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Isabel Sofia Correia
Isabel Sofia Correia
Professora e Investigadora
O parâmetro expressão na Língua Gestual Portuguesa: unidade suprassegmental
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Publicado em 2009
Exedra: Revista Científica - Educação e Formação - Nº. 1, pags.57-68
Isabel Sofia Correia
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Resumo

O presente artigo pretende abordar um dos componentes não manuais da produção do gesto em Língua Gestual Portuguesa. Partindo de uma abordagem comparatista entre a LGP e a Língua Portuguesa procurar-se-á reflectir sobre o valor da expressão, não como ferramenta de apoio à comunicação, mas sim como traço pertinente na distinção de significados. Vamos igualmente tentar perceber em que medida esse parâmetro se revela essencial na produção, compreensão e ensino de LGP, assumindo-se como parte integrante do sentido do gesto. Para que possamos encetar esta breve reflexão, será conveniente atentar em alguns conceitos fundamentais pertencentes ao domínio da Língua e da Linguística, privilegiando-se o subdomínio da LGP

1. A Língua gestual portuguesa: Língua natural, Língua materna, Língua segunda

É bastante comum associar-se língua e linguagem, encarando estes termos como pertencentes ao mesmo campo semântico 2. Se tal acepção não é errada, carece de precisão, podendo até induzir quem os profere em alguns equívocos. De facto, por Linguagem entende-se a capacidade inata, localizada sensivelmente no hemisfério esquerdo, que o ser humano tem em utilizar e compreender uma língua, sistema organizados de signos arbitrários e convencionais partilhados por uma comunidade (Fromkin & Rodman, 1993). Assim, o primeiro dos conceitos depende de capacidades neurológicas e estímulos sociais, enquanto que o segundo resulta de uma construção humana variável de acordo com parâmetros culturais, históricos e condicionada pelo grupo que a utiliza. È também frequente distinguirem-se os dois vocábulos atribuindo-se ao primeiro uma função mais vaga 3, muitas vezes de suporte não verbal, e ao segundo uma característica de maior formalidade associada à fala e à escrita. Esta concepção leva a que se considere a LGP como linguagem e não como língua, atribuindo-lhe um carácter de inferioridade face à “língua” falada, provavelmente devido ao seu meio de expressão ser espacio-visual e ao facto de o sistema de escrita ser ainda embrionário. Contudo, tal associação está longe de ser verdadeira.

A linguagem gestual deve ser encarada como elemento paralinguístico, sendo mormente utilizada como instrumento de apoio à comunicação oral, contribuindo para um grau de maior ou menor expressividade do emissor que deve ser relativizado pois pode depender do ponto de vista do receptor e da situação comunicacional. As Línguas Gestuais devem ser encaradas como línguas humanas, na medida em que obedecem a parâmetros linguísticos universais, como a arbitrariedade, a convencionalidade, a recursividade e a criatividade.

Não há uma língua gestual universal, mas sim diversas línguas gestuais, de acordo com as comunidades que as utilizam. Assim, percebe-se que obedece ao critério de arbitrariedade, sendo um mesmo conceito expresso de formas distintas, não havendo relação directa entre o objecto e a sua representação linguística. Contudo, não podemos esquecer que estamos perante uma língua espacio-visual onde a representação do mundo se faz através do gesto descodificado pela visão. Desta forma, é possível que, por vezes, sobretudo devido a motivações histórico-sociais que estiveram na base da criação do gesto, haja um grau de iconicidade entre a palavra e aquilo que esta representa. Os designados gestos icónicos (Amaral M.A.; Coutinho, A.; Delgado Martins, M.R, 1994) são aqueles que apresentam semelhanças, na maior parte das vezes respeitantes à relação com a configuração geométrica do representado, com o objecto que codificam. A existência destas representações poderá estar na origem do preconceito de que muitas vezes são alvo as línguas gestuais, associando-as não a um sistema complexo de signos, mas a uma forma de expressão mímica. Todavia, como o comprovam diversos estudos (Amaral M.A.; Coutinho, A.; Delgado Martins, M.R, 1994; Quadros & Karnopp, 2004) ainda que estes gestos possam ser compreendidos por indivíduos que não dominem uma língua gestual, a existência de gestos “semiicónicos ou interpretativos” e gestos arbitrários 4 torna impossível a compreensão de um texto numa língua gestual por parte de quem não a compreenda enquanto sistema organizado.

