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Diferentes Olhares sobre a Surdez e as suas Implicações Educacionais
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Publicado em 2003
GT: Educação Especial / n.15
Ana Dorziat Barbosa de Mélo
Resumo

O ensino não pode ser considerado isento, imparcial. Nem todos os procedimentos cabem nos diversos universos de ensino. Por isso, as pessoas envolvidas com a educação devem refletir sobre suas opções pedagógicas, tendo como princípio as escolas públicas ou particulares, não só como âmbito material e físico diferentes, mas como locais que abrigam pessoas com realidades e interesses diferentes. Essa é a base para se trabalhar o conhecimento. Além disso, existe a realidade cultural da escola de surdos. Abordar conteúdo de ensino sem entender essa realidade significa ratificar um processo de faz-de-conta que sempre perdurou nessa área.

1. Introdução

Atualmente, temos presenciado uma série de investidas no âmbito educacional, com a finalidade de confundir a população em geral, e as comunidades escolares, em particular. Embora se fale muito em respeito à diversidade, há uma prática camuflada de total desrespeito aos direitos humanos, sobretudo aos das minorias marginalizadas. Entre essas minorias estão as pessoas surdas que são atingidas de forma contundente, porque, enquanto os discursos proferidos se mostram democráticos e culturalmente vinculados, visam, de fato, a defesa dos valores da classe dominante.

As pessoas surdas sofrem, no mínimo duplamente, os preconceitos sociais: são vistas como deficientes ou incapazes, por não se moldarem (pelo menos aparentemente) às exigências da sociedade e às do mercado e são, na sua maioria, oriundas das classes populares, menos informadas e menos servidas das necessidades básicas a que todo ser humano deveria ter direito.

A solução encontrada para sanar, pelo menos em parte, esse problema, foi assumir a visão de surdez como deficiência e tentar curá-la, com o auxílio da tecnologia. Como uma forma unilateral de enxergar o desenvolvimento humano e de proporcionar a elas uma convivência apropriada na sociedade, em que o parâmetro amplamente aceito e valorizado é ser comunicativo, branco, esteticamente saudável e financeiramente abastado, tentou-se prover os surdos da linguagem oral (Skliar, 1997; Dorziat, 1999). Não se pensou no ser humano, na sua falta de opção em ouvir ou não ouvir e na possibilidade encontrada por ele de superação de uma vida cognitiva, emocional e social limitada, através da criação de uma cultura visual rica e inteligente.

Na verdade, padrões de estética, comportamento e opiniões sociais acabam infiltrando-se na forma de ser, pensar e agir das pessoas. Não é comum a prática de procurar ver os fatos sob ângulos diversos, de tentar colocar-se no lugar do outro. Mesmo quando há consciência de que é preciso relativizar os acontecimentos, vê-los sob diferentes óticas, parece que os referenciais de cada um terminam falando mais alto, porque são eles que podem dar sentido às suas reflexões.

Isso é exacerbado pela própria dinâmica social capitalista-neoliberal, que reforça os valores individuais, a competitividade, sonegando o respeito ao direito dos “outros”. No caso da surdez, acredito firmemente que é possível encontrar canais de transformação dessa realidade a partir da escola, um dos poucos locais de encontro dessa população, na busca de resgate das formas particulares de apreensão e de transmissão de idéias dos indivíduos surdos, da construção de sua subjetividade.

Para isso, é preciso considerar que as diferenças dos surdos são social e historicamente construídas. E, é fato, essas construções têm as marcas da intolerância, da marginalização e do desrespeito aos direitos humanos. Os parâmetros do que acontece com a população, ou com algumas categorias bem definidas delas, são sempre lembrados, transformando diferença em anomalia, e, configurando essa anomalia na causa de todos os males sofridos. É necessário estar mais atento às convicções dos ouvintes participantes do ensino de surdos e, sobretudo, às dos próprios surdos. As interações professor (ouvinte)-aluno (surdo) e, conseqüentemente, a aprendizagem dos alunos vão depender basicamente das concepções que os diversos segmentos envolvidos têm sobre a surdez e seus determinantes. Refletir sobre isso pode ser um bom início para as mudanças necessárias nas escolas de surdos, visando aos interesses e às aspirações dessa população, para que ela passe a ser efetivamente de surdos e para surdos.

