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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
Revertendo os verbos reversos e seguindo em frente: sobre concordância, auxiliares e classes verbais em línguas de sinais
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Publicado em 2006
9th Theoretical Issues in Sign Language Research Conference, Florianopolis, Brazil
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

A classificação tripartite padrão dos verbos das línguas de sinais (Padden 1983/1988) baseia-se na suposição que a concordância exibida por verbos espaciais e por verbos de concordância é de um tipo diferente: enquanto os primeiros exibem concordância locativa (ou seja, com os loci associados a argumentos locativos), os últimos concordam morfologicamente com argumentos sujeito e objeto (ou seja, com os loci ligados aos seus referentes). Entretanto, os predicados espaciais que expressam movimento e os verbos de concordância recorrem ao mesmo tipo de elemento morfológico para realizar o suposto tipo diferente de concordância: TRAJETÓ- RIA (PATH) (Meir 1998; DIR in Meir 2002). A contribuição semântica desse morfema nas duas classes seria essencialmente a mesma: em verbos espaciais, as posições (slots) iniciais e finais de TRAJETÓRIA estão alinhadas com as localizações e, em verbos de concordância, estão alinhadas com os loci de sujeito e objeto. Visto que os verbos de concordância parecem denotar transferência de um tema ou em um sentido literal ou abstrato, estabelece- se a generalização semântica que os espaços do morfema direcional de TRAJETÓRIA podem ser ocupados por papéis temáticos fon- te e alvo em ambas as classes de predicados (Fischer & Gough 1975). Para verbos espaciais, isso é relativamente direto; para verbos de concordância, fonte e alvo são restritos a [+humano], podendo, assim ser renomeados como agente e benefactivo, respectivamente. Por mais atraente que este quadro pos- sa ser, ele também se depara com alguns sérios desafios. Provavelmente, o desafio mais explorado é o problema da subclasse dos verbos de concordância chamados “reversos” (backwards): em tais predicados, o alinhamento da trajetória não é com o sujeito e o objeto, mas com a fonte e o alvo, o que resulta em uma trajetória que vai do locus do objeto ao locus do sujeito. A solução de Meir (1998) é separar concordância morfológica com fonte e alvo de concordância sintática com o objeto, o que é explicitamente marcado pela orientação da mão em ISL. No entanto, a perspectiva tradicional sobre a concordância verbal em LSs tem que abordar mais profundamente questões que receberam pouca ou nenhuma atenção na literatura relevante. Neste artigo, revisamos as ideias principais nas diferentes abordagens e, então, aperfeiçoamos algumas delas, assim contribuindo para uma caracterização mais precisa da concordância, tipologia verbal e os chamados predicados auxiliares nas LSs. A fim de sustentar os argumentos, evidências recentes são discutidas a partir da Língua de Sinais Brasileira - LSB - e da Língua de Sinais Catalã – LSC.

2. Concordância Verbal e Classes Verbais nas LSs

2.1 Concordância sintática vs. concordância temática

Há uma discussão clássica na literatura das línguas de sinais sobre o status da concordância, nesse tipo de língua. A realização morfológica da concordância é compreendida como o movimento entre dois pontos associados com os argumentos de certos verbos. Pesquisadores como Kegl (1985), Padden (1983/1988), Janis (1992, 1995), Fischer (1996) e Mathur (2000) apresentaram diferentes análises identificando a concordância como algo determinado por motivações sintáticas e/ou semânticas e concedendo um status distinto à concordância sintática e espacial. Por um lado, a concordância sintática (e/ou semântica) é interpretada como uma relação gramatical estabelecida com o sujeito e/ou com os argumentos objeto do predicado (Fischer 1973) e é morfologicamente realizado pelo movimento de trajetória e/ou de orientação3. Por outro lado, a concordância espacial é uma relação locativa estabelecida com pontos no espaço de sinalização cor- respondentes às localizações. Quando esses pontos constituem o início e o fim de um movimento, eles são interpretados como argumentos locativos do verbo de movimento (FONTE-ALVO). Entretanto, há discordância sobre esta proposta. Kegl (1985), por exemplo, observou que verbos espaciais e de concordância podem concordar com a FON- TE-ALVO, uma linha de análise desenvolvida no trabalho de Meir (1998, 2002).

A classificação verbal mais comum da Língua de Sinais Americana [American Sign Language – ASL] segue o agrupamento tripartite de Padden (1983/1988, modificada em 1990: 119): (1) verbos simples que não flexionam em número e pessoa e tampouco aceitam afixos locativos; (2) verbos de concordância que flexionam em pessoa e número e não aceitam afixos locativos; e, (3) verbos espaciais que não flexionam em número, pessoa ou aspecto, mas aceitam afixos locativos. Observe-se que Padden diferenciou entre flexão e afixação com verbos espaciais e de concordância, respectivamente (concordância sintática e morfológica).