Pelo que temos vindo a constatar, as línguas gestuais assumem características exclusivas que as distinguem, havendo, como no caso das línguas orais, uma pluralidade de idiomas. Prova disso, são a convencionalidade dos gestos, definidos e variáveis consoante as comunidades a que pertencem e a arbitrariedade que os caracteriza e que torna impossível a dedução de frases numa língua gestual apenas por comparação com representações mímicas da realidade. Resta-nos ainda acrescentar que as línguas gestuais reflectem a capacidade criadora das línguas humanas, visto que novos vocábulos vão surgindo à medida que a necessidade de exprimir conceitos e novas realidades se impõem. Da mesma forma, é igualmente possível aumentar frases, através da recursividade patente por exemplo, como nas línguas orais, no uso da adjectivação 5.

Todavia, pese embora a existência de vários estudos linguísticos que atestam estas afirmações, desde os pioneiros trabalhos de Stokoe (1965) até, mais recentemente, ao completo estudo sobre Língua Gestual Americana (American Sign Language) de Sandler & Lillo-Martin (2006) o reconhecimento da validade social e cultural destas línguas ainda está a dar os seus primeiros passos em alguns países, mais concretamente, no caso da LGP. Só recentemente esta língua foi considerada como ferramenta essencial para o pleno acesso ao conhecimento por parte das crianças surdas, mas não é ainda considerada como língua minoritária oficial de Portugal mesmo que haja recomendações nesse sentido e uma efectiva luta de algumas associações de surdos com o fim de obter esse reconhecimento 6. É frequente que este meio de comunicação seja ainda encarado por parte dos ouvintes como rudimentar ou icónica, não sendo entendida como língua e expressão de uma comunidade. Tais equívocos prendem-se, a nosso ver, não apenas com o desconhecimento deste sistema linguístico, mas também na dificuldade em compreender pacificamente certos termos que definem a relação da língua com a comunidade a que pertence. Referimo-nos aos conceitos de Língua Materna, Primeira Língua, Língua Segunda, Língua Estrangeira e Língua Natural. Como demonstra Spinassé (2006) há divergências na definição e delimitação do significado e alcance destes vocábulos. Contudo, não sendo objectivo deste breve artigo reflectir, problematizando, as fronteiras que separam os sentidos destas palavras, procuraremos apenas de forma sucinta aplicá-los à LGP 7, uma vez que a sua relação com o individuo surdo assume contornos particulares.

Uma criança portuguesa, filha de pais portugueses e residente em território nacional, terá como Língua Materna aquela que adquiriu, por processo natural e estímulo social, no seio da sua comunidade familiar, o Português. Se nos reportarmos a uma criança surda que partilhe as mesmas condições, sublinhando-se o facto de os seus pais e comunidade familiar não dominarem a LGP, mas sim a Língua Portuguesa, a sua Língua Materna será a mesma da criança ouvinte, ou seja, o português. Todavia, como é do conhecimento geral, a língua portuguesa assenta num código fónico, vedado a uma criança com deficiência do espectro auditivo. Assim, ainda que neste contexto ela consiga falar, produzir palavras usando os articuladores característicos do aparelho fonador 8, o domínio que tem do português será sempre deficitário, logo o seu acesso ao conhecimento poderá estar comprometido. Isto acontece porque embora uma língua oral possa ser a Língua Materna do surdo, ela não é a sua Língua Natural, ou seja, aquela que está fisiologicamente predisposto para adquirir e produzir. Não se entenda com esta nossa afirmação que defendemos uma imersão exclusiva na LGP. Se é certo que esta é a sua Língua Natural, podendo ser a sua Língua Materna se estiver presente no contexto familiar, a verdade é que o cidadão surdo que viva em Portugal deve dominar de forma mais proficiente possível o português. Esta é a sua Língua Segunda, ou seja, aquela de que necessita para comunicar numa comunidade mais alargada e para ter acesso ao conhecimento escrito. Assim, é fulcral que desde cedo a criança surda seja estimulada a compreender o português, nomeadamente a sua estrutura, para uma inclusão plena na sociedade.