Baseada nessa idéia, desenvolvi um estudo, buscando responder as seguintes questões:

  • Considerando que é preciso abrir espaço para que os surdos falem por si próprios, buscando identificar seus reais problemas, através de suas próprias formas de expressão, como os surdos, enquanto alunos e/ou instrutores, representavam a si mesmos e aos outros surdos?
  • Considerando que os problemas decorrentes da surdez não são um fato individual centrado no próprio surdo, mas são produto das concepções presentes na sociedade ouvinte, como as professoras de surdos (ouvintes) viam a pessoa surda?
  • Considerando que o ensino não se constitui de simples técnicas, mas envolve atitudes mais amplas, que estão também vinculadas ao meio familiar, como esse segmento (família) se colocava frente às questões expostas anteriormente?

Entendendo que as bases educacionais são construídas, em grande parte, sobre nossas concepções acerca de quem é nosso educando, o objetivo deste estudo foi analisar as concepções sobre surdez dos segmentos mais diretamente envolvidos na comunidade de uma escola pública para surdos (surdos – alunos e/ou instrutores, professoras e familiares).

2. Fundamentação Teórica

O ensino não é isento de influências e de manipulações, que atendam a determinados grupos sociais. Giroux (1986) destaca em seus trabalhos o debate sobre a necessidade de resistência frente aos valores dominantes no âmbito escolar e sobre a possibilidade aí existente de formulação e vivência de novos valores.

No ensino de surdos, esses saberes foram, historicamente, representados pelo ouvintismo (Skliar, 1997), que se seu por meio do transplante linear dos modos de elaboração e produção dos conhecimentos dos ouvintes para os surdos. Ao lado deles, no entanto, continuaram (e continuam) sendo produzidos outros conhecimentos que põem em xeque os efeitos do poder, ligados à organização institucional que os sustenta.

A escola não pode continuar negando a existência desses tipos de conhecimentos diferentes, pois, dessa forma, corre o risco de estar consolidando sociedades cada vez mais desiguais, perpetuando, assim, o processo de alienação. É preciso que o conhecimento seja tomado como uma síntese entre saberes gerais, teorias científicas e saberes locais, inter-relacionados, em que cultura culta não é confundida com cultura dominante e a lógica crescente da pedagogização, dos esquemas classificatórios, seja questionada (Varela, 1994). Esse questionamento deve se estender também a posturas extremas que colocam de um lado as pedagogias tradicionais, o seu desprezo pela cultura não acadêmica, a sua rejeição à diversidade, e, de outro, as pedagogias renovadoras, com uma cultura escolar excessivamente vinculada ao criativo, ao concreto e ao prático. A síntese pretendida, na verdade, subentende a necessidade de contextualização, do estabelecimento de conexões entre o particular e o geral, entre o individual e o coletivo.

O particular diz respeito aos modos particulares de expressão de cada grupo que, por possuir formas próprias de apreensão e de expressão de mundo, tem necessidades específicas. Por isso, é imprescindível, no caso dos surdos, estar atento ao que eles têm a dizer, às suas formas de organização, de racionalização, fazendo sobressair suas idéias, suas aspirações. O conhecimento dos seus modos de organização pode indicar procedimentos adequados que contribuam para uma estruturação curricular culturalmente referenciada.

O geral significa entender a diferença como contradição social, diferença como relação, em vez de diferença como algo livre-flutuante e deslocada. O refazer social e a reinvenção do eu devem ser entendidos como dialeticamente sincrônicos, não como algo sem relação ou apenas marginalmente conectados. São processos que se formam e se informam mutuamente.

De acordo com Pimenta (1993), o eixo central articulador do trabalho escolar é a tradução das habilidades, das atividades e dos conhecimentos necessários à formação do novo cidadão. Para isso, os professores precisam estar atentos ao que fazem, por que fazem, como fazem etc.

Essas diretrizes apontadas por Pimenta, devem ter como eixo central o para quem fazer. Tal critério norteará o começo, o meio e o fim do trabalho escolar. Fundamentados na visão de quem é a população-alvo da escola, é possível promover a aquisição de significados socialmente construídos, através de uma relação pessoal e intransferível com os conhecimentos e imprimir um verdadeiro sentido ao fazer pedagógico.

