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Rejane Plinski
Rejane Plinski
Especialista em Educação de Surdos
O Currículo e a Educação de Surdos
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Publicado em 2011
RVCSD - Revista Virtual de Cultura Surda e Diversidade, Edição nº 07
Rejane Plinski
Resumo

Educação é sempre um tema bastante debatido nos meios acadêmicos. Há muitas dúvidas e questionamentos sobre qual a metodologia e o currículo que melhor se adaptam ao ensino, tanto de alunos ouvintes quanto de alunos surdos. No caso dos alunos surdos, esse assunto é um tanto delicado, pois exige um conhecimento que vai além do que é ensinado nas academias. Há uma necessidade de se ir muito além, para que o ensino a eles oferecido possa realmente atender a todas, ou quase todas as necessidades e expectativas. Por isso é importante que se faça um estudo sobre o currículo e como se dá o ensino em escolas de surdos. O meu objetivo com este texto não é dar respostas exatas, mas chamar a atenção para aspectos importantes na educação de alunos surdos. Iniciarei com um breve histórico sobre a trajetória do currículo na educação, relacionando-o com a educação de surdos e abordarei questões que considero importantes ao se elaborar um currículo para o ensino dos mesmos.

1. Introdução

A educação dos surdos passou por profundas transformações no decorrer do seu desenvolvimento e podemos dizer que em muitos momentos foi traumatizante para alguns sujeitos surdos em virtude de uma imposição ouvintista que privilegiava o oralismo e o treinamento auditivo, não respeitando a sua cultura e língua. A conseqüência disso foi que os surdos não tiveram uma escolarização efetiva, ocasionando um atraso escolar. No decorrer da história as pessoas ouvintes decidiam o que seria melhor para os surdos, impondo a sua vontade em detrimento da vontade dos sujeitos surdos, pois nunca lhes era questionado o que era importante e necessário aprender de forma que os ajudassem a se desenvolverem como verdadeiros cidadãos.

Atualmente os debates e estudos sobre o processo de ensino e aprendizagem de alunos surdos vêm ocupando um importante espaço não só nas instâncias educacionais como também na comunidade surda, através de reivindicações de estruturas diferenciadas e preparadas para atender suas necessidades. Ao analisarmos as propostas que os sujeitos surdos fazem em relação à educação percebemos haver uma grande preocupação de como o ensino será ministrado e o que será ensinado. Por isso é de fundamental importância que os currículos elaborados nas escolas levem em consideração as reivindicações dos sujeitos surdos para que haja respeito a sua cultura, língua, identidade e para que as escolas de surdos cumpram com o seu papel de mediadoras no desenvolvimento de conteúdos.

2. Objectivos

Através deste trabalho proponho-me a identificar e analisar a forma pela qual a educação de surdos e as propostas curriculares vêm atendendo as expectativas dos alunos e se ao elaborarmos os currículos estamos apenas nos preocupando com o aspecto legal sem levar em consideração o que realmente será ensinado em sala de aula.

A intenção é levantar questões sobre como proporcionar condições concretas de aprendizagem. No entanto não pretendo chegar a respostas conclusas e, sim, refletir a respeito desse assunto tão importante e colaborar de alguma forma com a educação de pessoas surdas. Este é um assunto que me desperta interesse, principalmente ao questionar minha própria prática docente, como atuante em uma escola de surdos na cidade de Porto Alegre. Espero poder contribuir com a reflexão a respeito dos trabalhos desenvolvidos nas escolas que atendem alunos surdos ajudando assim colegas. Espero, que a partir de reflexões que proponho, possamos construir uma proposta curricular eficiente, capaz de proporcionar um ensino de maior qualidade.

3. Justificativa

O currículo é elemento fundamental na dinâmica da escola, pois é ele que norteia o trabalho a ser desenvolvido em cada ambiente escolar. Portanto, proponho uma reflexão acerca da necessidade de organização de um currículo flexível e que seja capaz de atender às demandas e necessidades de ensino na educação de surdos.

É importante ressaltar que não me proponho a dar respostas, mas pretendo levantar questionamentos que sirvam como motivadores à análise dos currículos elaborados e praticados nas escolas de surdos. Com isso, espero ser possível rever questões que envolvem o trabalho docente nessas escolas. Acredito que este trabalho poderá contribuir de alguma forma, de modo a ajudar pessoas que tenham interesse nessa área da educação.

4. Metodologia

Por trabalhar em uma escola de surdos e muitas vezes me questionar sobre questões como a minha prática docente, o fraco desempenho acadêmico dos alunos em noções básicas de leitura e escrita e conversas com minhas colegas sobre os processos de ensino e aprendizagem de surdos, resolvi fazer uma pesquisa bibliográfica a respeito do assunto Currículo e Educação de Surdos. Procurei fazer um levantamento da história do currículo e relacionar com a educação de surdos. Por isso começo escrevendo sobre a definição de currículo e passo a relatar como o currículo foi se desenvolvendo no decorrer dos tempos. Procurei fazer uma possível relação entre a história da Educação de Surdos e a História do Currículo, de acordo com o que conhecemos nos dias de hoje. Em seguida faço uma análise a respeito do que alguns autores pensam sobre o currículo em escolas de surdos e finalizo me posicionando a respeito das análises feitas.

O objetivo de fazer um trabalho bibliográfico surgiu do interesse de saber o que pesquisadores da área pensam sobre a elaboração de um currículo eficiente ou que pelo menos possa atender aos interesses de pessoas surdas em termos educacionais. Através da leitura de diversos autores procurei ressaltar aspectos pertinentes ao assunto que puderam me auxiliar na construção desse texto. Pela minha prática docente, conversas com colegas e análise do desempenho acadêmico dos alunos, procurei entender e analisar como ocorre a aprendizagem dos alunos e interpretar essas situações, tendo por base o currículo utilizado na escola e textos pesquisados. Tudo isso contribuiu para que pudesse chegar as conclusões deste artigo que com certeza ajudarão na construção do meu conhecimento, do meu aprender e do meu ensinar.

