dos entrevistados, já que é nesta dicotomia que se constrói, ainda que com divergências, a comunidade Surda. É uma questão controversa em todo o mundo e que encerra múltiplas discussões no próprio seio de cada comunidade e nas publicações da especialidade seja escrita pelo s/Surdo seja pelo ouvinte. Recordamos, aqui, o documentário Vozes do El-Sayed de Oded Adomi Leshem (2008) o Skeik El-Sayed, beduíno s/Surdo, estabeleceu-se no deserto israelita de Negev. De geração em geração, a surdez tornou-se parte de uma herança genética e, por isso, é representada como um facto natural e à qual foi retirado o estatuto de dificuldade nas suas vidas. Facto semelhante ocorreu na ilha Martha’s Vineyard, localizada a 5 milhas a sudeste de Massachussets, onde uma parte substancial da população era surda, tendo, por isso sido adotada uma linguagem gestual simples, mas poderosa. Estas realidades sugerem uma construção identitária que não assenta na deficiência e que esta terá sido uma construção do ouvinte não deficiente. Por tudo o que foi exposto, afigura-se uma nova concepção. Na verdade, se a deficiência passa por uma construção do ouvinte para etiquetar o que não ouve, vejamos que representação parece emergir na formadora/docente de LGP s/Surdo (F1), na Audiologista (A1) e na Professora de Educação Especial (P1).

  Entrevistas (A1+F1+P1)
Palavras A1 F1 P1 Frequências totais
Deficiência/Deficiente 0/0 0/13 4/7 4/20
Diferença/Diferente 0/4 0/8 4/6 4/18
TOTAIS 0/4 0/21 8/13 8/38

Tabela 1: Distribuição de frequências pelas Entrevistas

Na inventariação por frequência destas palavras e especificamente do adjetivo deficiente foi mais frequente na entrevista do Formador de LGP (F1) com 13 frequências e surge na entrevista de Professor de Educação Especial (P1) repetindo-se 7 vezes. Na entrevista da Audiologista (A1) não há qualquer referência ao adjetivo deficiente nem ao nome deficiência, termos específicos da sua área profissional. Contrariamente, a ocorrência do par diferença e diferente surgem evidenciados em todas as entrevistadas, distribuídos de forma díspar. F1 refere 8 vezes o adjetivo diferente, seguindo-se P1 e A1 com frequência de 6 e 4 respetivamente. Ainda assim, o total correspondente a este par de lexemas é inferior ao par antecedente (deficiência/deficiente). Em ambos os casos, sãos os representantes da escola inclusiva com estatuto pedagógico de Docentes de LGP (F1) e Educação de Infância (P1) que determinam a supremacia concretizada nos totais de 21 e 13 por esta ordem de consulta da tabela. Confrontando com outros dados, a consulta da Tabela 2 dá-nos a conhecer retratos da surdez. A questão evidencia uma oposição binária e cada entrevistada responde de forma distinta. Se por um lado, temos o fator médico-terapêutico evidenciado em A1 com a nominalização traduzida nas palavras diminuição e alteração, denunciando não a noção de deficiência, mas de diferença, como se constata na questão acerca do que representa uma pessoa s/Surda. A1 denuncia alguma coerência na representação que assume a pessoa s/Surda: “É uma pessoa diferente…especial”. P1 aponta duas possibilidades de imagem ou representação, admitindo dois contextos nominalizados o de deficiência como uma patologia e o de diferença como construção social. Quando torna o discurso reflexivo, dá primazia ao conceito de diferença, concretizada resposta às representações são diferentes. F1 introduz o conceito de igualdade na dicotomia s/Surdo – ouvinte para a referir a representação de si própria. Dá primazia a essa identidade e lista um conjunto de tipologias de pessoas deficientes, atribuindo o mesmo estatuto a pessoas cegas, partilhando o mesmo grau sensorial. Acrescenta, nesta autodefinição pessoas deficientes motores, como uma etiqueta legítima para a marca no corpo, diferente da marca sensorial que é, como a surdez, invisível. Esta conceção foi transporta para a LGPcomo gesto para deficiente e cuja descrição tridimensional passa por fazer o movimento de cortar uma das mãos. A conceção de deficiente está marcada, para os s/Surdos pela ausência de uma parcela corporal ou pela visibilidade dessa deficiência. A surdez é, em primeira instância, invisível. A sua representação é implícita ao ser s/Surda e ao caráter de diferença e igualdade plasmada por todos iguais, todos diferentes, variante do slogan todos diferentes, todos iguais da década de 90. F1 destitui, sem hesitar, o caráter de deficiente quando define a surdez como uma característica actualizável no ser s/Surda.