A nosso ver, para um melhor ensino do português e da LGP é fundamental conhecer a organização destas línguas para que se conduza o aprendente a reflectir sobre elas. Conhecer uma língua implica perceber como esta se estrutura, não apenas produzi-la com maior ou menor correcção. É importante que se entenda a fonologia, morfologia, sintaxe e semântica da língua de modo a poder usá-la com acuidade e, sobretudo, de maneira a poder transmiti-la numa situação de ensino formal. O contributo que nos propomos dar para um melhor conhecimento reflexivo da LGP centra-se nos seus aspectos fonológicos e suprassegmentais resultando, essencialmente, do contacto que temos vindo a efectuar com a língua quer como seus aprendentes na óptica de língua estrangeira, quer como ferramenta de comunicação e de estudo linguístico que temos vindo a aplicar na ESEC há já alguns anos.

2. Fonologia da LGP: contra-senso e legitimidade

Abordar a estrutura fonológica da LGP é um desafio complexo, sobretudo pela escassez de estudos nesta área do saber. O problema coloca-se logo na terminologia a utilizar. Como sabemos, a palavra fonologia tem raízes no grego, sendo composta por “phonos” (=som/voz) e “logos (conhecimento/palavra). Como não será difícil constatar, o primeiro destes elementos pode levantar algumas reservas quando aplicado a uma língua que não usa o som como entidade pertinente, seja no âmbito da produção ou da percepção, mas sim o gesto e a visão. William Stokoe, um dos primeiros linguísticas que se dedicou ao estudo da estrutura da ASL nos anos 60 e 70, terá sido sensível a esta contradição terminológica, tendo proposto uma nomenclatura distinta para o ramo da linguística da língua gestual que se dedicava ao estudo dos segmentos na LGP. Considerando a mão enquanto elemento central da produção do gesto, este estudioso americano propôs que o estudo das unidades discretas da LGP se chamasse quirologia (do grego khiros=mão) e as unidades significantes distintivas da LGP seriam designadas por queremas. Todavia, esta designação nem sempre é aquela que se prefere, continuando a usar-se o termo fonologia. Esta opção justifica-se, segundo Amaral (1994, p. 59) “por uma questão de facilitação de terminologia e também para por em evidência o carácter linguístico deste sistema, passou-se a adoptar a terminologia da linguística para o estudo da língua gestual”.

Não é propósito deste artigo reflectir sobre escolhas terminológicas. Contudo, ainda que compreendamos a necessidade de se ajustar a terminologia de modo a que esta seja o mais universal possível no que respeita ao estudo das línguas humanas, o facto de se estruturar, definir e nomear uma língua visual recorrendo a léxico pertencente ao campo semântico do som é estranho ou até algo bizarro. No nosso entender, é necessário entender a LGP enquanto língua com propriedades comuns a outras línguas, mas também nos parece pertinente considerá-la na enquanto expressão que não recorre ao som. Não cremos que se lhe retire estatuto ou dignidade se nos ativermos a esta distinção que se prende com o maior ou menor destaque que damos à raiz etimológica dos conceitos. Porém, como já o dissemos, não é este o objectivo desta reflexão. Mais relevante, a nosso ver, do que discorrer sobre critérios de terminologia, é perceber a estrutura fonológica ou quirológica deste sistema linguístico.