5. Um pouco de História

De acordo com o dicionário Houaiss (2009), currículo é definido como “programação de um curso ou de uma matéria a ser examinada.” Do ponto de vista etimológico, a palavra currículo vem do latim scurrere e significa correr no sentido de um percurso que deve ser realizado em um curso ou carreira.

Contemporaneamente, deve-se levar em conta o fato de que dependendo dos objetivos a que se propõe um determinado ensino, poder-se-á definir currículo, já que ele não é algo fechado em si. De acordo com Sacristán (1998), ao definirmos currículo estamos descrevendo a concretização das funções da própria escola e a forma particular de enfocá-las num determinado momento social e histórico, para um nível ou modalidade de educação, numa trama institucional.

O currículo pode ter diferentes abordagens, dependendo do enfoque que se quer dar a ele. Conforme Krug (1999), o mesmo pode ser definido segundo uma Rede de Ensino ou uma escola em particular, pode também seguir determinados livros didáticos e, então, a partir deles se organizar o currículo. Ou de acordo com a realidade cultural, histórica e social definir qual o melhor currículo a ser desenvolvido.

A própria definição de currículo sofreu modificações no decorrer da história da Educação. Portanto, é importante que se faça uma análise de como o currículo se desenvolveu no decorrer dos tempos, até para que possamos compreender as diferentes abordagens e fatores que envolveram a elaboração do mesmo. Nesse sentido é importante, também, refletir sobre como ocorreu a construção da Educação de Surdos, ao longo da história, procurando compreender seus desdobramentos e influências sobre a educação na atualidade.

Dito isso, é relevante levar ao conhecimento do leitor, que no texto que segue, ocorrerão alguns “saltos” cronológicos, o que se deve ao fato de que apesar de haver uma possível história sobre o currículo na educação, a inclusão da problemática da educação de surdos – eixo deste trabalho – foi, de certo modo, negligenciada, devido aos valores e regimes de verdade que delinearam tais questões no decorrer dos anos. Assim, se busca aqui, traçar uma possível relação entre a história da Educação de Surdos e a História do Currículo, de acordo com o que conhecemos nos dias de hoje.

Strobel (2006) faz um retrocesso na história da educação de surdos, explicando que a história dos surdos, a pedagogia e as políticas têm sido elaboradas sempre sob uma perspectiva dos ouvintes e não dos surdos. Segundo a autora, na antiguidade, pessoas que não escutavam eram consideradas anormais, que apresentavam um atraso intelectual. Não havia pesquisas científicas na área educacional e a sociedade considerava que as pessoas normais precisavam falar e ouvir para serem aceitas. Não havia escolas e existiam muitas leis que desconsideravam a capacidade de pessoas surdas. Na Roma antiga, por exemplo, os recém nascidos que apresentassem alguma deficiência eram sacrificados. Como a surdez não era percebida nos bebês recém-nascidos, no ano de 753 a.C., o imperador Rômulo decretou que as crianças que traziam algum tipo de incômodo para o Estado deveriam ser mortas até os três anos de idade. Além de serem sacrificados, os surdos eram, também, marginalizados no que diz respeito ao convívio social. Por serem excluídos da sociedade, muitos eram alvo de compaixão, principalmente a partir da ótica religiosa, e/ou faziam algum tipo de atividades manuais, sendo aceitos em monastérios. Não havia uma preocupação pela formação educacional.

Girolamo Cardano (1501–1576) realizou uma experiência com surdos e o resultado rompeu com a visão de que os surdos eram incapazes de aprender. Segundo SOARES (1999), Cardano reconheceu publicamente a habilidade do surdo em raciocinar, pois segundo ele a escrita poderia representar os sons da fala ou idéias do pensamento, sendo assim, a surdez não seria um problema para o surdo adquirir o conhecimento. Nesta época, a educação de surdos se destinava aos filhos de ricos e nobres da corte espanhola, que queriam garantir a continuidade de seus bens materiais no próprio seio familiar, pois o filho surdo, em alguns casos, teria que ter conhecimento para administrar os bens da família.

Com relação ao currículo educacional propriamente dito, de acordo com Schubert (1986), em anos anteriores a 1900, o mesmo tinha por fundamento valores baseados nas tradições históricas do ocidente. O desenvolvimento de habilidades profissionais era a idéia central do currículo, idéias sobre o “bem” e o “mal” ou justiça eram determinadas por instituições religiosas e pela família. No século XIII, a educação teve influência de São Tomas de Aquino e o currículo ainda não existia de uma forma organizada e oficializada. O conhecimento tinha por base valores cristãos que eram transmitidos através de uma rígida disciplina. No século XVI, os educadores consideravam que ensinar apenas com base nos clássicos já não era suficiente, era importante organizar o currículo de forma que experiências de vida e observação fizessem parte do mesmo, pois havia muitas coisas a serem aprendidas (GESSER, 2002). Em termos de educação de surdos, a partir desse século, conforme explica Strobel (2006), surgiram em diferentes lugares da Europa, professores preocupados com a educação dos surdos. Professores que comprovaram a veracidade da aprendizagem dos mesmos ao usarem a língua de sinais e o alfabeto manual, também havia professores surdos nessa época. O propósito da educação, seguindo os valores da época, era que os surdos pudessem desenvolver seu pensamento, adquirir conhecimentos e se comunicar com o mundo ouvinte. Para tal, procurava-se ensiná-los a falar e a compreender a língua falada, mas a fala era considerada uma estratégia, em meio a outras, de se alcançar tais objetivos.

Nas tentativas iniciais de se ensinar o surdo, além da atenção dada à fala, a língua escrita também desempenhava papel fundamental. Os alfabetos manuais eram amplamente utilizados. Eles eram inventados pelos próprios professores, sob o argumento de que se os surdos não podiam ouvir a língua falada, então eles podiam lê-la com os olhos. (LACERDA, 1998).

