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Dulcilene Saraiva Reis
Dulcilene Saraiva Reis
Pedagoga (Professora)
Professores de alunos surdos: da formação inicial à sala de aula
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Publicado em 2015
6º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação, Canoas/RS
Dulcilene Saraiva Reis
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Resumo

A educação de surdos sempre foi orientada pela visão patológica de surdez, preocupando-se mais em criar mecanismos e estratégias para “consertar” a surdez, na tentativa de fazer o surdo falar e ouvir, do que com o processo educativo. Foram vários anos tentando corrigir a surdez como se esta fosse uma “doença”, por meio de um discurso de normalização e medicalização, no qual o surdo era visto como deficiente, incapaz, como alguém que possuía um defeito e que precisava ser consertado. Entretanto, existe um contraponto, um novo olhar, uma nova forma de explicar a surdez, esta mais recente. Esta perspectiva leva em consideração a diferença, numa narrativa antropológica e culturalista. O surdo é visto como sujeito cultural, com característica própria, não se considerando deficiente, apenas diferente. O estudo aqui apresentado faz uma reflexão sobre a formação docente e a prática pedagógica dos professores que atuam em Escolas Inclusivas, do 6º ao 9º do Ensino Fundamental, com alunos Surdos incluídos em salas de aula regulares, no município de Porto Velho/RO. Tem abordagem qualitativa, de cunho etnográfico e do tipo descritiva, sendo realizada no período de junho/2011 a junho de 2013. Participaram deste estudo professores, alunos surdos e intérpretes. Para a coleta de dados foram utilizados questionários padronizados, questionários abertos e entrevistas semiestruturadas. A fundamentação teórica teve como aporte os estudos sobre a Formação Docente, Multiculturalismo Crítico, Estudos Culturais e Estudos Surdos, com aportes em Mendes (2006), Tardif (2002), Feltrin (2004), Canen (2005), Dorziat (2011), Fernandes (2011), Hall (2000), McLaren (2003), Moreira (2010), Perlin (2010), Sá (2006) e Skliar (2010). Os resultados demonstraram que os professores não tem conhecimento, do ponto de vista sociocultural, das especificidades pertinentes à surdez e a educação de surdos. Apontou a precariedade da formação inicial e continuada no que diz respeito às questões como diferença, cultura e identidade, não preparando o professor para atender o aluno surdo. Desta forma, existe a necessidade de fortalecer a formação dos professores através de um currículo de formação que contemple os Estudos Culturais e os Estudos surdos, evidenciando a cultura surda e todos os artefatos a ela associados. A escola inclusiva precisa finalmente se preparar para ensinar seus alunos surdos, pois eles já estão lá, na expectativa de serem atendidos, pelo menos, em iguais condições que os alunos ouvintes.

Introdução

Em 2002 foi aprovada a Lei nº 10.436/2002 que reconhece a Libras – Língua de Sinais Brasileira como meio legal de comunicação e expressão, determinando que sejam garantidas formas institucionalizadas de apoiar o seu uso e difusão, bem como a inclusão da disciplina Libras como parte integrante do currículo nos cursos de formação de professores e de Fonoaudiologia. O Decreto nº 5.626/2005, que regulamenta a Lei nº 10.436/2002, visando o acesso à escola dos alunos surdos, dispõe sobre a inclusão da Libras como disciplina curricular, a formação e a certificação de professor, instrutor e tradutor/intérprete de Libras, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua para alunos surdos e a organização da educação bilíngue no ensino regular.

Mesmo com o advento da legislação, ainda se vê pessoas atribuindo aos surdos uma condição de incapacidade intelectual, não reconhecendo sua cultura própria e sua língua natural, a Libras. E qual seria a visão que os professores têm dos alunos surdos? Quais seriam as perspectivas de educação para estes alunos? Como o ensino acontece em sala de aula com aluno surdo incluído? Estariam os professores preparados para a inclusão dos alunos surdos? Estas inquietações foram o fio condutor deste estudo que foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Rondônia, que resultou em uma Dissertação, que foi desenvolvida no período de 2011 a 2013, investigando dez professores do 6º ao 9º Ano do Ensino Fundamental, dezessete surdos, dez Tradutores/Intérpretes de Libras e dois representantes das Secretarias Estadual e Municipal de Educação. Serão apresentados neste trabalho apenas as análises e discussões feitas dos professores e dos surdos pesquisados.

O objetivo desta pesquisa foi o de discutir a formação do professor que tem em sua sala de aula alunos surdos incluídos, bem como verificar como esta ocorrendo a inclusão destes alunos na percepção de professores e dos próprios surdos, na tentativa de responder a seguinte pergunta: como está sendo formado o professor que atende alunos surdos incluídos em escolas regulares? Desta forma, possibilitar a discussão da formação docente, ou a falta desta, para os professores de alunos com surdos.