William Stokoe terá sido dos primeiros linguistas a afirmar que o signo gestual não tinha um carácter holístico, isto é, não deveria ser encarado como um todo, mas sim à semelhança do que se considera para as línguas orais, ou seja, constituído por partes discretas e arbitrárias que se combinam para formar a palavra (STOKOE, 1965 referido por Amaral M.A.; Coutinho, A.; Delgado Martins, M.R 1994). Tentemos ilustrar esta ideia através de dois exemplos. Assim, em português, consideramos que a palavra “gato” é composta por quatro fonemas /g/ /a/ /t/ /u/. Estas unidades mínimas podem combinar-se com outras e formar novas palavras. A ausência, presença ou alteração de uma delas é suficiente para a diferença entre diversos vocábulos. Se mudar o primeiro fonema desta palavra por outro, por exemplo, /p/ obtenho o vocábulo “pato”, que se distancia do anterior pela mudança de um único segmento. Em LGP o gesto é também composto por diversas unidades discretas que determinam o significado global do gesto, são elas, de acordo com o esquema proposto por Stokoe, a localização, o movimento e a configuração da mão 9. Assim, se mudássemos qualquer uma delas obteríamos uma palavra diferente o que se constata, por exemplo, nos pares CINCO e SAPATO representados pela mesma configuração de mão, partilhando a localização espacio-corporal, mas alterando o parâmetro movimento, ausente no gesto CINCO, presente no gesto SAPATO 10. Trabalhos posteriores a Stokoe, como os de Battison (1974, 1978, referido por Sandler e Lillo-Martin, 2006) adicionaram ainda dois outros parâmetros, considerados essenciais na estrutura da LGP, a orientação da mão e os aspectos não-manuais, como a expressão facial. O que nos parece importante nestas investigações, e em todas os que se têm vindo a desenvolver neste âmbito, é que eles dão conta de um Universal Linguístico que caracteriza a LGP, o da dupla articulação. Tal como na Língua portuguesa, também na LGP se encontram dois níveis: o do significado, constituído pela imagem mental dos conceitos e o do significante de que fazem parte as unidades mínimas com carácter distintivo. De acordo com o que afirmámos até aqui, o parâmetro expressão parece ser um destes constituintes geradores de significados que são determinados pela sua ausência, presença ou alteração na constituição do gesto. Observemos de perto o uso deste parâmetro na LGP para nos ajudar a refinar esta nossa hipótese.

3. A expressão na LGP: elemento fonológico

À semelhança do que acontece com os vocábulos “Língua” e “Linguagem”, também o termo “Expressão”, pelo seu uso, se encontra muitas vezes afastado do significado linguístico que pode comportar. Geralmente, esta palavra associa-se à postura corporal, ao maior ou menor uso de linguagem gestual, à expressividade física das emoções, não sendo, à primeira vista, reconhecido o seu valor enquanto unidade pertinente de um sistema linguístico. A vulgarização deste conceito acontece, a nosso ver, pelo facto de se perspectivar a língua como manifestação oral. Uma correcta postura, um uso adequado de gestos expressivos e auxiliares do discurso são factores que contribuem para uma mais eficaz comunicação oral. Além disso, a expressividade com contornos linguísticos, isto é, enquanto elemento pertinente na formação de sentidos, está reservada ao uso da entoação.

A entoação é uma flutuação da curva da frequência fundamental ao nível da frase que é responsável em Português pela distinção de intenções comunicativas e expressivas (Delgado-Martins,1992). Assim, a nossa curva entoacional varia consoante queiramos exprimir interrogações, exclamações ou até manifestar dúvidas, certezas e outras reacções inerentes ao discurso. Esta unidade suprassegmental, assim designada porque condiciona os segmentos e está acima deles, é fundamental na modelação de significados em português. A frase hoje vamos jantar fora pode constituir-se como interrogação, exclamação dependendo apenas da curva entoacional que a define. Desta forma, a entoação é do domínio fonológico, mais concretamente do âmbito da prosódia que estuda a dimensão suprassegmental da fala.

Na LGP a expressão 11 adquire funções semelhantes às que acabámos de descrever para a entoação. Estudiosos como Liddell (1986) consideram a expressão apenas como uma reflexão da sintaxe. Para estes linguistas, o uso da expressão facial marcaria o fim de uma frase e o seu tipo. No nosso entender, pela observação que temos vindo a fazer em relação à LGP, concordamos com Sandler & Lillo-Martin (2006) que afirmam que “facial expression corresponds to intonation” (p.257). Na Língua portuguesa, a entoação depende exclusivamente das cordas vocais, na medida em que estas são responsáveis pela variação do tom de voz, ou seja, na variação em torno da Frequência Fundamental (F0). Na LGP, ao contrário do que acontece nas línguas orais, as variações suprassegmentais relacionam-se com vários articuladores, como as sobrancelhas, as pestanas, as faces e os lábios, sendo que podem ocorrer em simultâneo ou independentemente, desempenhando uma ou várias funções. A expressão é um elemento passível de criar sentidos distintos dependendo do contexto em que se insere. Não se trata apenas de mera reflexão das emoções do indivíduo ou de auxiliar de comunicação, mas contribui efectivamente para a compreensão da globalidade do texto produzido. Há diversas maneiras, mais ou menos enfáticas, de expressar tristeza, zanga, descontentamento, entre outras emoções ou estados, mas isso deve ser tratado enquanto elemento paralinguístico. O uso da expressão para representar uma pergunta ou uma admiração independe da “expressividade” natural do emissor ou do seu estado de espírito. Sandler e Lillo-Martin (2006) constatam que “signers use facial expression in both non-linguistic and linguistic ways, another parallel with intonation in spoken languages” (p.263).