Segundo Aronoff, Meir e Sandler (2005), concordância sintática consiste em copiar índices referenciais livremente sob condições sintáticas específicas (envolvendo a verificação de características). Concordância morfológica nas LSs corresponderia à realização manifesta daqueles índices sintáticos. Na relação de concordância em geral, há um controlador e um alvo da concordância. O primeiro é o nominal do qual o index é copiado, enquanto o segundo é o elemento sobre o qual o indicador é copiado. Geralmente, o verbo leva consigo um marcador que refle- te características morfológicas específicas do controlador do sujeito. A especificidade nas línguas de sinais é que a concordância é expressa diretamente através de índices referenciais, isto é, através da cópia dos loci referenciais (R-loci) nos espaços morfológicos correspondentes do verbo de concordância. Arnoff, Meir e Sandler analisam o caso específico da concordância morfológica nos verbos da língua de sinais como tendo dois espaços de localização abertos que determinarão a TRAJETÓRIA do sinal à la Meir (1998). Para verbos de concordância, existe a concordância com os argumentos gramaticais. Para verbos espaciais, há localizações em que a trajetória do verbo é uma representação direta da trajetória do objeto de movimento. Assim, no sentido proposto por Meir (1998), a direção da trajetória com os verbos de concordância é determinada por papéis temáticos dos argumentos (argumentos FONTE-ALVO), enquanto a orientação das mãos é determinada pelo papel sintático dos argumentos do objeto. Em relação à interpretação semântica envolvida, os verbos de concordância denotam TRANSFERÊNCIA e os verbos espaciais denotam MOVIMENTO. Nessa perspectiva, a semântica do verbo é o que determina as classes verbais.

A terminologia adotada para as classes verbais em ASL não é universalmente aceita. Alguns pesquisadores tais como Loew (1984), Lillo-Martin (1986) e Emmorey (1991) se alinham a Padden em sua classificação e uso do termo ‘verbos de concordância’. Outros, entretanto, como Supalla (1990), chamaram esses verbos de ‘verbos de movimento’. Fischer (1973), Fischer & Gough (1978), e Baker & Cokely (1980) os chamam de ‘verbos direcionais’. Padden (1983), inicialmente, denominou esses verbos ‘verbos de flexão’, mas após Padden (1990), ela adotou o termo ‘verbos de concordância’, reconhecendo que verbos de flexão incluem verbos espaciais e de concordância, assim como qualquer outro tipo de flexão que pudesse ser vinculada a qual- quer verbo. Janis (1995) utiliza a terminologia ‘concordância locativa’ e ‘concordância não locativa’ para se referir à flexão locativa e flexão de concordância, respectivamente. O motivo da proliferação dos termos está provavelmente relacionado à forma que a flexão vinculada ao verbo toma e também ao status da concordância propriamente dita. Pare- cem, também, existir verbos opacos (fuzzy) que não se encaixam, rigorosamente, na classificação tripartite, visto que suas propriedades temáticas e gramaticais podem ser incluídas em mais de uma classe. Kegl (1985:35) observa que a necessidade de invocar noções temáticas tais como agente, paciente, fonte e alvo “surge do fato que em línguas como o inglês não há correlação fixa entre papéis semânticos/temáticos e relações gramaticais”. Esse caveat é importante, na medida em que também se aplica às línguas de sinais.

2.2 Concordância temática: incorporando verbos reversos (backward verbs) no cenário

O status atribuído à concordância por Meir (1998, 2002) está restrito às relações semânticas estabelecidas pela TRAJETÓRIA. Meir (1998) mostra que a direcionalidade deve ser isolada, devido à existência dos verbos reversos. Verbos reversos são predicados de concordância em que a posição inicial do sinal é a localização do objeto e a posição final é aquela do sujeito, diferentemente de outros verbos de concordância. Na análise de Meir, “a direção do movimento de trajetória marca as relações semânticas (ou temáticas) entre os argumentos do verbo enquanto a orientação das mãos marca as relações sintáticas entre os argumentos do verbo” (Meir 1998). Meir (1998) argumenta que a direcionalidade não é o elemento fonológico relevante para caracterizar relações gramaticais de argumentos, mas, sim, a orientação das mãos. A orienta- ção das mãos é o direcionamento para o qual a palma e/ou as pontas dos dedos são orientadas nos verbos de concordância, o que é de- terminado pelo locus referencial atribuído ao argumento-objeto do verbo.

Os verbos reversos são os exemplos mais apropriados para dar suporte ao argumento de Meir. Nesses predicados, a direção do movimento não se inicia na posição associa- da ao sujeito gramatical e termina na posição do objeto, mas, sim, de maneira inversa. Entretanto, a orientação das mãos na direção da localização do objeto é preservada. Por- tanto, Meir propõe a existência da marcação dupla, isto é, concordância da trajetória temática (FONTE-ALVO) e concordância sintática (orientação da mão em direção ao objeto). Alguns de seus verbos apresentados como exemplos desse padrão reverso em ASL e ISL (Língua Israelense de Sinais) são COPY, INVITE, TAKE ou TAKE ADVANTAGE OF [COPIAR, CONVIDAR, LEVAR ou BENEFICIAR-SE DE].

Sua análise difere essencialmente do relato de Padden sobre reversibilidade, o que oferece apenas uma abordagem sintática, isto é, verbos reversos apresentam concordância reversa com o sujeito e o objeto. Um forte argumento oferecido por Padden em favor dessa abordagem é a omissão do marcador de concordância na ASL, por meio do que a marcação do sujeito pode ser opcionalmente omitida, nos verbos regulares e reversos. Isso não seria de se esperar em uma abordagem temática como a de Meir, uma vez que de- veríamos especificar que em verbos regulares de concordância, o argumento opcionalmente omitido é aquele que carrega a FONTE, enquanto a concordância ausente nos verbos reversos é aquela associada ao argumento ALVO.

2.3 Concordância Sintática vs. Concordância Locativa

Padden oferece três testes para diferenciar a natureza sintática e locativa da concordância, em casos onde a similaridade superficial dos morfemas envolvidos pode levar a uma identificação dos dois tipos. Ela distingue entre ‘concordância de pessoa’, na qual morfemas de pessoa gramatical se diferenciam entre primeira e não-primeira pessoa gramatical, e ‘localização espacial’, na qual o que é mencionado é qualquer ponto físico sobre ou em volta do corpo do sinalizador.
Primeiramente, com verbos espaciais, a interpretação da concordância é locativa, uma vez que ela é interpretada como movimento entre localização específica no espaço (1a); a concordância sintática implica a interpretação da pessoa dos vetores envolvidos no movimento, isto é, os pontos iniciais e finais do movimento correspondem às posições asso- ciadas aos argumentos sujeito e objeto (1b).