A prática escolar tem sido, em geral, desenvolvida a partir da idéia de um aluno hipotético. Generalizações tendem a ser corriqueiras. Elas acontecem também em relação aos alunos surdos, prejudicando uma visão mais realista, em que cada pessoa, independente de ser surda, apresenta determinadas características de personalidade, produto de seu trajeto histórico-econômico-social. A diversidade própria em qualquer grupo, muitas vezes, não é considerada. O grupo de surdos, bem como o grupo de ouvintes, apresenta características internas de raça, de classe, de gênero, de religião etc., que podem vir a provocar conflitos, inseguranças, divergências e a influir na personalidade do indivíduo como um todo. Através de tentativas de apreensão das contradições internas do grupo, seria possível entendê-lo melhor. Na variedade de experiências surgem diferentes perspectivas de valores e de poderes.

A constante produção de estereótipos, pela sociedade, tem levado a uma variedade de insatisfeitos em busca de se adaptarem, em contradição, muitas vezes, com suas peculiaridades. Nesse contexto, nenhuma identidade se constrói de forma definitiva, fixa, imutável (Hall, 1997). As pequenas diferenças fazem o indivíduo, na acepção do termo.

Nem sempre as representações das pessoas estão pautadas em indivíduos ou grupos hipotéticos, homogêneos. Elas traduzem as diferenças, de forma real, verdadeira, em que estão em jogo os conflitos vividos entre o estabelecimento de padrões sociais, gerando disparidades entre o que se é com o que se gostaria de ser.

3. O Caminho da Pesquisa: considerações metodológicas

Os dados deste estudo foram obtidos a partir de roteiros de entrevistas semi-estruturadas, contemplando um mesmo eixo norteador. Por entender que as concepções estão relacionadas com as condições objetivas de vida das pessoas, abri espaço para que os entrevistados discorressem sobre suas origens sócio-econômico-culturais (Dados Pessoais).

Nas questões que tratavam sobre as Concepções de surdez, elaborei uma pergunta geral (como vê a pessoa surda?) e outras específicas (como vê seu aluno/filho/si mesmo surdo?), de modo a perceber como os entrevistados representavam a pessoa surda, que ideologia (conceitos, valores) presente na sociedade, como senso comum ou decorrente de um saber mais elaborado, era expressa, e até que ponto essa representação se modificava (ou não) quando colocavam suas experiências pessoais cotidianas como indivíduo real, concreto.

A elaboração do roteiro teve como preocupação obter as mesmas informações (concepções sobre surdez) dos entrevistados, as quais estavam vinculadas ao problema de pesquisa formulado. Não visava saber qual era a relação da representação dos informantes com os fatos reais ou se o que relatavam estava de acordo com suas ações, mas tentar apreender como eles traduziam isso no discurso, como demonstravam intenções e elaboravam idéias.

Ao optar por esse tipo de instrumento, estava eu cônscia de suas limitações, em termos de que, como afirma Queiroz (1992), ele mostra apenas um aspecto parcial da realidade, pode sofrer influências do subjetivismo ou objetivismo do informante e representa uma posição dominante do pesquisador. Apesar disso, a entrevista foi a forma mais apropriada de registro, porque o que se buscava (as concepções) ainda não se cristalizara em documentação escrita.

Com o instrumento de pesquisa em mãos, passei à elaboração de critérios para a seleção dos entrevistados. Já tinha estipulado, a priori, que seriam entrevistados professores, familiares e surdos, por considerar que a omissão de um desses grupos restringiria o estudo, na medida em que deixaria de contemplar informações imprescindíveis ao desenvolvimento ensino-aprendizagem.

Selecionei, assim, todos os professores da escola, os surdos que tinham uma participação mais decisiva nos rumos da escola, ou seja, instrutores e alunos surdos mais antigos, e familiares que se dispusessem a participar da pesquisa.