Identidade Surda, Currículo e Formação de Professores

Em 2015 o Brasil comemora pela primeira vez o Dia Nacional da Libras. Este dia foi oficializado através da Lei nº 13.055 3, de 22 de dezembro de 2014, que diz, em seu artigo 1º, que “fica instituído o Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS a ser comemorado no dia 24 de abril de cada ano”. E neste mesmo ano comemora-se os 13 anos da Lei da Libras. Apesar de ser uma língua oficial há algum tempo, a sociedade de forma geral ainda vê o surdo como uma pessoa destituída de uma identidade própria, incapaz de adquirir autonomia, não considerando sua peculiaridade linguística. Este estereótipo foi construído ao longo de anos e anos, período em que a surdez era explicada somente pelo viés da medicina.

Na história da Educação de Surdos a tentativa era de transformar os surdos em pessoas “normais”. Ouvir é considerado “normal”, é o padrão, é a norma. Se a pessoa não ouvia, então ela não era “normal”. A premissa era essa. Qualquer cultura que era diferente da cultura hegemônica sempre era tida como inferior. Falar de cultura surda implica falar em diferença, mas para autores surdos como Perlin (2010), diferença não é deficiência.

Reconhecer que existem pessoas diferentes é um passo importante para a inclusão de pessoas de qualquer cultura. Para McLaren (2003), o multiculturalismo pode favorecer uma mudança nas relações onde questões como identidade e diferenças de classe, gênero, etnia entre outras, poderão ser discutidas. O multiculturalismo, enquanto currículo na formação dos professores, ainda é um território pouco explorado e a questão cultural é intrínseca à educação dos surdos. Mas, será que questões como cultura e identidade estão inseridas nos currículos de formação de professores?

Antes de discutir sobre a formação docente, é pertinente refletir sobre a Educação dos Surdos e sua relação com o currículo. Skliar (2010), em um de seus trabalhos, apresenta o termo “ouvintismo”, sendo esta uma representação dos ouvintes sobre a surdez, ou seja, uma forma de fazer com que os surdos, para se tornarem “normais” e para que sejam aceitos no mundo majoritariamente oralista, sejam iguais aos ouvintes. Para Skliar (2010, p. 17)) existiu uma espécie de colonização ouvintista do currículo na Educação dos Surdos, conforme observa-se:

  • o currículo para deficientes mentais, reproduzindo o estereótipo que define os surdos como deficientes mentais ou, em todo caso, os surdos e os deficientes mentais como semelhantes;
  • o currículo para os ouvintes, multiplicando por dois ou por três o tempo planejado na escola regular, que reflete a fórmula pela qual os surdos são, proporcionalmente, a metade ou a terça parte dos ouvintes;
  • o currículo para deficientes da linguagem, por sua vez, sugere que o problema da surdez não é tanto o de acesso à oralidade, mas, pior ainda, que afeta a faculdade mental dos surdos para a linguagem;

O currículo para o aluno surdo era estigmatizado, como se este não fosse capaz de aprender o mesmo ofício que o ouvinte. Aos surdos eram delegadas funções subalternas, inferiores. O currículo privilegiava o oralismo, deixando-o na condição de “excluído” do direito de ser surdo.

Mesmo com a imposição da Lei da Libras e do Decreto (2002 e 2005), que inclui nos cursos de licenciatura a disciplina Libras, não é suficiente para preparar o professor. Sá (2011, p. 43) faz uma reflexão importante e diz “para que TODOS os professores são obrigados por suas ‘disciplinas obrigatórias’ a aprender ou a conhecer a Língua de Sinais?”. É sabido que a inclusão desta disciplina é apenas um dos diversos artefatos existentes na cultura surda e, por isso, não é suficiente o seu conhecimento superficial e nem dá condições para que o professor atue com segurança em sala de aula.

Desta forma, tanto para os surdos como para os professores, estes espaços conquistados na formação devem ser valorizados, porém, são apenas uma entre tantas outras necessidades que devem ser atendidas para que o ensino aos surdos tenha a qualidade garantida. Então, qual seria o caminho para a formação de professores de surdos? Segundo Sá (2011) um dos caminhos seria o de oportunizar aos professores o conhecimento da cultura surda e todas as suas especificidades:

Percebe-se então, a necessidade de ir além da simples inserção de uma disciplina ou da obrigatoriedade dela nos cursos de formação de professores. É preciso conhecer a identidade linguística e cultural dos surdos, é imprescindível que os currículos de formação de professores contemplem questões como cultura, identidade e diferença.