(1) a. a-CARRY-BY-HAND-b [a-LEVAR- COM A-MÃO-b] ‘I carry it from here to there.’ [Eu o levo daqui para lá]
b. 1-GIVE-2 [1-DAR-2] ‘I give you.’ [Eu lhe dou]

Padden alega que no primeiro exemplo, há concordância com o sujeito; isto é, a primeira pessoa está marcada através da posição inicial do sinal, que envolve uma localização próxima ao corpo do sinalizador. No segundo exemplo, o ponto inicial está também perto do corpo do sinalizador. Entretanto, no segundo caso há um morfema locativo, em vez de concordância de pessoa gramatical com a primeira pessoa, embora isso possa parecer concordância de pessoa. Ela mostra essa diferença listando as possíveis variações em (1a): I carry it from here (near my chin) to here [Eu o levo daqui (meu queixo) para cá], I carry it from here (near my chest) to here [Eu o levo daqui (perto do peito) pra cá], I carry it from here (near of the lower part of my body) to here [Eu o levo daqui (perto da parte inferior do meu corpo) para cá]. Entretanto, não há variações significativas para (1b), isto é, (1b) será sempre entendido como tendo a primeira pessoa como sujeito da sentença, sem mudanças na localização do sinal.
Segundo, a marcação distributiva (também conhecida como marcação exaustiva (exhaustive marking)) só pode aparecer com concordância de pessoa (2a). Uma forma similar ocorrendo com um verbo espacial produz uma interpretação locativa (2b).
(2) a. 1-GIVE-3dist [1-DAR-3ista] ‘I give it to (each of) them.’ [Eu o dou para (cada um) (d)eles]
b. PUT-a PUT-b PUT-c [COLOCAR-a COLOCAR-b COLOCAR-c] ‘I put them there, there and there.’ [Eu os coloco ali, lá e acolá]

Terceiro, a marcação recíproca apenas ocorre com verbos de concordância (3a). Formas análogas com verbos espaciais recebem uma interpretação locativa (3b).

(3) a. a-GIVE-b/b-GIVE-a [ a - D A R - b / b - DAR-a] ‘They gave something to each other.’ [Eles deram algo um para o outro]
b. a-PUT-b/b-PUT-a [a.COLOCAR-b/ b-COLOCAR-b] ‘I put one in each other’s place.’ [Eu coloco um no lugar do outro]

Rathmann & Mathur (no prelo) oferecem alguns testes sintáticos adicionais que, argumenta-se, provocam a separação entre verbos espaciais e de concordância, o que corresponde à distinção entre concordância locativa e sintática.
Primeiramente, nenhuma FONTE XP surge com verbos de concordância (4a), enquanto isso é possível com verbos espaciais (4b).

(4) a. *PAPER JOHN-i BILL-j MARY-k j-GIVE-k [*JORNAL JOHN-i BILL- j MARY-k j-DAR-k] ‘John gave paper from Bill to Mary.’ [John passou o jornal de Bill para a Mary]
b. PAPER JOHN-i HOME-a SCHOOL-b a-BRING-b [JORNAL JOHN-i CASA-a ESCOLA-b a- TRAZER-b] ‘John brought paper from home to school.’[John trouxe jornal de casa para a escola]

Segundo, os verbos de concordância não podem modificar a trajetória, ao passo que os verbos espaciais podem. De acordo com esses autores, interromper o movimento pela metade com verbos de concordância produz um resultado agramatical (5a), ao passo que a mesma mudança em uma trajetória espacial simplesmente apresenta uma interpretação diferente (5b).

(5) a. *PAPER JOHN-i BILL-j MARY-k j- GIVE-k (halfway) [*JORNAL JOHN-i BILL-j MARY-k j-DAR-k (interrompendo o movimento)] ‘John gave paper halfway to Mary.’ [John passou o jornal para Mary interrompendo o movimento]
b. PAPER JOHN-i HOME-a SCHOOL-b a-BRING-b (halfway) [JORNAL JOHN-i CASA-a ESCOLA-b a-TRAZER- b (interrompendo o movimento)] ‘John brought paper halfway to school.’ [John trouxe o jornal para a escola (interrompendo o movimento]

Terceiro, o argumento portando o papel temático de ALVO nos verbos de concordância não pode ser questionado por ONDE (6a), ao passo que os verbos espaciais podem.

(6) a. WHO/*WHERE JOHN-i i-GIVE PAPER [QUEM/*ONDE JOHN- i i-PASSAR JORNAL] ‘Quem/*para onde o John deu o jornal?’
b. *WHO/WHERE JOHN-i BRING-a PAPER [*QUEM/ONDE JOHN-i TRAZER-a JORNAL] ‘*Who/where did John bring paper to?’ [*Para quem/onde o John passou o jornal?]

Posteriormente, retomaremos alguns desses argumentos empíricos, ora para questionar sua validade, ora para utilizá-los em defesa da proposta apresentada neste artigo.