Nos séculos, XVII e XVIII com o Iluminismo ou Idade da Razão, o currículo passa a se basear na razão, no método científico e nas experiências para prover a base de julgamento com relação às formas justas e adequadas para se viver em sociedade. O movimento Iluminista teve forte influência na educação. Segundo Gesser (2002) Parker, um pensador americano influenciado por educadores europeus, acreditava que o currículo deveria ser baseado nas experiências e interesses das crianças. Ele substituiu o treinamento do método silábico pelo método por palavras, que é a forma pela qual as crianças naturalmente aprendem a linguagem. Para Schubert (1986), isso foi o fundamento para a educação progressivista, movimento extremamente significante no início dos anos 90 nos Estados Unidos, influenciando o mundo. Essas idéias, ao término do século XIX, levaram ao aparecimento do campo de currículo e de sua indagação.

Em 1760, o abade francês Charles-Michel de L’Épée funda em Paris a primeira escola pública para surdos, instituindo o ensino coletivo. Este fato vinculado à história das instituições de surdos criada por um ouvinte é um fato determinante no processo de construção e de expansão da organização política, social e educacional dos surdos no continente Europeu e em diversos países do continente Americano.

Através dessa escola, os surdos puderam se articular numa comunidade surda em que a modalidade lingüística utilizada por eles pôde ser reconhecida como uma forma de comunicação e um método de aprendizagem. De acordo com Lopes (2007), o método utilizado por L’Épée consistia em ensinar sinais que correspondiam a objetos específicos e mostrar desenhos para explicar ações, depois associava o sinal com a palavra escrita em francês. Quando não havia um sinal para expressões abstratas, L’Épée buscava na escrita uma explicação. Diferentemente da compreensão da língua de sinais estabelecida e utilizada pelos surdos junto de seus pares, os métodos do abade encerravam a operacionalização da aprendizagem. Para L’Epée, a linguagem de sinais é concebida como a língua dos surdos e como veículo adequado para desenvolver o pensamento e sua comunicação.

Seguindo a história, a primeira escola de surdos do Brasil, surgiu no século XIX, em 1857, no Rio de Janeiro. A escola de Paris influenciou diretamente a educação de surdos no Brasil. A escola foi fundada por um professor surdo, Hernest Huet e teve apoio de Dom Pedro II, a qual se desenvolveu com um forte acento na caridade e na benevolência.

Em 1878, em Paris, foi realizado o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos, no qual se fizeram acalorados debates a respeito das experiências e impressões sobre o trabalho realizado até então. No Congresso alguns defendiam a idéia de que falar era melhor do que usar sinais, mas que esses eram muito importantes para a criança poder se comunicar. Ali, os surdos tiveram algumas conquistas importantes, como o direito de assinar documentos, tirando-os da “marginalidade” social, mas ainda estava distante a possibilidade de uma verdadeira integração social. (LACERDA, 1998).

O Congresso Internacional de Milão, em 1880, é considerado um marco histórico na educação de surdos. Como explica Lacerda (1998), o congresso foi preparado por uma maioria oralista com o firme propósito de dar força de lei às suas proposições no que dizia respeito à surdez e à educação de surdos. Apresentaram-se muitos surdos que falavam bem, para mostrar a eficiência do método oral. Com exceção da delegação americana e de um professor britânico, todos os participantes em sua maioria europeus e ouvintes, votaram por aclamação a aprovação do uso exclusivo e absoluto da metodologia oralista e a proscrição da linguagem de sinais e por cem anos os surdos ficaram subjugados às práticas ouvintistas, tendo que abandonar sua cultura e sua identidade surda, forçados a imitar os ouvintes e a se parecerem com eles. No entanto a maior parte dos surdos profundos não desenvolveu uma fala socialmente satisfatória e, em geral, esse desenvolvimento era parcial e tardio em relação à aquisição da fala apresentada pelos ouvintes, implicando um atraso de desenvolvimento global significativo.

O oralismo foi bastante criticado, inclusive por ter sido ele um dos fatores que contribuíram com o fracasso escolar dos surdos. Em virtude do limite de comunicação e também pela impossibilidade de conseguirem se apropriar da Língua Portuguesa, os surdos foram considerados incapazes, com déficit cognitivo e dificuldade de socialização. Nesse período, os surdos têm sua história marcada pela violência e pelo poder, porque havia o interesse de transformar o surdo em alguém capaz de se comunicar usando a língua portuguesa. Na lógica do oralismo, a vigilância e o controle exercidos sobre os surdos eram feitos de forma sofisticada, tendo como objetivo disciplinar a “alma” para que ele se sentisse crente e até desejoso dos processos aos quais eram submetidos (LOPES, 2007). A educação dos surdos no Brasil foi influenciada pelas metodologias dos séculos XVI a XIX.

Com a evolução da medicina, um novo discurso emerge e os surdos foram categorizados em surdos leves e surdos profundos, dessa forma passaram a ser considerados “doentes” e “deficientes” os que tinham uma surdez profunda. Nessa fase, o século XIX, o atendimento era voltado para a filantropia e ao assistencialismo. Os surdos eram entregues às instituições e asilos até que estivessem aptos a retornar ao convívio social, que normalmente acontecia quando já eram adultos.