Assim, as entrevistas foram gravadas em áudio, com quinze professoras e com dezenove familiares ouvintes (a maioria mães), e em vídeo, com doze surdos (instrutores e/ou alunos) e uma mãe surda, para que fosse possível registrar os depoimentos de forma permanente e apropriada. As questões foram formuladas de modo bastante flexível. Dependendo da necessidade do participante envolvido, eram realizados aprofundamentos, reestruturações e explicações. Houve necessidade de apenas um encontro com cada entrevistado. A entrevista com os surdos foi realizada por intermédio de uma intérprete em língua de sinais.

A transcrição das entrevistas dos surdos, inclusive de uma mãe surda, foi realizada na estrutura da língua portuguesa, de acordo com a intermediação da intérprete, colocando a fala dos entrevistados na 1a pessoa do singular.

A partir daí, trilhei os seguintes passos:

  1. A Ordenação dos dados, recolhidos das entrevistas, se deu através da transcrição das entrevistas na íntegra e com o agrupamento de questões. O agrupamento das questões por tema foi fundamental, porque este aparente “retalhamento” dos relatos, como coloca Demartini (1992), ao invés de mutilá-los e descaracterizá-los, permitiu, ao contrário, manter presentes todos os elementos apresentados por cada informante, sempre considerando e realizando as possíveis relações com o todo da entrevista de cada um;
  2. A Classificação dos dados, a partir do entrelaçamento das questões teoricamente elaboradas e do quadro empírico delineado pelas informações obtidas foi possível a partir da leitura exaustiva e repetida dos textos, isto é, de uma “leitura flutuante”, no dizer de Minayo (1993:235). Essa leitura permitiu apreender as idéias centrais dos relatos e as percepções dos entrevistados sobre o tema em foco. Num momento posterior dessa classificação, realizei a constituição dos vários corpus de informantes (surdos, professoras e familiares), já que cada um desses grupos forneceu informações e representações específicas, que constituíam conjuntos diferenciados. Esse foi o momento da “leitura transversal” (Minayo, 1993:235) de cada corpo. Cada entrevista foi recortada em termos de unidade de registro, referenciados por tópicos de informação;
  3. A Análise de dados sobre as concepções dos entrevistados, especificamente, foi realizada, levando em conta os estudos desenvolvidos por Leontiev (1978a e 1978b) sobre as significações lingüísticas presentes no discurso verbal. Para Leontiev (1978b), essas representações são produzidas e apropriadas pela e na coletividade. Para desenvolver essa idéia, ele utiliza duas categorias básicas: o significado e o sentido. O significado é produzido pelo grupo social e o sentido é a relação desses significados com a experiência individual. Segundo Leontiev (1978a), ao viver em sociedade, o homem apropria-se dos significados prontos na sociedade, e o mundo exterior se torna interior, adquirindo novo sentido na sua atividade objetiva individual. Por isso, a análise de qualquer discurso não pode pautar-se apenas nas condições subjetivas (no caso das professoras: formação acadêmica, experiência etc.) de vida dos indivíduos, mas deve considerar também as condições objetivas (no caso das professoras: salário, recursos materiais de trabalho etc.) nas quais as práticas se corporificaram (Basso, 1994). Esse referencial possibilitou uma vinculação estratégica com a realidade, em termos de não tomar os depoimentos como uma busca da “verdade”, mas de uma procura de entendimento, principalmente nos pontos cegos e contraditórios de cada representação.

4. Resultados e Discussão: diferentes olhares sobre a surdez

Os depoimentos dos três segmentos da comunidade escolar (surdos, familiares e professoras) refletiram concepções próprias de grupos que, por possuírem perfil diferenciado, apropriaram-se, ao longo de sua vida, de conceitos e valores variados. Isso reafirma a colocação de Weber (1996), quando diz que o estudo de concepções de qualquer grupo não pode ser tomado de forma isolada. As condições político-econômicas e ideológicas devem ser consideradas, porque elas atuam sobre os indivíduos, influenciando maneiras de ser e pensar.

4.1 Depoimento dos professores: da deficiência à normalidade

Dos três grupos, o dos professores apresentou uma história de vida acadêmica mais consistente. Embora a maioria de seus componentes tivesse origem no estrato baixo da escala de prestígio social, com pais que tinham nível de escolaridade referente ao ensino fundamental, os entrevistados, na quase totalidade, atingiram formação superior na sua área de atuação ou em áreas afins. Isso fazia com que seus discursos fluíssem com mais objetividade e maior concatenação de idéias. Além da formação superior, a experiência com alunos surdos proporcionou-lhes elementos para colocarem sua opinião no nível teórico e no prático. Por esta razão, estavam mais suscetíveis a assimilarem o discurso do ‘politicamente correto’ ou ‘mais aceito socialmente e/ou teoricamente’.