Estas respostas parecem manter alguma coerência na determinação de conceptualização do que é solicitado. Estas as questões surgem contextualizadas e tendem a aferir as diferentes perspetivas. Quando perguntamos o que é a surdez, A1 e P1 definem-na como diminuição (A1), como uma perda de audição (P1), mantendo uma conceptualização de subtração do sentido de audição que interfere no processo de comunicação, para o qual A1 e P1, por inerência das funções, têm soluções. Por um lado, a rentabilização da capacidade auditiva remanescente (A1), por outro (P1) a adaptação de estratégias comunicativas estimulando ora a comunicação gestual ou oral em função do grau e tipo de surdez. Neste ponto, A1 e P1 convergem ao conceber uma diminuição ou perda e em relação à qual há que atuar de forma concertada para potenciar a comunicação eficaz. F1 define a surdez como uma característica de igualdade, remetendo, mais uma vez a dicotomia s/Surdo vs. ouvinte. Acrescenta que esta igualdade padece, no entanto, de sensibilidade ausente no quotidiano. No plano material e concreto, introduz o lexema problema para se referir à relação da dicotomia entre ouvintes e s/Surdos e que este problema passa pela comunicação. Interfere com a autoimagem quando há uma atitude discriminatória e ausência de apoio para lidar com os s/Surdos, neste caso de F1.

Perguntas Respostas de Entrevistadas
A1 F1 P1
Para si, o que é a surdez? Uma diminuição da capacidade auditiva, de compreender, de comunicar, de alguma forma, dificuldade na comunicação. O quê é que eu acho da surdez, para mim? Para mim, ouvintes e surdos, é tudo igual. Só que o problema é que os surdos, sei lá, eu/o corpo tudo parece igual, mas fico um bocadinho triste porque, às vezes os ouvintes gozam os surdos, ou às vezes não apoiam, não têm sensibilidade para as coisas, e fico aborrecida com isso. Perda da audição. É sempre o caso de uma pessoa que tem perda de audição. Portanto, ou ouve mal, ou menos, ou não ouve, lá está depende do tipo e do grau da audição que tenha. Depois o trabalho insiste na comunicação da parte da comunicação gestual ou oral ou as duas dependendo da/do que a outra pessoa nos responde ou que é capaz de nos responder.
Que representação assume uma pessoa surda, para si? É uma pessoa diferente.
É uma pessoa especial.
Mas é para fazer a frase, é isso?
Mas quer dizer, eu tenho que fazer uma frase em Língua Gestual, é isso? Sei lá, eu já disse, IgualdadeEu sou surda, sou surda parcial, sinto-me igual aos ouvintes, não tenho problema com os surdos, sei lá, não tenho outra resposta.
Já respondi se calhar. (Eu partilho que eles são diferentes).
Para si, a surdez é uma deficiência ou uma diferença ? É uma diminuição. É uma alteração, não sei se considerar diferente… É uma diminuição. Eu prefiro só dizer surdo, mais nada, deficiente não tem nada a ver, não…porquê? Há pessoas que são cegas, há pessoas que são surdas, há pessoas que sei lá, que são deficientes motores, mas em geral, eu prefiro só dizer a palavra surdo, só. Nos somos todos iguais, todos diferentes, a verdade é essa. Socialmente é uma diferença.
Patologicamente é uma deficiência.
É assim eu sou um bocado surda e não me considero deficiente… É uma diferença.