Retornando a história do currículo, no final do século XIX e no início do século XX inicia-se efetivamente, nos Estados Unidos, o currículo como um campo sistemático de trabalho na educação. (KLIEBARD, 1995; MOREIRA, 1990), afirmam que isso ocorreu devido o advento da sociedade industrial e urbana na época. Moreira (1990), explica que o Brasil passou por um processo semelhante em virtude das mudanças que aconteceram na indústria devido ao processo de industrialização que estava ocorrendo em outros países. Com as mudanças sociais, o crescimento das indústrias, o avanço das vias férreas e a chegada de imigrantes foi necessário se pensar em currículo na educação. Em função de todos esses acontecimentos e também uma grande revolução da ciência houve uma batalha ao currículo. De acordo com Selden (1999), o movimento da Eugenia, movimento pela manutenção de uma raça “pura”, teve um grande impacto no currículo nos anos 20, pois os livros didáticos eram usados como ferramentas para veicular seus princípios/valores básicos por meio da educação. Em consequência, ocorreram conflitos entre grupos raciais, especialmente entre negros e brancos, em vários continentes da esfera global. É possível se pensar que isso tenha acarretado maiores dificuldades no que diz respeito ao desenvolvimento da Educação de Surdos, já que os discursos desta época desprivilegiavam as pessoas que fugiam da norma eugênica.

Neste momento, darei um salto na trajetória histórica do currículo educacional e priorizarei o currículo na educação de surdos. Apesar de grandes mudanças em relação aos estudos sobre currículo, até os anos 50 nada de realmente importante aconteceu em relação à educação de surdos. Apenas com as novas descobertas técnicas, houve a possibilidade de “protetizar” crianças surdas muito pequenas. Foram desenvolvidas novas técnicas para que a escola pudesse trabalhar sobre aspectos da percepção auditiva e de leitura labial da linguagem falada, surgindo assim um grande número de métodos, dando ensejo a momentos de nova esperança de que com o uso de próteses, se pudessem educar crianças com surdez grave e profunda a ouvir e, consequentemente, a falar. A aprendizagem da linguagem oral era considerada fundamental para o desenvolvimento integral das crianças, no entanto a forma como as crianças eram ensinadas restringia as possibilidades do desenvolvimento global da criança, visto que o ensino era descontextualizado de interlocuções efetivas, tornando a linguagem difícil e artificial (LACERDA, 1998).

A partir da década de 1950, o Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES do Rio de Janeiro estabeleceu o oralismo como opção pedagógica de ensino. De acordo com Soares apud, Niédja e Mélo (2005), o método oral foi adotado no INES na gestão da professora Ana Rímoli de Faria Doria que proibiu o uso da língua de sinais oficialmente em sala da aula. Ela se utilizava de publicações vindas dos Estados Unidos para orientar o trabalho dos professores e dos pais.

Apesar de todo período de dominação e opressão oralista, a comunidade surda esteve engajada em movimentos de resistência de formas variadas: criação de associações de surdos, casamento entre surdos, refúgio de crianças surdas nos banheiros e pátios das escolas para terem a liberdade de se comunicarem em língua de sinais.

Nos anos 60 e 70 com a emergência de vários grupos, inspirados pelo movimento dos direitos civis, relacionados à liberação e igualdades das mulheres, dos negros, dos homossexuais e de outros grupos minoritários, entre eles as comunidades surdas, conduziram o currículo a uma nova discussão que visava à reforma do mesmo e surgiram livros, ensaios, teorizações que questionavam o pensamento e a estrutura educacional tradicional. Surge então a pedagogia crítica a qual propõe um currículo voltado aos problemas sociais, econômicos e políticos da realidade. (MOREIRA 1990; SCHUBERT 1986).

Assim na década de 60, começaram a surgir estudos sobre as línguas de sinais utilizadas pelas comunidades surdas. De acordo com Lacerda (1998), apesar da proibição dos oralistas no uso de gestos e sinais, raramente se encontrava uma escola ou instituição para surdos que não tivesse desenvolvido, às margens do sistema, um modo próprio de comunicação através dos sinais. Willian Stokoe (1978) estudou a língua de sinais sob o ponto de vista lingüístico e encontrou uma estrutura que se assemelhava a línguas orais.

No currículo educacional, conforme Silva (2001), os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron desenvolveram uma crítica da educação que se afastava da análise marxista. Segundo eles, a reprodução social está centrada no processo de reprodução cultural. As classes sociais dominantes possuem a cultura de prestígio e de valor social e por isso ela se constitui em capital cultural. O capital cultural existe em diversos estados: estado objetivado (obras de arte, obras literárias e obras teatrais, etc.), o capital cultural institucionalizado (títulos, certificados e diploma) e manifesta-se de forma incorporada, introjetada, internalizada, o habitus. Como a cultura dominante assume a posição de constituinte da cultura e para que não apareça como algo imposto, ela acontecerá como de forma natural. A esse duplo mecanismo Bordieu e Passeron chamam de dupla violência do processo de dominação cultural. A dominação cultural acontece na escola como um mecanismo de exclusão social. O currículo escolar está baseado no que é determinado pela cultura dominante e é transmitido através do código cultural dominante. O que estiver fora desse “código” será considerado errado.

Portanto para crianças que já convivem em um meio que se utiliza desse código padrão fica mais fácil assimilar e entender, porém para crianças que o desconhecem isso lhes parecerá estranho e alheio a sua realidade, determinando o seu fracasso escolar, pois não faz parte de sua vivência, a sua cultura nativa é desvalorizada e o seu capital cultural é baixo ou quase nulo. Dessa forma completa-se o ciclo de reprodução cultural em que as classes sociais dominantes continuam se mantendo e garantindo o processo de reprodução social. A proposta de Bourdieu e Passeron é que as crianças das classes dominadas tenham as mesmas experiências que as crianças das classes dominantes, ou seja, ter uma proposta pedagógica em que se reproduzam na escola as mesmas condições que as crianças das classes dominantes têm na família. (SILVA, 2001)

Assim podemos perceber a relação de poder existente na educação de ouvintes e que se refletirá em especial na educação de surdos em que o modelo ouvintista era priorizado. A dificuldade de aprendizagem da língua oral, que provoca sérias consequências para o desenvolvimento da criança, sobretudo na escolarização- aliada a uma nova visão por parte da comunidade em geral acerca dos grupos minoritários, levou alguns profissionais a repensarem questões relacionadas à educação das crianças surdas, seu espaço na sociedade e sua relação com os ouvintes. (GOLDFELD, 2001)