Rathmann e Mathur (no prelo) analisam a concordância verbal nas línguas de sinais como resultado de uma inovação linguística que permite a interação das propriedades linguísticas dos verbos de concordância com o gesto: se um verbo seleciona dois argumentos animados, ele pode participar da concordância com o sujeito e o objeto, em traços de pessoa e número. É importante observar que essa posição reduz a concordância verbal à concordância com argumentos animados, excluindo, assim, a concordância de pessoa com argumentos inanimados. Como veremos abaixo, esta proposta enfrenta o desafio empírico de esclarecer os chamados verbos de concordância que concordam com um argumento inanimado. Esse aspecto se tornará essencial na elaboração de nossa proposta.

Nesse sentido, Janis (1992, 1995) adota uma perspectiva significativamente diferente, no sentido que descarta classes verbais e estabelece que a concordância, nas LSs, é, na verdade, uma concordância de caso controlada pelo caso que o argumento dos verbos traz consigo e por seus papéis temáticos. A concordância se dá ou com o caso locativo ou com o caso direto (não-locativo, concordância gramatical), o primeiro tendo destaque sobre o segundo, no ranqueamento dos traços de controlador. Janis (1992: 192) observa que a análise geralmente aceita da distribuição verbal da ASL não pode prever com que o verbo irá concordar, tampouco que forma de concordância um verbo terá em todas as situações. A partir dessa perspectiva, ela considera o caso de verbos como COPY [copiar] ou ANALYZE [analisar] na ASL e sugere que a concordância apresentada com objetos animados e inanimados se correlaciona com a concordância do caso direto e locativo e que não é necessário postular duas entradas lexicais diferentes para as duas opções de concordância: simplesmente depende do caso do argumento que funciona como controlador de concordância verbal. Sua posição, nesse sentido, é muito pertinente à proposta apresentada neste artigo.

2.4 Consequências para as classes verbais e a divisão de concordância sintática/ locativa

A divisão entre verbos espaciais e de concordância é relevante por motivos sintáticos, vis- to que esses verbos possuem características a serem verificadas em Frases de Concordância (cf. discussão de Janis 1995). Entretanto, mostramos nesta seção que a classificação verbal proposta por Padden não é sempre apropriada, pelo menos se compreendida como classes definidoras mutuamente excludentes: nos dados, encontramos verbos simples com algum tipo de traço locativo, assim como verbos de concordância com concordância locativa e verbos espaciais com alguma concordância com traço de pessoa.

Há variantes diferentes na classificação dos verbos na literatura que refletem os limi- tes opacos (fuzzy borders) entre classes verbais em línguas de sinais, como a ASL. Um exemplo é uma versão inicial de classificação verbal de Fischer e Gough (1978), na qual três aspectos são identificados como correspondentes à flexão verbal para pessoa: direcionalidade, reversibilidade e locacionalidade.

A classe verbal direcional, conforme analisada por Fischer e Gough, inclui verbos que fisicamente se movem em direção ao argumento ou argumentos estabelecidos no espaço. Nesse sentido, essa classe é muito mais geral do que a classe verbal de concordância, conforme classificada por Padden (1983/1988), visto que verbos direcionais incluem verbos como GIVE [dar], LEAVE [deixar], BRING [trazer], BITE [morder], HIT [atingir], HURT [machucar] e BLEED [sangrar] que concordam com os NPs (pro- nomes pessoais), assim como PPs (por exemplo, locativos). Esses verbos são ou espaciais ou de concordância, segundo a classificação de Padden. Talvez Fischer e Gough já tivessem capturado a ideia que desenvolveremos em nossa análise: há motivos para considerar ambas as classes como instanciações de uma classificação opaca (fuzzy classification), embora possa haver outros motivos independentes para distingui-las.

De acordo com Fischer e Gough, a reversibilidade é um processo que está parcialmente relacionado à direcionalidade. Verbos como MEET [encontrar], FLATTER [elo- giar] e FREQUENT [frequentar] são claramente reversos, isto é, há uma mudança na orientação da mão, além do direcionamento do sinal. Esses verbos são considerados verbos de concordância em análises recentes (Padden 1990, Baker e Cokely 1980). Entre- tanto, nessa classe, Fischer e Gough também incluem verbos tais como KICK e BITE, que não são geralmente analisados como verbos de concordância. Esses verbos podem ser sinalizados na direção da localização a que eles se referem, ou eles podem ser sinalizados em uma posição neutra. No primeiro caso, eles parecem ter flexão e, no segundo caso, pare- cem ser simples. Esse tipo de exemplo reflete, novamente, os limites opacos da classificação mencionada anteriormente.

A última característica da flexão verbal, para Fischer e Gough, é a locacionalidade. Eles apresentam WANT [querer] como exemplo de um verbo locacional, no qual o sinal pode ser articulado ou perto da localização do sujeito ou perto da localização do objeto. Padden (1990) analisa WANT como um verbo simples que pode portar um clítico locativo.

É interessante observar que Fischer e Gough oferecem exemplos nos quais há com- binações possíveis das qualidades direcionais, reversas e locativas, por exemplo, FLATTER [elogiar], FOOL [enganar], FREQUENT [frequentar], HIT [atingir] e PAINT [pintar]. Além disso, verbos como HATE [odiar], BORROW [pegar emprestado], LOOK [olhar] e FEED [alimentar] podem ser tanto direcionais quanto reversos, ao passo que LOCK [trancar], OWE [dever] e PITY [ter pena] podem combinar aspectos reversos e locacionais. Esses são exemplos que não possuem uma análise clara nas línguas de sinais, se for levada em consideração uma classificação rígida.
Com relação a verbos simples, Fischer e Gough (1978) os descrevem como exceções. Por exemplo, verbos tais como HEAR [ou- vir], LISTEN [escutar], EAT [comer], DE- CIDE [decidir], PRAISE [louvar], DANCE [dançar], ASSOCIATE [associar], JOIN [ligar-se] e TEASE [provocar] são mencionados como exceções, pois eles não apresentam flexão de concordância. Hoje em dia, existe consenso quanto ao fato de esses verbos for- marem uma classe nas línguas de sinais, diferente dos verbos que possuem uma concordância explícita.