Procuremos ilustrar estas afirmações com exemplos das línguas em análise. Em português a frase afirmativa, “passei no exame” pode ser dita com maior ou menor efusividade, como neutralidade ou, dependendo do falante e do contexto, com algum descontentamento. O mesmo se passa em LGP para afirmação idêntica. Todavia, não se esperaria que o falante português dissesse essa frase acompanhada de uma curva entoacional ascendente, típica das estruturas interrogativas, sendo necessário que usasse a frequência correspondente às frases declarativas, independentemente do seu estado de espírito. O mesmo acontece em LGP. Quando o gestuante pretende afirmar algo não é expectável que acompanhe o discurso com movimentos típicos de interrogações como o arquear das sobrancelhas. Assim, a expressão facial assumese enquanto unidade prosódica codificada contribuindo para o ritmo significativo do enunciado.

Atentemos ainda num outro exemplo que ilustra o valor da expressão em LGP como elemento gerador de significados distintos. Consideremos os advérbios interrogativos “porque” e “porquê”. Em Português, estas palavras constituem um par mínimo pois distinguem-se apenas num segmento, a vogal final. No primeiro caso, a palavra termina na vogal fechada posterior [ɨ] e no segundo da vogal média anterior [e] 12. A primeira é sempre átona enquanto a segunda, no caso em apreço, constitui a sílaba tónica. Assim, a entoação não se afigura como elemento pertinente para distinguir os diferentes sentidos e usos destes vocábulos. Em LGP os gestos para PORQUE e PORQUÊ são idênticos no que diz respeito ao movimento, configuração, localização e orientação. Contudo, distinguem-se pela expressão que acompanha cada um deles, no primeiro caso de neutralidade e no segundo de interrogação. A nosso ver, este exemplo coloca questões interessantes, nomeadamente o facto de este parâmetro poder ocorrer como unidade constituinte do gesto, logo ao nível do fonema na Língua Portuguesa. Assim, o grau de vozeamento e o ponto de articulação que distingue as duas vogais das palavras em apreço seria aqui representado pela ausência/presença de expressão facial.

Todavia, como sabemos, a palavra “porquê” ocorre apenas em contextos interrogativos pelo que requer contornos entoacionais/expressivos específicos, sendo por isso difícil perceber se o uso da expressão facial na produção desta palavra se reporta à curva do enunciado ou forma parte integrante do gesto. Além disso, devido à estrutura sintáctica da LGP, o uso de “porque” como interrogativo não é pertinente, como acontece em Português, uma vez que não é utilizado como introdutor de frase, mas, de forma geral, como marca final:

4. Língua portuguesa: Porque faltaste à aula?

LGP: faltar à aula porquê

Como se vê, há uma assimilação de um vocábulo por outro pelo que não é produtivo enquanto termo de comparação. A questão do lugar da expressão na estrutura fonológica/quirológica da LGP ainda levanta muitas questões. Contudo, supomos que é indubitável o seu valor prosódico e pertinência linguística. Vários exemplos demonstram a sua existência enquanto elemento equivalente à curva entoacional na língua portuguesa. Este pequeno contributo visa apenas sublinhar o estatuto da LGP enquanto sistema linguístico com parâmetros específicos, mas passíveis de serem perspectivados de acordo com os Universais Linguísticos que caracterizam as línguas humanas. A expressão é um dos traços da LGP que ilustra como a sua estrutura assenta em complexas relações de âmbito fonológico. Resta-nos apenas concluir este artigo deixando uma nótula sobre a pertinência deste traço distintivo no ensino da LGP.