As vozes dos professores

Feltrin (2007, p. 20) faz uma interessante analogia do professor com um semeador. O semeador, além de lançar as sementes, deve “suar, carpir, limpar, sempre, até o fim, até a colheita”. E o professor? Para colher seus “frutos” deve enfrentar uma série de obstáculos: aluno, escola, sistema, sociedade, a falta de recursos, a desvalorização, a família entre tantas outras. A educação especial tem trazido ao professor algumas preocupações e ouvir as vozes de quem esta na sala de aula se faz necessário.

O grupo de professores 4 participantes da pesquisa foi bem heterogêneo, tanto em idade quanto em relação ao tempo de serviço. Ao serem questionados sobre o que pensam acerca da inclusão, a maioria se mostrou favorável a ela, porém, atribuíram a falta de formação como um, senão, o mais sério problema da inclusão, conforme o relato:

(...) Mesmo sendo apenas uma aluna, não tinha a menor ideia de como me comunicar com ela. Graças à Deus que chegou uma Intérprete e o resultado foi surpreendente. (P4).

Sempre trabalhei com alunos surdos, a vida inteira e é uma experiência maravilhosa. O problema é a dita inclusão. Isso não serve para os alunos surdos. (P5).

(...) Aprendi a ter mais paciência e tive que estudar mais para poder entender como eles aprendem. Não foi fácil, pois não tivemos apoio da escola. (P9).

São várias as vozes dos professores, colocando em evidência aquilo que seria a maior dificuldade enfrentada por eles: a dificuldade com a língua de sinais. Sem comunicação como há aprendizado? De um lado alunos sentados, quase inertes, olhando para o professor, vendo um abrir e fechar de bocas, sem compreender sequer uma palavra. Pior, vários olhares em sua direção, fazendo com que estes alunos se sintam estrangeiros em sua própria sala de aula. De outro lado, um professor preocupado, por vezes envergonhado pelo fato de não saber como se comunicar com seu aluno surdo. Professor este que não sabe como ensinar um aluno que aprende por experiências visuais, pois ele não foi e nem está sendo preparado para lidar com isso. Esta é a educação que os alunos surdos estão sendo expostos. Palavras como “desespero”, “dificuldade”, “complicação” surgem na maioria dos relatos. A figura do intérprete de Libras aparece em vários momentos, demonstrando que a sua presença é, de certa forma, confortável para a maioria dos professores.

A inclusão escolar veio para substituir a escola especial e alguns argumentos que justificaram esta mudança foi a de que a educação especial segregava os alunos, deixando-os à margem da sociedade. Skliar, (2010, p. 11) conceitua “educação especial como um subproduto da educação, cujos componentes ideológicos, políticos, teóricos, etc, no geral, de natureza discriminatória, descontínua e anacrônica, conduzindo a uma prática permanente de exclusão e inclusão”.

As opiniões dos professores participantes da pesquisa foram divergentes. Uns demonstraram compreender sua importância para o desenvolvimento social do aluno, porém, criticaram a forma como esta vem ocorrendo, apontando a falta de formação como uma das maiores dificuldades enfrentada por eles. Outros, favoráveis à inclusão, colocaram como ponto positivo a “socialização dos alunos especiais”.

Vejo a inclusão nas escolas como uma boa ideia para que os alunos ‘especiais’ possam se relacionar com os demais alunos, mas penso que os alunos ‘especiais’ deveriam ter uma sala própria com professores e materiais adequados às suas necessidades. (P1).

Vejo de forma positiva, uma vez que este aluno terá acesso às mesmas condições dadas ao aluno considerado normal (...) trará progresso enquanto ser humano inserido numa sociedade ainda não voltada para este tipo de indivíduo, o que é lamentável. (P2).

Observando o processo de socialização com os demais, sou contra. A ideia é interessante, porém percebo que a escola ainda não está preparada para esta inclusão. (P4).

Interessante observar nos relatos a relevância que é dada à interação entre os alunos “especiais” e os “normais”, sendo a socialização apontada como fator responsável pelo “progresso” do aluno “especial”. Esta visão de que, com a inclusão, os alunos “aprendem” a conviver com a diferença não é de todo verdadeira, afinal, a socialização não acontece somente nos espaços escolares e pessoas diferentes estão em todos os lugares, além dos muros da escola. Em outra fala, a inclusão é vista como uma forma de “não excluir o ser humano”.

Observando por este lado, tem-se a impressão de que a inclusão veio para salvar os excluídos, colocá-los dentro de espaços inclusivos bastando, para isso, matriculá-los em escolas regulares que, desta forma, já estariam incluídos. Bem, na verdade, não é tão simples assim. A inclusão pressupõe atendimento igual para todos. Igual no sentido de ser oferecida uma educação com a mesma qualidade a todos os alunos, mesmo que estes sejam diferentes.