Como vimos na seção 2.3 acima, Padden (1990) apresenta evidências para a diferença entre os afixos de localização espacial para verbos espaciais e a concordância de pessoa e número para verbos de concordância.

É importante observar que, embora a localização espacial seja claramente diferente da concordância de pessoa, deve haver concordância da pessoa do sujeito em exem- plo da ASL como (1a), visto que ela permite um pronome do sujeito nulo (cf. Quadros 1999:105-106 for LSB). Em um exemplo da LSB como (7), um argumento nulo do sujei- to deve ser também colocado:

(7) CARRY [levar] ‘I carry it (from here) (to there).’ [Eu o levo (daqui) (para lá)]

Tal exemplo não seria possível se a localização espacial a fosse sinalizada em uma localização que não está associada a uma pessoa, como no exemplo agramatical apresentado a seguir, retirado da LSB:

(8) *CARRY ‘(He) carries it from here (a place that does not coincide with the subject) to there.’ [Ele o leva daqui (um lugar que não coincide com o sujeito) para lá]

A sentença (8) só poderia ser gramatical se o sujeito fosse pronunciado. (7) é possível por- que, fonologicamente, a concordância e o lo- cativo têm a mesma forma expressa no mesmo ponto e, como consequência, o pronome nulo para o sujeito é permitido e a sentença torna- se gramatical. Pronomes nulos são permitidos em línguas tais como ASL e LSB, pois elas são pro-drop (línguas de sujeito nulo) (Lillo-Martin 1986, Quadros 1995). Em ambas as línguas, há restrições que se aplicam às sentenças que permitem pronomes nulos. A restrição básica se refere à informação contida no verbo, isto é, se o verbo inclui informação de concordância relacionada à pessoa, ele permite argumentos nulos (externos e/ou internos).
Portanto, como mencionado anteriormente, parece que a combinação de locativos em associação a verbos espaciais pode ser combinada com concordância não locativa, mas eles devem ser pronunciados na mesma localização, para permitir uma concordância nula associada ao argumento não-locativo. Se não são pronunciados no mesmo ponto e há um argumento nulo não-locativo, há um tipo de restrição morfológica em sinais que exclui a sentença.
Essa proposta difere da de Padden (1990), que exclui a concordância do sujeito com verbos espaciais. Padden (1990) segue Supalla (1986) e Liddell (1984) ao assumir que a morfologia de concordância co-ocorre com a morfologia locativa. A conclusão de Padden é que o espaço em volta do sinalizante possui dimensões diferentes em cada nível de análise (espaço fonológico para localizações contrastivas; espaço morfológico para concordância e espaço sintático para indexação e anáfora). Considerando os fatos em (3) e (4), parece haver possíveis combinações entre esses diferentes níveis quando a sentença é produzida, diferentemente da análise de Padden.

Kegl (1985: 108) discute um tipo de verbo que não está incluído na categoria (concordância) GIVE [dar], tampouco na categoria (espacial) CARRY-BY-HAND [levar com a mão], mas está incluído “verdadeiramente a meio caminho entre os dois tipos de verbo”: trata-se do exemplo do tipo HAND-OVER. Esse verbo tem uma localização associada a uma localização (FONTE) e a outra a uma pessoa (ALVO). Nesse exemplo, o sinal pode ser interpretado com ou sem a noção de transferência de posse. A análise de Kegl é bastante elucidativa, visto que ela mostra uma maneira diferente de abordar a distribuição verbal

em ASL que explica essa distribuição opaca (fuzzy distribution), com que estamos lidando neste artigo. Sua análise estabelece que GIVE é uma extensão de CARRY-BY-HAND para a classe de posse e que INFORM é uma extensão de GIVE para a classe cognitiva. O que faz a diferença entre esses verbos são as formas divergentes que o classificador manual (handling classifier) assume a cada exemplo.

Quadros (1999), como Janis, adotou apenas uma distinção entre classes verbais, aquelas com marcadores de concordância e aquelas sem tais marcadores, verbos não- simples e simples, respectivamente, em sua terminologia. Seu argumento é sintaticamente motivado, visto que as estrutura sin- tática tem uma forma diferente em sentenças associadas a verbos não-simples e simples. Não há evidência, em termos de sintaxe, para manter a divisão entre verbos espaciais e verbos de concordância; entretanto, a autora reconhece que as relações semânticas desempenham um papel na distinção de verbos que têm concordância espacial ou de pessoa gramatical. Entretanto, conforme Quadros observou, não fica tão claro a que classe o verbo pertence. Um verbo de concordância padrão pode se comportar como um verbo espacial padrão; um verbo simples pode assemelhar-se a um verbo espacial ou de concordância.

Janis (1992) observa uma relação entre verbos espaciais e de concordância que é similar ao que Kegl (1985) analisou como uma relação metafórica entre os dois grupos. Ao invés de manter uma análise sincrônica como em Kegl, Janis propôs um relato em termos de relações históricas: verbos não-locativos (concordância) seriam formas lexicalizadas de predicados classificadores.