5. A expressão e o ensino da LGP

Ensinar uma língua implica, como dissemos no início deste trabalho, reflectir sobre ela, compreender a sua estrutura, procurando transmitir as suas características intrínsecas. A perspectiva de abordagem de uma língua no ensino formal difere quando esta é língua materna, primeira língua, língua segunda ou língua estrangeira. Conforme verificámos no ponto um deste artigo, esta distinção assume contornos complexos quando se trata da LGP. Essa complexidade pode ainda vir a ser acentuada se considerarmos o público a que se destina o ensino desta língua.

Se os alunos forem crianças surdas, com língua Materna LGP, ou adultos surdos que reúnam essa condição, então, a nosso ver, deve procurar-se chamar a atenção para os diversos parâmetros desta língua, conduzindo os alunos a reflectir na importância da Expressão enquanto elemento suprassegmental. Alguns estudos (Reilly e Bellugi, 1996 referido por Sandler e Lillo-Martin (2006) demonstram que aquisição do parâmetro expressão enquanto elemento linguístico distintivo faz parte do processo de aquisição da LGP pelas crianças surdas. Todavia, a nosso ver, o facto deste traço fazer parte do conhecimento implícito dos discentes não implica que seja descurado na sala de aula. As crianças ouvintes revelam muitas vezes um uso deficiente da entoação como unidade potenciadora de sentidos distintos, havendo a necessidade de se realizarem exercícios que as conduzam à utilização eficaz desse parâmetro. Supomos que o mesmo é válido para as crianças surdas em relação à expressão.

Da mesma forma, se os alunos de LGP forem adultos, com LGP enquanto língua materna ou mesmo com conhecimentos sólidos em LGP, que facilmente adquirem por ser a sua língua natural, uma abordagem reflexiva parece-nos essencial. Os discentes devem estar conscientes da estrutura interna da língua, devendo ser capazes de reflectir sobre ela, interrogando a sua organização. Não pretendemos com esta afirmação sugerir que se conduza os estudantes, como dissemos para o caso das crianças, a usar adequadamente a expressão, mas sim que se sublinhe a necessidade de nos abstrairmos do conteúdo imediato do discurso, para analisarmos os seus constituintes linguísticos sejam do domínio do significado, sejam do âmbito do significante. Caso o ensino de LGP seja dirigido a estudantes ouvintes, será pertinente abordar a expressão em contraste com a entoação que caracteriza a sua língua materna, enfatizando que este parâmetro não corresponde a nenhuma mímica ou teatralidade hiperbólica do enunciado, mas é, sim, um elemento essencial para uma produção e compreensão efectivas do discurso. O recurso a observação directa (pelo contacto com colegas surdos, por exemplo), em vídeo e a comparação com outras línguas gestuais será importante para entender a expressão como unidade linguística comum às línguas espacio-visuais e não como mero espelho de emoções.

Em suma, encarar a LGP como sistema de signos característico de uma comunidade implica estudá-la na sua profundidade o que, pelo menos no que nos diz respeito, se afigura como um desafio complexo, mas estimulante. Terminamos este artigo com uma citação de Sandler & Lillo-Martin (2006) que sublinha o nosso principal propósito, entender a LGP como língua autónoma, mas não descurando as suas relações com o a Língua Portuguesa que importa conhecer com a maior precisão possível para se inferirem, comparativamente, as semelhanças e as, por vezes, profundas diferenças que as caracterizam:

This enterprise is valid to the extent that It is approached with the right balance of two elements: knowledge about spoken language and open-mindedness about the possibility of significant modality differences ( Sandler & Lillo-Martin 2006, p.114).