A maioria dos depoimentos apresentou uma tentativa de reverter a visão de deficiente, ‘deficiente auditivo’, pertencente ao senso comum e que foi veiculada por anos a fio. A busca de repudiarem essa visão levou os professores a desconsiderarem o fenômeno da surdez enquanto dado importante, para situar a pessoa historicamente constituída, claro em expressões como “tirando a limitação auditiva”, “tirando o problema de comunicação”. Às vezes, no afã de ressaltarem as potencialidades dos surdos, houve inclinação em colocar o outro extremo da questão. Saviani (1984), analisando momentos de transição na educação brasileira, constatou uma certa freqüência em haver, nesses momentos de mudança, propensão a se passar de uma posição extrema para outra, o que denominou de ‘curvatura da vara’. É um caso típico, em que o surdo de deficiente passa a ser tomado como normal, como mostram os depoimentos de alguns professores, a seguir:

Vejo-o como uma pessoa normal, apenas surda, com todas as potencialidades e limitações de uma pessoa ouvinte;
Como uma pessoa normal, mas que precisa de mais apoio. Tem todas as qualidades (como inteligência) de uma pessoa normal, só que precisa ser dada oportunidade a ele;
Como uma pessoa normal como qualquer outra, só que com uma dificuldade de comunicação e uma dificuldade criada pelo mundo. Somos nós, ouvintes, que não damos acesso para eles. Apesar disso, eles possuem o mesmo potencial que todo mundo tem;
Antes eu via o surdo como um deficiente, deficiente auditivo. Hoje, não, vejo mais como uma pessoa normal. É diferente só porque tem o problema da surdez;
Para mim, hoje, o surdo é uma pessoa como eu, que fala uma outra língua que não a minha. Por conta desse bloqueio biológico, ele tem dificuldade de ter acesso a minha língua. Em termos gerais, se lhes forem oferecidas as mesmas condições que são dadas a nós ouvintes, eles se desenvolveriam tal e qual;
Tirando a limitação de não ouvir, ela é uma pessoa normal;
É uma pessoa normal, só que com um pouco de dificuldade de se comunicar, porque nem todos sabem se comunicar com eles. Existe uma comunicação materna, mas é um diálogo muito resumido;
Como a gente. A única diferença é a maneira de se comunicar. Mas a sua capacidade de raciocínio, de realizar atividades, no emocional, é igual. Sua maneira explosiva é igual a nossa quando a gente não aceita alguma coisa. Seu sentimento de dor também. É tudo igual.

Essa nova postura pode levar a uma distorção nos procedimentos educacionais, tendendo a uma ouvintização (Skliar, 1997) no ensino de surdos. Além dos prejuízos que isso pode causar, por não levar em conta as peculiaridades dessa população, ela serve como argumento para algumas posições que o currículo escolar pode ser o mesmo tanto para ouvintes quanto para surdos.

Na medida em que a diferença é lembrada, o processo ensino-aprendizagem deixa de ser considerado um grande manto que abriga a todos. Torna-se necessário, pois, adequá-lo às peculiaridades lingüísticas, culturais e sociais de cada população, para que o conhecimento adquira sentido e possa contribuir para o desenvolvimento e para as elaborações dos alunos em níveis mais complexos.

O fato de o surdo ser usuário de uma língua com características viso-gestuais implica desenvolver uma racionalidade diferente, ou seja, como afirma Lopes (1997:24)

não se trata de preconizar a priori o consenso, buscar a homogeneidade dos saberes e dos sujeitos, mas respeitar as diferenças, administrar conflitos e trabalhar para superar desigualdades sociais.