Janis (1992) observou que a proposta lexical feita por Padden prevê, corretamente, que todos os marcadores de concordância em um verbo serão, necessariamente, do mesmo tipo (sujeito/objeto ou locativa). Entretanto, como observado acima, alguns verbos podem aparecer com mais de um tipo de concordância, visto que eles são, realmente, ocorrências verbais diferentes, isto é, a análise deve dizer, por exemplo, que há dois verbos TEACH [ensinar], um que é membro da clas- se de concordância e outro que é membro da classe espacial. Consequentemente, o verbo será listado duas vezes no léxico. Obviamente, isso não é desejável. Além disso, a análise de classe verbal não pode prever quando uma forma de concordância específica ocorrerá.

3. Problemas com os pontos de vista alternativos existentes

Além dos problemas empíricos mencionados para uma classificação estática tripartite dos verbos e uma separação rigorosa da concordância locativa vs. sintática, estabelecida na proposta amplamente aceita de Padden, precisamos abordar outras dificuldades existentes com os pontos de vista alternativos discutidos acima.
A abordagem temática, conforme apre- sentada no trabalho de Meir, reduz essencialmente a concordância da língua de sinais à concordância espacial com os papéis locativos temáticos trazidos pelos argumentos envolvidos em uma relação de transferência. Entretanto, essa redução se depara com vá- rios contra-argumentos:

(i) A generalização empírica que os verbos de concordância em LS são a realização de um morfema de trajetória ligado a uma interpretação subjacente de transferência é falsa, pois tal significado de transferência não está prontamente disponível. Isso se torna especialmente evidente com verbos de concordância que são transitivos puros e não bitransitivos (ditransitives) e, assim, apre- sentam concordância com objeto direto, não com o objeto indireto. Os predicados em (9) são exemplos disso, em LSB e LSC.

(9) CHOOSE, SUMMON [escolher, convocar] (LSB, LSC)

(ii) Ainda em relação ao problema anterior, deve-se observar que o papel temático do segundo argumento de concordância em um ver- bo de concordância não é sempre um ALVO, mas é, frequentemente, também um TEMA. Na LSB e LSC, encontramos verbos transitivos (ambos regulares ou reversíveis) onde o segundo argumento de concordância é um TEMA:

(10) PRESS, INVITE [pressionar, convidar] (LSB, LSC)

(iii) O contra-argumento mais forte à abordagem temática vem do fato de que, nas LSs que têm um auxiliar de concordância (AUX), o AUX concorda com o sujeito e o objeto gramaticais, não com a FONTE e ALVO temáticos.5 Conforme observado em Mathur (2000) e Pfau & Steinbach (2005) para a DGS, Smith (1990) para a TSL e Bos (1994) para a SLN, essa dissociação da concordância sintática se torna aparente apenas quando um auxiliar co-ocorre com um verbo reverso: A direção da trajetória do AUX é a costumeira sujeito-objeto, o que é o oposto daquela realizada pelo verbo lexical:

(11) a. IX-1 CHILD 3-TAKE-1 1 AUX-3 (LSC)
b. GIRL 2-AUX-3 TAKE-3 (LSB)

Esses dados não têm sido levados a sé- rio na discussão sobre concordância em LS, apesar de sua enorme relevância6. Eles constituem contra-evidência razoavelmente sólida, não apenas contra uma abordagem temática aos verbos de concordância, mas também contra a explicação de Liddell para concordância como dêixis (vide, por exemplo, Liddel 2003). Tal AUX de concordância nunca surge com verbos espaciais que concordam com localizações ou com argumentos inanimados. Além disso, o AUX emerge com predicados psíquicos na LSC, que são tipicamente estativos, não envolvendo transferência alguma de interpretação.

Juntamente com as objeções levantadas sobre a abordagem temática à LS, gostaríamos de mencionar problemas adicionais à abordagem de animacidade (animacy approach), de Rathmann e Mathur. Segundo eles, a concordância está restringida a argumentos anima- dos, mas também encontramos concordância com objetos inanimados. Em seu quadro teórico, isso exigiria suposições adicionais e, talvez, a necessidade de se postular uma análise de acesso duplo, o que parece pouco desejável.

(12) a GIRL IX-1 3-BUY-1 (LSB) (LSC)
b. NOTES IX-1 3-COPY-1 (LSB)

Além disso, os testes oferecidos em Rathmann e Mathur (no prelo) para distinguir entre verbos espaciais e de concordância mostraram não serem válidos para a LSB e a LSC. Primeiramente, o argumento FONTE pode co-ocorrer com o TEMA pessoal de um verbo de concordância, contra suas previsões:

(13) AIRPORT MARIA IX-2 2-PICK-UP-3 ‘You pick up Maria from the airport.’ [Você pega a Maria no aeroporto]

Segundo, TEMA e FONTE podem ser questionados exatamente com o mesmo verbo, conforme ilustrado nos seguintes dados da LSB:

(14) a. wh
b.wh

Terceiro, a modificação da trajetória, tanto em verbos espaciais quanto em verbos de concordância, possui interpretação aspectual. A leitura obtida é aquela do iniciador não realizado no caso do verbo de concordância, conforme (15a); além da leitura puramente locativa, essa leitura aspectual é também possível com verbos espaciais, conforme (15b).