Dessa forma nos anos 70 surgiu a chamada comunicação total; uma reação ao oralismo até então existente. “A comunicação total é a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e alfabeto digital para fornecer inputs lingüísticos para estudantes surdos, ao passo que eles pudessem se expressar nas modalidades preferidas” (Stewart 1993, p. 118). A comunicação total era vista como uma forma mais flexível de comunicação surda, pois era permitido o uso de diferentes meios de comunicação, trazendo para a sala de aula os sinais utilizados pelas comunidades de pessoas surdas. (GÓES apud LOPES, 2007)

Essa proposta pedagógico-educacional tinha por objetivo fornecer à criança a possibilidade de desenvolver uma comunicação real com seus familiares, professores e pares, para que pudesse construir seu mundo interno. A proposta de comunicação total defendia a ideia de que a língua de sinais é a língua natural dos surdos, que apesar de não ouvirem, podem desenvolver plenamente uma língua viso gestual. De acordo com os pressupostos dessa filosofia, aconteceram diversas tentativas de aproximação das duas línguas (oral e de sinais), criando línguas orais sinalizadas. Essas línguas utilizam o léxico da língua de sinais submetido à gramática da língua oral. (GOLDFELD, 2001). O argumento favorável a essa filosofia educacional era que a mesma não se oporia à diferença surda, mas que possibilitaria o acesso a várias formas de aprendizagem e de interlocução lingüística. Os surdos além de aprenderem o português também aprenderiam a língua de sinais. Nesse momento a oralização era apenas uma das áreas trabalhadas para possibilitar a integração social do indivíduo surdo.

Alguns autores que trabalham na área, não reconhecem a Comunicação Total como uma filosofia, visto que não há como utilizar duas línguas simultaneamente. Neste caso o bimodalismo não favoreceria o aprendizado da língua de sinais, mas fortaleceria o uso de alguns sinais para que o português fosse ensinado (BRITO apud LOPES, 2007).

A partir da década de oitenta, surge uma maneira diferente de perceber o surdo e a língua de sinais. É necessário valorizar essa língua e a cultura surda, não misturando com a língua oral. Assim profissionais de diferentes áreas começam a se interessar por esse assunto. Junto com os estudos sobre comunicação total, outros estudos sobre a língua de sinais foram ocorrendo de forma mais estruturada e surgindo alternativas educacionais orientadas para uma educação bilíngüe. Nessa proposta é defendida a idéia de que a língua de sinais é facilmente adquirida pelos surdos, possibilitando o acesso a uma linguagem que permite uma comunicação eficiente e completa como aquela desenvolvida por sujeitos ouvintes e permite-lhe um desenvolvimento cognitivo, social, etc. muito mais adequado e compatível com sua faixa etária. (LACERDA, 1998)

Segundo Lacerda (op.cit), no bilinguismo a proposta é ensinar duas línguas, a língua de sinais e, secundariamente, a língua do grupo majoritário. A língua de sinais, por contar com o canal viso-gestual, é mais adaptada à pessoa surda e quanto mais cedo a criança for exposta a sinalizar melhor será a sua competência lingüística, facilitando o aprendizado de uma segunda língua. A língua de sinais estará sempre um pouco mais desenvolvida e adiante da língua falada, de forma que a competência lingüística na língua de sinais ajudará na aquisição da segunda língua. O objetivo da educação bilíngüe é que a criança surda possa ter um desenvolvimento cognitivo-linguístico semelhante ao que se verifica nas crianças ouvintes e tenha condições de desenvolver uma relação harmoniosa com os ouvintes, tendo acesso a duas línguas: a língua de sinais e a língua majoritária. Através da filosofia educacional bilíngue, a criança surda tendo contato com o adulto surdo pode construir uma auto-imagem positiva como sujeito surdo, sem perder a possibilidade de se integrar numa comunidade de ouvintes. De acordo com Lopes:

No caso dos surdos, viver numa condição bilíngue implica viver numa condição bi cultural. A convivência surda, tanto com a comunidade surda quanto com a comunidade ouvinte, imprime traços identitários distintos nos sujeitos surdos, pois esses partilham de elos que os posicionam de formas específicas, ora como surdos – quando estão na comunidade surda -, ora como não-ouvintes – quando estão entre ouvintes. (2007, p. 66)

Conforme Skliar apud Lopes (2007), uma proposta de educação bilíngue para surdos pode ser definida como “uma oposição aos discursos e às práticas clínicas hegemônicas – características da educação e da escolarização dos surdos nas últimas décadas – e como um reconhecimento político da surdez como diferença.

De acordo com Niédja e Melo (2005), essa visão é fortalecida com a emergência de uma nova teorização curricular: as vertentes denominadas como pós-moderna e pós-estruturalista, que passam a incorporar o pensamento de Foucault, Derrida, Guattari e Morin, cuja ênfase está na análise da relação entre currículo e construção de identidades e subjetividades.

No início dos anos noventa, estudos voltados para o currículo assumiram um enfoque sociológico, em contraposição à primazia do pensamento psicológico até então dominante. Os trabalhos procuravam compreender o currículo como espaço de relações de poder. As mudanças ocorridas favoreceram reflexões acerca de estudos sobre a surdez e o desnudamento dos efeitos negativos das práticas “ouvintistas”, que, segundo Skliar (1997) sugere uma forma particular de colonização dos ouvintes sobre os surdos. Considerando importante superar essas formas de colonização nas escolas de surdos. Segundo esse autor, ele propõe descolonizar/desouvintizar o currículo. (NIÉDJA e MÉLO, 2005)

Segundo Skliar apud Niédja e Mélo, (2005) adverte que a surdez não deve ser o foco principal dentro da sala de aula, pois poderia acontecer de se reproduzir um currículo também colonizador, em virtude de se estar fazendo segregações. Não é pensar o currículo em oposição ao currículo ouvinte, mas colocar a questão das múltiplas identidades surdas no centro pedagógico.