Isso quer dizer que não é a tolerância das formas de expressão dos surdos (língua de sinais) nas escolas que vai resolver toda a problemática do ensino para essas pessoas, mas o entendimento dessa língua como via simbólica através da qual pode-se desenvolver um ensino adequado a essa população. Um ensino que não seja mera reprodução do que acontece nas escolas regulares (mesmo porque se tem observado um distanciamento da realidade e aspirações também dos alunos ouvintes de escolas públicas), mas que busque preencher os vazios ideológicos, epistemológicos e curriculares de que trata Skliar (1997), refletindo-se nos próprios surdos. Em surdos possuidores de múltiplas identidades, com variadas características raciais, etárias, de classe, de gênero, de crença etc.

A clareza sobre essas questões em torno da surdez pode influenciar significativamente os encaminhamentos do trabalho pedagógico do professor. A prática, ou como desenvolver as atividades em sala de aula, tornar-se-á vazia e inócua, na medida em que não se tiver pontos de partida e pontos de chegada. A concepção de surdez pode ser considerada um ponto de partida relevante, uma vez que as práticas pedagógicas devem ser inseridas em cada contexto, em cada forma de elaborar e resignificar esse contexto.

4.2 Depoimentos dos surdos: o ouvinte como parâmetro

Quanto à realidade dos surdos, informantes desta pesquisa, essa era a de pessoas adultas, pertencentes à escala baixa de prestígio social e com pouca escolaridade (apesar de muitos deles terem passado suas vidas nos bancos escolares). Sua trajetória de vida era de pessoas que foram submetidas aos mais variados tipos de tratamento, desde o descaso até a imposição de formas de comunicação e comportamento alheios às suas características. Provavelmente por isso, as suas concepções de surdez tenham sido marcadas pela comparação com os ouvintes. Embora, algumas vezes, os surdos tenham se colocado “no mesmo nível do ouvinte”, ficou evidente a tendência a menos valia dos surdos frente aos ouvintes. Nos seus depoimentos apareceu, de um lado, os surdos e todas as suas deficiências e, de outro, os ouvintes, que só pelo fato de assim o serem, representarem coisas boas, refletindo toda uma trajetória de vida baseada nas vantagens de se falar oralmente. Isso foi colocado pelos surdos da seguinte forma:

Eu nasci surdo, cresci... Eu não penso muito nisso, não tenho vergonha ou fico preocupado, não. Sei que ser ouvinte é melhor, porque tem como aprender mais, tem pessoas, comunidades, fazem brincadeiras, vão aos bares. Os surdos não conversam muita coisa interessante. Poucos são os surdos realmente maduros, com quem eu possa ter uma conversa. Eles, geralmente, só sabem indicar as coisas;
O surdo não pode ver TV, não pode usar telefone, é parado. Não tem muitas respostas, muitas explicações. São só os corpos... Ele vê as coisas e não sabe o que é. O surdo é diferente;
A vida do surdo é ruim e difícil, porque para ler, entender o que está escrito, precisa falar. Tem a língua de sinais mas precisa falar, para entender o que está escrito. Todos na minha casa são surdos: eu, minha esposa e minha filha, então ficamos só os três. Eu gostaria que minha filha fizesse terapia para aprender a falar. Aqui não tem, só em Recife. Eu acredito que isso ia ajudar na leitura. Só com as mãos é difícil.

Quando, em poucos momentos, os surdos se desvencilharam do paradigma ouvinte, surgiu a língua de sinais como divisor de águas, para qualificá-los. Existiam, segundo muitos deles, os surdos de “cabeça fechada”, “que não queriam saber de estudo” e os surdos “inteligentes”, “bons”. Aqueles eram os que não sabiam ou passaram muito tempo de sua vida sem saber a língua de sinais; estes eram os que tinham habilidade na língua. Foram selecionados alguns trechos que mostram essa idéia:

É difícil se não tem língua de sinais. Os surdos que são mais inteligentes devem ensinar língua de sinais às crianças para que elas sejam iguais a eles. O surdo adulto não pode se trocar com as crianças, elas (crianças) não sabem o que estão fazendo. Eles têm que aprender o que é ser líder, ter explicações sobre tudo, para que eles possam se igualar. Senão, como vai ser? O adulto tem que servir de modelo para as crianças. Os surdos que têm língua de sinais têm que ensinar, explicar para os que não têm. Se eles não sabem língua de sinais como vão entender as coisas? Como vão gostar da escola? Se sabem língua de sinais, podem trocar idéias;
Os surdos que não têm língua de sinais não são inteligentes, não sabem nada. Não tem nada na cabeça.