(15) a. BOOK JOHN-i MARY-j i-GIVE- j (halfway) [LIVRO JOHN-i MARY-j i-DAR-j (movimento interrompido)] ‘John almost gave the book to Mary.’ [John quase passou o livro para a Mary].
b. BOOK JOHN-i SCHOOL- a BRING-a (halfway) [LITERA- TURA JOHN-i CASA-a ESCOLA- a a-TRAZER-a (movimento interrompido)] ‘John almost brought the book to school.’ [John quase trouxe o livro para a escola]

Com toda a evidência discutida até agora e com a discussão dos argumentos oferecidos na literatura, parece claro que não podemos nos apegar a uma divisão mutuamente excludente dos verbos em três classes morfossintáticas, conforme geralmente se assume. O que observamos é que os verbos, às vezes, apresentam um comportamento híbrido, pelo menos entre a concordância e classes espaciais, e que a concordância locativa e a sintática não são sempre incompatíveis na mesma forma verbal. Além disso, apontamos algumas inadequações essenciais da abordagem temática à concordância. Entre outras contra-evidências, afirmamos que elementos AUX em LSB e LSC são puras instanciações de concordância sintática. Isso se torna claro com os verbos reversos. Entretanto, a questão que surge é o que a trajetória está realizando naqueles verbos, já que não é a concordância sintática. Na próxima seção, as questões relevantes são recapituladas e uma tentativa de resposta é oferecida.

4. O que está concordando nos verbos reversos?

Uma generalização sobre os verbos reversos que geralmente não é mencionada é que, diferentemente de verbos de concordância “regular”, os verbos reversos, em sua maioria, não são bitransitivos. Isso pode ser facilmente observado nas listas dos verbos reversos em ASL e ISL, fornecidas em Meir (1998):

(16) ASL: COPY, EXTRACT, INVITE, MOOCH, STEAL, TAKE, TAKE-AD- VANTAGE-OF, TAKE-OUT, GRAB, LIE-TO

ISL: COPY, TAKE, CHOOSE, INVITE, TAKE-ADVANTAGE-OF, ADOPT, IN- HERIT, IMITATE, SUMMON, IDEN- TIFY-WITH

Nos levantamentos feitos para a LSB e a LSC, os verbos reversos, em sua maioria, cla- ramente não são bitransitivos:

(17) LSB: TAKE/GET/PICK-UP, CHOOSE, COPY, IMITATE, PERCEIVE, EX- PLOIT, INVITE, SUMMON // ASK- FOR, BORROW, STEAL

LSC: TAKE/BUY, CHOOSE, GET/ GUESS, SUMMON, COPY, INVITE, UNDERSTAND // ASK, STEAL, TAX

Surpreendentemente, esses predicados têm, apenas, um argumento interno obrigatório, que é atribuído a um papel temático de TEMA, e não de FONTE. Essa diferença é importante para as explicações que baseiam a trajetória reversa dos verbos reversos em propriedades temáticas. Contra o argumento de Meir (2002), o único argumento interno deveria receber marcação acusativa e não dativa.

Argumentamos que a interação de auxiliares com verbos reversos revela propriedades essenciais dessa classe. Conforme mencionado acima, quando um auxiliar co-ocorre com um verbo reverso, a trajetória vai de sujeito a objeto e isso é o oposto do que ocorre com a trajetória realizada pelo verbo lexical. Diferentemente da LSB, onde o AUX somente emerge com verbos reversos, em LSC isso pode ocorrer tanto com verbos de concordância regular, quanto com verbos reversos7.

(18) IX-x IX-y x-AUX-y y-TAKE-x (LSC)

(19) a. *GRAMMA-x GRAMPA-y x-AUXY-y x-TAKE-CARE-y (verbo de concordância)
b. IX-x IX-y x-AUX-y (y)-PICK-UP (verbo reverso) (LSB)

É interessante observar que, na LSB, esses são os únicos exemplos onde um auxiliar podem co-ocorrer com um verbo flexionado, em um contexto não marcado. Além disso, a presença do auxiliar permite uma forma alternativa do verbo reverso que não possui trajetória, mas que pode apresentar orientação das mãos em direção ao locus do argumento interno.

(20) a. IX-x IX-y x-AUX-y (y)-PERCEIVE (verbo reverso) (LSB)
b. IX-x IXy x-AUX-y TALK (verbo simples) (LSB)

Nossa solução para este dilema é retirar os verbos reversos da classe de verbos de concordância e tratá-los como verbos manuais (handling verbs) com trajetória, onde a trajetória, na verdade, concorda com as localizações e não com os argumentos sintáticos. Esse argumento é consistente com o fato de que o objeto pode, às vezes, ser inanimado, mas o sujeito deve sempre ser animado, conforme os predicados classificadores manuais. A partir dessa perspectiva, a concordância de trajetória apresentada pelos verbos reversos com o objeto (o argumento TEMA) não é sintática, mas locativa. Isso parece um tanto simples, quando observamos predicados re- versos cujos significados envolvem uma ope- ração manual em sua interpretação básica, como o verbo TAKE:

(21) BOOK-x x-TAKE-1 (LSC/LSB)

Apesar disso, em alguns casos, uma transferência metafórica deve ser assumida, desde uma operação de manuseio literal até uma operação abstrata, conforme em COPY (22). Um outro bom exemplo disso é o verbo UNDERSTAND [entender] na LSC (23), que, como sua contraparte em inglês ‘grasp’[agarrar/compreender] liga a operação mental de entendimento a um movimento manual. Em outros casos, como INVITE [convidar], a transferência metafórica pode ser menos óbvia, mas argumentamos que ela está na base de sua origem etimológica.

(22) BOOK-x x-COPY-1 (LSC/LSB)

(23) BOOK-x x-UNDERSTAND-1 (LSC)

Embora os detalhes de tal proposta ainda necessitem ser mais trabalhados, a conclusão é clara: na verdade, os verbos reversos não pertencem à classe de verbos de concordância (sintática) “puros”, mas incluem a classe de verbos manuais (altamente lexicalizados), uma subclasse dos verbos espaciais transitivos. Isso também explicaria porque certos verbos de transferência específicos como PHONE [telefonar] na LSB/LSC foram originalmente desenvolvidos de forma simples em verbos de concordância pela morfologização do afixo de concordância em verbo lexical. É interessante observar que, pelo menos no estado atual de nosso conhecimento, casos desse tipo não são observados em relação a verbos reversos.