Com base nessas considerações, um grupo de estudiosos tem reconhecido a importância de desenvolver um novo olhar sobre o currículo, buscando incluir outras metáforas, outras abordagens, outros conceitos na Teoria do Currículo. De acordo com Silva apud Niédja e Mélo (2005), é importante se evitar discursos de grupos restritos que, opressivamente, se apresentam como os únicos discursos possíveis e a única direção a ser tomada para os campos educacional e do currículo. Ele reconhece o enorme benefício de uma abordagem sobre Currículo voltada para a economia política, com influências marxistas, visto que somos uma sociedade capitalista, governada pela produção de valor e mais-valia.

Portanto, segundo Niédja e Mélo (2005), é nesse contexto que a discussão acerca do currículo na educação de surdos vem se acentuando, com destaque para a surdez como diferença e se ampliando frente às atuais reformas promovidas pelo governo na área educacional, dentre elas a proposta de educação inclusiva, em especial na rede regular de ensino, de acordo com o MEC nos PCNs e no documento “Adaptações curriculares – Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais” de 1999. Segundo esse documento as adaptações curriculares podem atender às necessidades particulares de aprendizagem desses alunos. Essas adaptações são modificações, flexibilizações que se realizam no programa curricular comum para atender as diferenças individuais. No entanto sabe-se que nesse tipo de educação acaba ocorrendo uma exclusão subliminar, pois os alunos não são atendidos de acordo com suas necessidades, nem mesmo aqueles já incluídos, fato comprovado através dos altos índices de reprovação e de evasão desses educandos.

Segundo Goodson apud Niédja e Mélo (2005), é importante discutir as propostas curriculares ou o chamado currículo prescritivo; “aquilo que está prescrito não é necessariamente o que é aprendido, e o que se planeja não é necessariamente o que acontece” (p.78). Percebe-se então que o que ocorre são relações de poder que determinam a construção de uma proposta, aceitas em determinados momentos enquanto algumas posições não têm espaço para se imporem ou se fazerem ouvir. Reforçando que o currículo é organizado não apenas como para transmitir conhecimentos, mas que incute valores ideológicos, culturais e sociais. Ele é o resultado da seleção de alguém, de um grupo, acerca do que é considerado conhecimento legítimo. Assim, o currículo traduz uma cultura e produz sentidos, significados que constituem diferentes sujeitos. (SILVA, 2001)

Podemos perceber que nas origens do currículo brasileiro as reformas educacionais efetuadas contribuíram para discussões de uma escola mais democrática, apesar de articularem a idéia de adaptar a escola e o currículo à ordem capitalista que se consolidava, influenciados pelas teorias progressivistas de autores norte-americanos.

Em relação à educação de surdos a mesma teve influências marcantes do pensamento curricular brasileiro, passando por diferentes filosofias educacionais. Com o pensamento pós-moderno e pós-estruturalista entende-se que o currículo é um “artefato cultural” e é necessário se dar “voz” às culturas excluídas ou silenciadas pela escola, como forma de garantir uma convivência mais democrática entre os diferentes grupos. Também a necessidade de se acompanhar criticamente as reformas educacionais (inclusão escolar) e curriculares (PCNs) implementadas uma vez que foram impostas e realizadas sob inspiração neoliberal. Nesse contexto é preciso questionar e discernir se o surdo tem sido verdadeiramente respeitado em suas peculiaridades, na forma de pensar, sentir e diferir. Enfim, se há na verdade uma mera aceitação das pessoas diferentes ou se, realmente há um acolhimento da diversidade. (NIÉDJA e MÉLO, 2005)

6. E o Currículo...

Inevitavelmente quando nos referimos à educação de surdos, precisamos falar a respeito da Língua de Sinais. Assim como afirma Botelho (2005) o que falta aos surdos é uma língua que eles dominem e que lhes permita pensar com todas as complexidades necessárias e ao adquirirem essa língua raramente a compartilham com seus professores.

O que se vê em sala de aula é que muitos alunos não foram alfabetizados em sua língua e sentem muita dificuldade de entender o que se está dizendo. Nesse momento há um questionamento do porquê da dificuldade e alegam que o aluno tem outros problemas que comprometem o seu aprendizado. Será? Se for dada oportunidade ao surdo de adquirir a sua língua, como primeira língua, ele terá condições de desenvolver todo o seu potencial lingüístico e, dessa forma, o seu potencial cognitivo. E por essa razão terá condições de compreender melhor o que lhe será ensinado. (Dorziat, 1998).

Utilizando as palavras de Quadros (2003) a aquisição da linguagem é fundamental para que o sujeito surdo possa reescrever-se através da interação social, cultural política e científica. Dessa forma essa deve ser uma preocupação dos professores que trabalham na Educação infantil. Dar condições ao aluno de uma efetiva aprendizagem da sua língua, pois o processo educacional ocorre mediante a interação lingüística, juntamente com as relações sociais, assim constituindo os modos de ser e de agir do sujeito. Conforme Quadros (Ibidem)

O currículo deveria estar organizado partindo de uma perspectiva visual-espacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua da criança, pois a língua oficial da escola precisaria ser, desde o princípio, a língua brasileira de sinais. (p. 99).

De acordo com Quadros (2003) a alfabetização das crianças surdas deveria partir de uma língua visual espacial; portanto, a língua de sinais. Ao alfabetizarmos não utilizar o português escrito, mas um sistema escrito da língua de sinais. Esse sistema capta as relações que a criança estabelece com a língua de sinais e assim a alfabetização seria uma conseqüência do processo. Estaria garantido o letramento do aluno ao longo do processo educativo. Justamente por ser uma escrita de caráter visual haveria uma contribuição para que o aluno entendesse como se constitui a estrutura da LIBRAS. Sendo assim o professor deve ter o cuidado de elaborar aulas utilizando estratégias de ensino visual.