Ao reduzir-se a visão sobre a pessoa surda à língua de sinais, parece estar-se diante de um grupo homogêneo que conseguiu uma identidade social definida. Parece simples, mas não o é. As condições sociais exigem do indivíduo, surdo ou não, o assumir diferentes papéis, diferentes identidades, de acordo com a atribuição conferida ao contexto ou ao próprio indivíduo (posição profissional, de liderança, de pai/mãe etc.). As tentativas fracassadas de transformar os surdos, de fazê-los ‘normais’ (falantes), acarretou em prejuízos incomensuráveis para o delineamento de sua personalidade e para uma maior flexibilidade deles em relação à vida.

Na verdade, foi-lhe fechada a porta de entrada, que dá acesso ao mundo dos significados e pode dar sentido à sua vida: a linguagem. O atraso de desenvolvimento observado em muitos surdos foi explicado por alguns estudos cognitivistas, que consideravam que a base do pensamento construía-se independentemente da linguagem, ou seja, primeiro a linguagem se organizaria individualmente e, depois de internalizada, passaria a ser socializada, servindo como meio de comunicação entre os indivíduos. Desse modo, aos surdos seria suficiente prover de meios de comunicação eficazes, já que o pensamento estaria preservado. O atraso seria decorrente, então, das poucas trocas comunicativas e não da falta de linguagem.

Vygotski (1991) apresenta direção oposta para explicar o desenvolvimento da linguagem humana (do social para o individual) e estabelece relações de interdependência entre os processos de desenvolvimento do pensamento e da linguagem. A comunicação é considerada, sobretudo, como uma primeira instância social, importante para o estabelecimento das trocas que, internalizadas, participam da organização mental. Segundo ele, pensamento e linguagem se encontram no mesmo patamar de importância. Essa concepção, juntamente com a divulgação dos estudos lingüísticos, mostrando que a linguagem gestual dos surdos constitui-se uma língua de fato, permitiu outro enfoque ao estudo da linguagem dos surdos: a valorização da língua de sinais na sua forma genuína, como primeira língua. Sem esse critério (língua de sinais), é extremamente difícil pensar-se em um desenvolvimento cognitivo dos surdos, que os coloque em pé de igualdade com os demais integrantes da sociedade.

4.3 Depoimentos dos familiares: portador de deficiência auditiva

Como disse, parcela representativa dos familiares entrevistados (mães na sua maioria) era oriunda de uma população desprovida de bens econômicos e com pouco acesso ao saber escolar. A maioria pertencia a estratos baixos da escala de prestígio social e seu nível de escolaridade encontrava-se entre os que apenas eram alfabetizados e os que possuíam as séries iniciais do ensino fundamental. Desse grupo transpareceram opiniões que transitavam entre o sentimento de dor por ter o filho surdo, mesmo confessando que o via como “normal” ou “quase normal” e o sentimento de revolta contra a sociedade, por discriminá-lo. Afirmações contraditórias foram colocadas, como a que dizia que o filho só não era totalmente normal por causa da deficiência, como é possível notar nos trechos a seguir:

Como se fosse uma pessoa normal, só que tem o problema da comunicação;
Eu acho eles normal. Mas tem hora que eu acho eles estranhos, a gente quer controlar e não pode;
Eu não sei conversar com elas (as pessoas surdas). Ele não é normal como a gente, mas é quase;
Eu acho que são quase normais. Por outro lado, tem essa deficiência... São quase normais.

Há uma sutil diferença entre essa normalidade evocada pelas mães e a considerada pelas professoras. Neste caso, era mais fácil para as mães acreditarem que seus filhos ‘portavam’ um problema, que sendo sanado ou deixado de lado, eles passariam a ser como as outras pessoas ouvintes. Parece que as participantes se relacionavam com a surdez, como uma condição indesejada e preferencialmente esquecida. Poucas delas, nas entrevistas, se reportaram à língua de sinais como a uma língua que lhes dissesse algo. Pelo contrário, era atribuída sempre ao surdo a incapacidade de falar. É como se a aceitação da língua fosse um passo importante, para cessar com todas as esperanças de uma vida saudável.