Notas

2 Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2003) uma das definições de Linguagem é “qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais, etc”(p.2285). Para o termo Língua podemos ler no mesmo dicionário “sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade linguística usam como meio de comunicação e de expressão, falado ou escrito” (p.2283). No mesmo dicionário, na definição de Linguagem, pode ler-se “ o mesmo que língua” (p.2285), sendo notória a proximidade destes termos.
3 Linguagem pode ser entendida também como qualquer sistema de símbolos ou objectos constituídos como signos, por exemplo, linguagem das cores ou ainda enquanto “sistema secundário de sinais ou símbolos criados a partir de uma dada língua” Houaiss (2003, p.2285). Talvez seja a segunda acepção que citámos que se relacione com o “pré-conceito” que se tem da LGP, acreditando que ela se limita a mimar o real, recorrendo, de forma limitada, ao apoio da Língua Portuguesa para construir a sua expressão. Como esperamos demonstrar ao longo deste trabalho, esta ideia não é só preconceituosa, como também carece de argumentos válidos, sendo facilmente rebatida através de estudos linguísticos.
4 Designamos por gestos “semi-icónicos” ou interpretativos todos aqueles que representam um objecto recorrendo à sinédoque ou a elementos caracterizadores e /ou relacionáveis com o objecto ou acção. São exemplo deste tipo de gestos na LGP o gesto para REI cuja configuração e localização remete para um objecto associado à realeza, a coroa, e o gesto para DIA que consiste no movimento da mão em frente ao rosto, do queixo até à zona da testa, representando o movimento do nascer e elevar do sol. Gestos arbitrários são todos aqueles que não encontram qualquer motivação explicável por associação ou interpretação (dedutível) da realidade. Alguns exemplos em LGP são os gestos de Leite que consiste na localização da mão aberta, com o polegar, junto à têmpora direita, com um movimento progressivo de fechamento dos quatro dedos da mão. Para mais exemplos veja-se Amaral et al, (1993); para uma distinção mais pormenorizada no tipo de gestos característico das línguas gestuais veja-se Klima e Bellugi (1979) Klima e Bellugi (1979)
5 Convém notar, porém, que a LGP se caracteriza pelo uso do recurso, também este universal, à economia linguística, parecendo aproximar-se mais das línguas sintéticas do que das analíticas.
6 Constituição da República, artigo 74,h. Além disso há uma advertência do Parlamento Europeu “na Resolução sobre as Línguas Gestuais recomenda que os governos tomem em consideração a concessão de plenos direitos às línguas gestuais como línguas oficiais e ofereçam verdadeira educação bilingue e serviços públicos prestados às pessoas surdas” in Carmo, H et al (2007), p.6.
7 Sobre estes conceitos e a LGP veja-se o que dizemos em Correia (2008)
8 Isto será possível, se houver estimulo e se a criança tiver apenas incapacidade auditiva, pertencente aos mecanismos de percepção fonética, e não manifestar problemas ao nível do aparelho fonador, mecanismo responsável pela articulação de palavras. Pode, contudo, haver alterações na Frequência Fundamental (tom de voz).
9 Sobre as diversas configurações da mão veja-se Amaral, (1994, pp.69-77)
10 Ambas as palavras se representam pela configuração designada , localizam-se na zona do rosto/busto, mas na palavra CINCO o polegar, flectido e levantado, está imóvel enquanto que no outro lexema, o polegar flecte várias vezes.
11 À semelhança de outros autores como Amaral, (1994) e Sandler e Lillo Martin (2006) quando referimos a Expressão não consideramos as configurações da boca que acompanham obrigatoriamente certos gestos. A articulação da boca será pertinente no âmbito da morfologia, uma vez que são constituintes do gesto podendo até, em alguns casos, adquirir significado gramatical.
12 Para uma classificação das vogais do português veja-se, por exemplo, Duarte, I (2000).

Bibliografia

Amaral, M.A., Coutinho, A. & Delgado Martins, M.R. (1994). Para uma gramática da língua gestual portuguesa. Lisboa: Caminho.

Correia, I. (2008). Os surdos e a educação no ensino superior: estratégias de ensino-aprendizagem, Orientações Pedagógicas para Docentes do Ensino Superior, consultado em Julho, 2009, http://ndsim.esec.pt/pagina/opdes/brochuras/04.pdf.

Delgado-Martins, M.R. (1992). Ouvir falar: introdução à fonética do português, Lisboa: Caminho.

Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2002). Lisboa: Círculo de Leitores.

Duarte, I. (2000). Língua portuguesa. instrumentos de análise. Lisboa: Universidade Aberta.

Fromkin, V. & R. Rodman, (1993). Introdução à linguagem. Coimbra: Livraria Almedina.

Klima, E. & Bellugi, U. (1979). The signs of language. Cambridge MA: Harvard University Press.

Quadros, R, M. & Karnopp, L. Becker (2004). Língua de sinais brasileira. Estudos Linguísticos. São Paulo: Artmed.

Sandler, W & Lillo-Martin (2006). Sign language and linguistic universals. Cambridge: University Press.

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