No entanto, podemos acrescentar que alguns professores, talvez por desconhecimento, utilizam os sinais na estrutura do português, o chamado português sinalizado, nesse caso fica difícil para os surdos entenderem a mensagem do conteúdo que lhes é transmitido. E apesar de saberem LIBRAS, muitas pessoas, também se utilizam do português sinalizado e os surdos são obrigados a aprender determinados sinais, não entendendo o significado, dessa forma os surdos são privados de sua própria língua. Em situações simples de comunicação, o “português sinalizado” pode até ser entendido, mas em situações mais complexas, não há uma compreensão real porque ele confronta duas modalidades com estruturas bem diferenciadas, desorganizando o entendimento. (MARQUES 2007)

É fundamental que professores aprofundem seus conhecimentos sobre a língua de sinais, mesmo que demande tempo e dedicação. Caso isso não aconteça implicará em risco de não vislumbrar progressos significativos das pessoas surdas, porque continuará a persistir os problemas de comunicação, decorrentes de uma linguagem limitada. (BOTELHO 2005) Quando os professores dominam a Língua de Sinais há uma influência direta nas práticas de leitura e escrita, facilitando o aprendizado do aluno e assim ocorrendo o letramento. Normalmente quando o aluno tem dificuldades de abstração é porque a sua experiência lingüística e escolar foi insatisfatória. Não são poucos os professores que afirmam a incapacidade de abstração dos surdos, talvez eles nunca tenham se perguntado qual é a parte que lhes cabe no processo educativo, é importante haver uma reflexão de como está o seu processo de ensino-aprendizagem para quem sabe uma mudança de atitude. De acordo com Paula Botelho (2005, p.58):

A educação dos surdos não tem oferecido condições favoráveis de acesso às complexidades cognitivas. Além de professores e alunos surdos não compartilharem uma mesma língua, e muitos surdos não serem fluentes em língua de sinais, a preocupação central em muitas escolas ainda é o ensino de palavras. E as palavras, por sua vez, não fazem sentido como pertinentes a uma categoria comum, tampouco se relacionam com um tema significativo.

Sabemos que o ensino de português deve ser contextualizado, que ao ensinar apenas palavras soltas não se consegue perceber as diferentes possibilidades de significado que uma palavra pode ter, dificultando o entendimento do vocabulário que em nossa língua é muito rico. Trabalhar o texto e perceber como ocorre a construção da estrutura frasal requer muito esforço, mas com certeza o resultado será mais eficiente do que apenas trabalhar vocabulário e sinal respectivo, o que acrescenta muito pouco ou quase nada para o aluno surdo. Dessa forma o aluno não se sente motivado a participar da aula, pois não compreende o que está sendo transmitido pelo professor. A metodologia de ensino é freqüentemente pautada no ensino de palavras, pensando a linguagem como um aglomerado de vocábulos. Essa atitude é respaldada na crença que o surdo tem dificuldade de abstração e por essa razão oferecem doses homeopáticas e de pouca qualidade de informação e de escolarização. (BOTELHO, 2005)

A construção de sentido do texto está relacionada ao domínio de palavras. Quando o surdo não conhece determinado vocabulário ele para e tenta entender o sentido lexical, mas isso não resolve os problemas de interpretação e produção textual e, muitas vezes, mesmo conhecendo o vocabulário eles não levam em consideração o contexto em que aquele vocabulário se apresenta. E ao recorrer ao contexto, é comum acontecer, são desencorajados, pois o contexto é tomado apenas como um acessório, e não como condição para a compreensão. Novamente como foi citado acima, os problemas decorrem da ausência da língua de sinais como uma língua de domínio pleno, que permita aos surdos outra perspectiva em relação à língua escrita (BOTELHO, 2005). Dessa forma as atividades desenvolvidas devem ser em libras, com uma posterior leitura e escrita de textos em Língua Portuguesa, o que com certeza facilitará uma melhor compreensão do conteúdo.

De acordo com Lopes (2007), uma proposta bilíngue pressupõe o domínio de duas línguas, em qualquer modalidade que elas possam ser articuladas. No entanto percebe-se que os surdos dominam a língua de sinais, mas não a língua portuguesa. Sendo assim as propostas educacionais estão equivocadas. O caráter bilíngue de uma proposta educativa deve partir do reconhecimento da diferença cultural dos surdos.

A Língua de Sinais dará condições de os surdos tornarem-se seres humanos na sua plenitude, através da apropriação dos conceitos científicos, disponíveis na educação formal. O uso dessa língua, apesar de critério básico, não deve ser visto como a solução de todos os problemas que se apresentam no ensino. Sabemos que outros fatores implicam no efetivo aprendizado de ordem social, cultural e política, contudo a escola deve ser um espaço de luta e de constante preocupação em oferecer um ensino de qualidade, atendendo às expectativas dos alunos para que possam se desenvolver plenamente como cidadãos, independentes intelectuais e poder participar criticamente da sociedade e não apenas se adaptarem a ela.

Conforme Franco (1999), o currículo atual, a princípio o mesmo da escola regular, é apenas adaptado por parte dos professores. Apresenta-se fragmentado, reduzido, criando uma baixa expectativa acerca do rendimento dos alunos. “O currículo em ação, portanto, distancia-se do currículo formal de maneira comprometedora no que tange à garantia de aquisição do conhecimento escolar mínimo.” (p. 221) Muitas vezes, por se saber que o conteúdo é muito difícil, deixamos o mesmo de lado com a desculpa que o surdo não entenderá, a partir dessa atitude estamos negando ao surdo a condição de ter contato com uma informação que poderá lhe ser muito útil em algum momento de sua vida.