Segundo Bouvet (1990), os pais passam por um processo difícil, lento e doloroso de convivência com a surdez. Mesmo quando parece existir uma aceitação, os familiares não estão isentos de inúmeras recaídas (Bouvet, 1987). A tristeza e o desgosto, como falou uma das mães, por ter um filho surdo é um sentimento recorrente, podendo ser desencadeado por qualquer atitude estranha. De acordo com Bouvet (1990), desde a suspeita da surdez, os pais já mudam a forma de encarar os filhos. Deixam de considerá-lo um falante em potencial para vê-lo na condição penosa de seu silêncio. Essa situação em que a família se encontra frente ao fato de ter um filho diferente deve ser entendida. Por isso, é essencial que haja um trabalho efetivo junto a ela no sentido de auxiliá-la neste processo contraditório de negação/aceitação do filho e na tomada de consciência sobre a importância de manter com ele uma comunicação fluente em língua de sinais, com todas as informações e explicações possíveis, já que as barreiras sociais existem e são enormes. Infelizmente, é uma parcela mínima de pais ouvintes com filhos surdos que é fluente nessa língua, o que contribui para um isolamento ainda maior dessas pessoas.

5. Considerações Finais

Os depoimentos mostraram que o grande esforço em evocar a normalidade dos surdos, na verdade, demonstrou concepções equivocadas de surdez. A pessoa surda foi tomada de forma simplista, pelos três segmentos entrevistados, denotando, afinal, uma visão que se aproxima mais de tendências que negam a surdez, enquanto constituição histórica de uma comunidade lingüística.

A tentativa de se distanciarem da noção de deficiência colocou, por outro lado, os participantes numa posição de negação da diferença. Mesmo ressaltando a importância da língua de sinais, não pareceu que essa fosse tomada como um elemento de fundamental importância para a constituição de um grupo, mas como um recurso comunicativo que em nada diferenciava substancialmente essas pessoas.

Por isso, é necessário que em cada situação, em cada realidade, se reflita profundamente sobre quem é a pessoa surda. A partir do compartilhamento de suas dúvidas, de suas necessidades, e de poder de decisão sobre seus destinos, provavelmente, perceberemos com maior clareza caminhos mais adequados de encaminhar e estruturar uma escola que tenha como meta a democracia social.

Para isso, é necessário, antes de tudo, que os surdos se coloquem, se percebam. Os resultados de suas falas mostraram que essa percepção reflete as contradições, as desigualdades, as imposições colocadas pela sociedade. Embora afirmem a importância da língua de sinais como fator de constituição de sua identidade, os surdos entrevistados carregam as marcas da discriminação, vendo-se pela ausência, porque não encontram nenhuma estrutura na sociedade que os faça afirmar suas possibilidades, sua diferença.
As poucas trocas de informações entre surdos e surdos e entre surdos e ouvintes têm sido fator limitador e embotador para a formação de sua identidade, ou identidades, e têm dificultado o processo de construção de uma auto-imagem positiva.

Isso é conseqüência do tratamento recebido ao longo de sua vida, em que tem sido alvo do sentimento de piedade, em vista da suposta inferioridade em relação às outras pessoas. Essa visão assistencialista foi provocada, eventualmente, por uma formação castradora e uniformizadora, que contribuiu para limitar o crescimento e a cidadania desses indivíduos, enquanto estudioso, profissionais, artistas ou o que melhor lhes aprouvesse.

Para ter chances de realizar suas opções, o surdo precisa ser respeitado, ser reconhecido em sua diferença e estabelecer parcerias, na busca de quebrar as barreiras excludentes que existem na sociedade e reivindicar novas estruturas para que ele possa desenvolver-se e conviver plenamente.

Diante do exposto, é preciso dar-se início a um processo de reflexão profunda sobre em que bases estão sendo sedimentadas as ações político-pedagógicas em torno dos surdos. Para isso, é necessário, antes de tudo, assumir uma concepção de surdez não pela ausência, mas visando a afirmação de suas possibilidades, na diferença, e buscar ter clareza sobre a importância da linguagem, inserida numa visão histórico-social mais abrangente que delimita concepções de indivíduo e sociedade.

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