Tabela 2: Retratos da surdez

4. Conclusões

O reconhecimento da diferença resultante das múltiplas identidades é uma característica da modernidade, promovendo um diálogo com os s/Surdos. Parece não haver uma única identidade da pessoa s/Surda tal como na comunidade ouvinte que pauta pela diversidade e variedade de identidades. Neste sentido, não podemos referir, à luz do que se vem dizendo que há exclusividade de uma única forma de identidade com o grupo. A categorização entre língua gestual e cultura visual e língua oral e cultura oral não é unívoca. Privilegiam-se formas de comunicar na plataforma que se constitui o multilinguismo. As entrevistas confirmam este matizado, reconhecendo, neste caso, a diferença como uma característica comum e não tanto a deficiência. Na inventariação por frequência destas palavras e especificamente do adjetivo deficiente foi mais frequente na entrevista do Formador de LGP (F1) com 13 frequências e surge na entrevista de Professor de Educação Especial (P1) repetindo-se 6 vezes. Na entrevista da Audiologista (A1) não houve qualquer referência ao adjetivo deficiente nem ao substantivo deficiência. Esta matriz parece anunciar uma nova forma de definir a identidade s/Surda no paradigma médico - terapêutico. O peso da história e a sua herança parecem, neste caso, não estar evidenciados, quando a representante da comunidade médica apenas se refere ao s/Surdo como sendo diferente, usando apenas o adjetivo fechados como um dos atributos negativos apontados por Harlan Lane (1992:47).

Boaventura Sousa Santos (1999) sintetiza que o processo de sedimentação que os grupos sociais e os indivíduos vão edificando, podendo dispor e atualizar identidades contraditórias ou complementares, não obstante a primazia atribuída a uma delas, em função das circunstâncias. Este processo revela-se de extrema importância para compreendermos a política que esta identidade poderá caucionar ou protagonizar. (p.46). Pensamos haver, porém, especiais agentes privilegiados com um papel vetorial na construção identitária e cultural: os professores de línguas pela sua formação linguística e cultural e a sensibilidade intrínseca (Silva & Oliveira, 2011b:10). O processo de aprendizagem de uma língua estrangeira está também dependente de fatores sócio - afetivos motivados pelas representações que se tem da língua em causa. No caso que estamos a abordar, pensamos que a LGP está também dependente das representações que esta população reproduz.

Isabel Galhardo (2009:229) descreve que existe hoje uma maior abertura à realidade do s/Surdo, argumentando acerca do fundamento da sensibilidade. No entanto, descreve todos os procedimentos para reivindicarem os seus direitos, não como um cidadão comum, mas como pessoa s/Surda que são, revelando que a diferença tem de ser atestada por declaração médica., na qual se descrevem as especificidades da audição de cada corpo e identidade surda que, na origem e para que se possam emancipar, precisam da etiqueta do paradigma médico-terapêutico. A dupla identidade a que nos referimos permite duplamente acesso a uma emancipação referida pelos dados na Tabela 2 e concretizado por Boaventura Sousa Santos (1999) quando sugere um novo imperativo categórico definido pela plataforma pós – moderna e multicultural das políticas de igualdade e de identidade: “temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza” (p.44).

Notas

1 Referência ao título do artigo de Helena Pereira Melo, cf. Bibliografia.
2 Disponível em: http://www.gddc.pt.
3 Disponível em: http://www.gddc.pt.
4 Expressão que dá título de livro de Maria Emília Traça (1998)
5 Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais Adotada e aberta à assinatura em Estrasburgo, a 1 de fevereiro de 1995. Entrada em vigor na ordem internacional: 1 de fevereiro de 1998. Disponível em http://www.gddc.pt
6 Carta Europeia da Línguas Regionais ou Minoritárias1 (1992). Resolução do Conselho da Europa. Disponível em http://www.coe.fr
7 Publicado oficialmente em 1998. Disponível em http://www.coe.fr.
8 Despacho n.º 7158 de 11 de maio de 2011 que estabelece a implementação, no ano letivo de 2011/2012, do Programa de Português Língua Segunda (LP2) em início de ciclo, ou seja: no 1.º; 5.º; 7.º; 10.º ano de escolaridade.
11 Apenas referiremos Surdo com maiúscula quando a associada às palavras cultura, mundo e comunidade. Nestes casos o “s” minúsculo não será redigido, já que estaremos a citar ou descrever os conceitos que estas expressões encerram.
13 Disponível em http://www.inr.pt ou em www.apsurdos.pt
15 Amaral, M.A, Coutinho, A. Martins, M.R.D. (1994). Para uma Gramática de Língua Gestual Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, S. A.
16 Faria, I. H., Ferreira, J. A., Barreto, J., Martins, M., Neves, N., Santos, R., Vilela, S. (2002a.) +LGP – Materiais de Apoio ao Ensino da Língua Gestual Portuguesa: O Corpo. Laboratório de Psicolinguística, FLUL. Publicação em CD-Rom, versão 1.0.

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