5. Retomando a concordância e as classes verbais

Tendo questionado a visão clássica sobre as classes verbais e a concordância em LSs, bem como a alternativa mais proeminente em ter- mos de concordância temática, passamos, agora, a um esboço de uma caracterização que nos parece adequada de classes verbais e de concordância, com base nos insights advindos dessa discussão.

Adotando a terminologia de Quadros, os verbos em LSs deveriam ser classificados como verbos com concordância e verbos sem concordância (simples). A concordância é morfologicamente realizada como trajetória e a concordância da trajetória pode ser com localizações (traços espaciais) ou loci-R (traços de pessoa e número). Na maioria das vezes, a realização superficial desses dois tipos de concordância é indistinguível, mas a evidência baseada no AUX de concordância na LSB e LSC nos permite concluir, com segurança, que ambos os tipos de concordância podem (e deveriam) ser tratados separadamente. Uma evidência essencial para tal argumento pode ser oferecida por meio de teste das possibilidades de co-occorrência do AUX com verbos reversos. Conforme mencionado anterior- mente, a trajetória dos elementos AUX segue na direção oposta daquela desse tipo de verbo, ou seja, a partir do locus do objeto para o locus do sujeito. Foi também apontado que o AUX ocorre, apenas, quando concorda com objeto e sujeito animados. Visto que verbos reversos podem admitir objetos animados e inanimados, é possível prever que o AUX pode aparecer apenas com os primeiros e não com os segundos. Emerge, então, a seguinte predição:

(24) *BOOK-x x-TAKE-2 2-AUX-x (LSC/LSB)

(25) a. CHILD-3 3-TAKE-2 2-AUX-3 (LSC)
b. CHILD-3 2-AUX-3 3-TAKE (LSB)

A partir dessa sólida evidência, podemos concluir que apenas os traços de pessoa portadores do loci-R entram em concordância pessoal/sintática. Torna-se claro que apenas argumentos animados podem portar tais traços em LSs. Resta, ainda, uma pergunta, quanto à natureza do tipo de concordância locativa. Gostaríamos de sugerir que ela, basicamente, se reduz à concordância com os loci identificados pelos argumentos dotados de traços locativos. Dessa forma, abre-se, naturalmente, a possibilidade de uma mesma trajetória concordar com um argumento pessoal e um argumento locativo, na mesma forma verbal. Vimos que tais instâncias ocorrem.

Uma outra consequência da abordagem sugerida aqui é que a concordância temática não pode ser mantida como o fator subjacente que explica a gramática de trajetória nas classes tradicionais de verbos de concordância (regulares e reversos) e verbos espaciais. Manter a análise FONTE-ALVO prova ser empiricamente incorreto, uma vez que muitas instâncias de verbos de concordância não são bitransitivos, mas simplesmente transitivos com um objeto TEMA/PACIEN- TE. Além disso, se a estrutura temática fosse a motivação subjacente para a expressão de concordância, variação entre as línguas ou dentro da mesma língua não seria de se esperar. Esses contra-exemplos são encontrados em LSC e em LSB, onde a mesma estrutura conceitual lexical foi lexicalizada com relação à direcionalidade, de maneira oposta, nas duas línguas:

(26) a. ASK (LSB: regular vs. LSC: reversa)
b. ASK-FOR (LSB: reversa vs. LSC: regular)

Ao mesmo tempo, a mesma estrutura conceitual lexical, na mesma língua, pode exibir formas lexicais com concordância e sem concordância:

(27) BORROW (LSC)

Diante de todas estas evidências, parece não ser mais possível manter a visão simplista de classes verbais e de concordância, conforme proposto nas abordagens de Padden e Meir. Os resultados desses trabalhos nos ser- viram como ferramentas úteis para entender os fenômenos em estudo, mas enfrentamos novos desafios na análise. Parece estar na hora de partir em busca de explicações mais complexas.

6. Conclusões

Após a discussão oferecida neste artigo, o quadro que emerge sobre concordância e classes verbais em LSs é substancialmente modificado, com relação às suposições atuais sobre esses tópicos. Pode-se afirmar que os verbos não simples (“espaciais” + “de concordância”) podem, em geral, concordar com argumentos locativos (concordância espacial), com argumentos pessoais (concordância de pessoa), ou ambos. Os predicados auxiliares podem concordar, apenas, com argumentos pessoais/animados (concordância de pessoa) e apontam para o fato de que os verbos reversos são verbos lexicais manuais, cujas trajetórias são determinadas pela concordância espacial e não pela concordância de pessoa gramatical.
Conforme mencionado acima, a concordância com traços locativos e de pessoa gramatical é, com frequência, indistinguível na superfície. Entretanto, a estrutura do argumento de cada predicado impõe as condições de licenciamento, conforme discutido nos exemplos (7) e (8), em que o argumento-sujeito de um predicado manual deve ser licenciado pelo traço de pessoa.

Existe, ainda, uma questão de ambiguidade do locus como localização ou R-locus (por exemplo, TELL [dizer] com concordância de pessoa gramatical vs. TELL com concordância locativa no argumento-ALVO), havendo necessidade de mais pesquisas para se determinar até que ponto um locus atribuído a um referente animado pode ser ambíguo, entre um locus de pessoa gramatical ou um locus espacial.

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