Devemos considerar o surdo como alguém que precisa ser exigido e que pode aprender muito mais do que aquilo que é necessário para a sua passagem de ano e, para que ele tenha melhores condições, também é necessário que ele saiba ler e escrever. Em contrapartida há muitos educadores que evidenciam uma preocupação em elaborar um currículo que se traduza em garantia da construção de indivíduos autônomos e preparados para o mundo que os cerca, dando-lhes condições de emancipação. O currículo deverá englobar além do conhecimento escolar a construção de saberes subjetivos da cultura, da história e das identidades surdas. Se a base da cultura surda não estiver presente no currículo, dificilmente o sujeito surdo irá percorrer a trajetória de sua nova ordem formado por representações inerentes às manifestações culturais, levando em consideração que os surdos constroem uma historicização e estão em constante processo de mudança e transformação.

Assim o currículo é permanentemente reinventado, reestruturado, de acordo com as necessidades e interesses presentes em sala de aula. Isso implicará na possibilidade de flexibilizá-lo para uma posição de abertura, de acolhida, de solidariedade ao diferente específico e sua identidade. Devemos aproveitar as experiências que os surdos trazem de seu cotidiano, fugindo muitas vezes de uma proposta pedagógica ou da grade curricular, pois em muitos momentos o desenvolvimento de uma aula ocorre no exato momento em que estamos presente em sala de aula com os alunos e determinadas circunstâncias fazem com que venhamos a mudar todo um planejamento, mas essas oportunidades são únicas e devem ser explorada, assim haverá uma aprendizagem, com mais eficácia do que se seguíssemos o planejado. De acordo com Lopes (2007)

Enfim, pensar um currículo surdo que possa produzir, nas relações que se estabelecem dentro dele, outros marcadores surdos pressupõe espaços para a leitura do devir e para o sabor de viver o acontecimento. Devir e acontecimento não podem constituir nem propostas pedagógicas acabadas nem, muito menos, um currículo assumidamente surdo. Portanto, um currículo surdo só pode se estabelecer no acontecimento e na possibilidade de espaço nas escolas para que outras relações e outras verdades possam circular e formar outras marcas naqueles que vivem o currículo e fazem dele algo sempre em movimento. (p. 90)

Na educação de surdos não há uma discussão curricular. O que se vê são apenas adaptações de currículos desenvolvidos em escolas regulares. Em muitos casos os professores simplificam os conteúdos ou não se preocupam em como transmitir o conhecimento, esquecendo-se que o surdo possui uma modalidade de linguagem viso espacial. Contudo, conforme Botelho (2005), o objeto concreto nem sempre é necessário. “Tanto a aprendizagem de surdos como de ouvintes se faz de muitas maneiras, e não somente pela experiência direta, mediante contato com a realidade, pelos órgãos dos sentidos.” (pg.59) Mesmo porque nem sempre se conseguirá encontrar materiais visuais que contemplem o conteúdo que se está ensinando. Nessa situação cabe a criatividade do professor e, novamente, o emprego da libras de forma clara e coerente, facilitando a aprendizagem dos alunos.

Sendo assim, cabe aos profissionais envolvidos na educação de surdos o compromisso de procurarem mudar esse ensino existente em que muitos não levam em consideração a capacidade intelectual dos alunos, pois grande parte dos surdos mal sabe ler e escrever. Não podemos mais admitir a ausência de conteúdos de ensino, que reflete a baixa expectativa quanto ao desenvolvimento dessas pessoas. O que se pretende é a viabilização de um ensino de qualidade que os impulsione para o futuro com melhores condições de vida, promovendo atividades que priorizem os aspectos social, lingüístico e afetivo e trabalhos com conteúdos culturais interessantes, atualizados, com os quais os alunos possam travar relação direta, para que apreendam melhor os significados presentes no mundo. Pensar o currículo requer pensar nas diferenças e, por isso, seria importante a participação de pessoas surdas que ajudariam na construção do mesmo.

Portanto, currículo é um guia, um instrumento útil que irá orientar o trabalho do professor, por isso deverá ser pensado e construído no dia a dia de acordo com os interesses dos alunos. Ele se moldará as circunstâncias da sala de aula, assim vamos planejando e desenvolvendo os conteúdos e atividades, adaptando metodologias de acordo com aptidões e características das turmas. Deverá ser uma trajetória que leva ao desenvolvimento do ensino-aprendizagem eficiente, considerando os saberes da cultura e da identidade surdas.

7. Considerações Finais

Sabemos que na organização do currículo muitas coisas estão envolvidas, como foi visto no desenvolvimento deste trabalho. Ao pensarmos no currículo para surdos não devemos esquecer-nos de como a educação de surdos foi se desenvolvendo no decorrer dos tempos. É importante que tenhamos em mente que o surdo é diferente e tem suas potencialidades e que o currículo deve levar isso em consideração. Não podemos mais aceitar um ensino simplista, desmotivador. Precisamos nos questionar constantemente em como proporcionar condições concretas de aprendizagem, refletir sobre a nossa prática docente e avançar criticamente de forma que não venhamos a cair no erro de fazermos com que nossos alunos saiam da escola com dificuldades de entenderem o mundo a sua volta. Devemos buscar estratégias para o desenvolvimento de um currículo autônomo do modelo ouvinte e que parta das vivências, reflexões, expectativas de professores, alunos e familiares. O domínio da língua portuguesa, facilitadora para o acesso à leitura e à produção escrita é um grande desafio a ser vencido e deve ser priorizado no currículo.

É importante que nós, professores, sejamos reflexivos em relação a nossa prática docente e estejamos abertos ao aprendizado, sabendo-se que não existem repostas conclusivas, mas que devemos constantemente avaliar e auto-avaliar nosso trabalho em sala de aula, abrindo mão muitas vezes de conceitos pré-estabelecidos. A prioridade será sempre o aprendizado de nossos alunos para que realmente se possa atender suas necessidades e expectativas.

Bibliografia

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