Os argumentos de que a inclusão é boa, mas a escola ainda não está preparada, apesar de já se tornar jargão entre os professores, é uma afirmação verdadeira. A escola, nas palavras de Lopes (2010, p. 105), “está preparada para uniformizar os sujeitos que devem ser ‘livres’, educados e servis, e que, de certa forma, vem colaborando para acentuar as diferenças”. Percebe-se que nos espaços escolares existe uma tentativa de tornar os diferentes em pessoas “normais”, balizando os alunos.

Mesmo com a inclusão e, talvez, ela mesma contribua para esta ideia, é nítida na escola a distinção entre alunos “normais” e alunos “anormais/deficientes”. Percebe-se que a preocupação não é com o aluno, mas em distinguir se o aluno é normal ou deficiente. Então, se o aluno for “normal” a escola estará preparada para ele? E quando a escola irá se preparar para o aluno diferente?

Eu acho que a inclusão é bonita somente no papel, é uma utopia acreditar que um dia ela vai dar certo. Nem os alunos ditos normais conseguem aprender direito, imagina os deficientes que têm suas limitações. Eu acho que aluno com deficiência é melhor na Escola Especial, lá a equipe está mais preparada para fazer um bom trabalho. (P8).

Nesta fala, é clara a posição em que o professor se encontra no contexto inclusivo, uma vez que, na prática, toda a responsabilidade para que a inclusão dê certo é atribuída a ele. É na sala de aula que a inclusão é colocada à prova. É no momento do ensino que o professor sente o “peso” de ter um aluno diferente. Novamente a questão da dificuldade em lidar com as diferenças vem à tona, numa espécie de conformismo com a situação, demonstrando que isso é assim mesmo, que o ser humano não conseguirá lidar com o diferente. Alguns questionamentos poderão surgir, como por exemplo: será que na escola de surdos não existirá este tipo de problema porque todos são iguais? Na verdade, a única semelhança entre os alunos surdos será a surdez, sendo esta, característica principal de sua identidade, que é o que o diferenciam dos ouvintes. Entretanto, mesmo numa escola só para surdos, existirão as diferenças de sexo, cor, tamanho, gosto, pensamentos, atitudes, entre outros. Portanto, a diferença que determina a espécie humana, é fruto da cultura e da sociedade.

A formação docente aparece em muitos dos relatos e é considerada como o maior problema da inclusão dos alunos especiais, conforme o relato a seguir:

(...) Dar aula hoje é complicado e a inclusão infelizmente veio complicar mais ainda. Eu me sinto culpada quando não consigo sequer saber se meu aluno entendeu a lição ou não. (...). Eu me incomodo com o Intérprete, não por ela, mas pelo fato da figura dela. É como se eu estivesse assinando o meu atestado de incompetência. (P10)

É notória e verdadeira a questão de que os professores não foram e nem estão sendo preparados para a inclusão. As políticas públicas não deram conta de “preparar sua mão-de-obra”.

Mendes (2006, p. 13) diz que “(...) diretrizes políticas de reforma norteadas pelos princípios da inclusão escolar estão sendo anunciadas, mas em geral observa-se a ausência de procedimentos de avaliação, o que compromete o processo de implementação das propostas”. A Escola Inclusiva surgiu com o intuito de incluir todos os alunos, ou seja, levar para seus espaços os alunos que têm deficiência, geralmente oriundos da Escola Especial, com o argumento de que, convivendo com a diversidade, professores e alunos se beneficiarão desta convivência Porém, diversidade é um termo distinto de diferença. Skliar (2010), ao especificar a identidade surda, faz muito bem a distinção entre diversidade e diferença, do ponto de vista dos Estudos Culturais, fundamentados em Hall (2000) e McLaren (2003):

A distinção entre diversidade e diferença conduz ao debate sobre o lugar que corresponde aos surdos na educação especial e na educação em geral. A aproximação com esta temática pressupõe uma diferenciação entre o significado que tem a escola especial e o sentido possível para uma educação de surdos, anulando a sua habitual sinonímia. Também é necessário romper com a tradição segundo a qual, uma vez reconhecido o fracasso da escola especial, aparece de maneira implacável uma única opção: a escola inclusiva. Isto é o imperativo da integração escolar dos surdos nas escolas regulares. (SKLIAR, 2010, p.13)

É neste contexto que surgem as escolas para surdos ou Escolas Bilíngues, que têm como principal característica a educação bilíngue, em que os espaços escolares terão um olhar voltado para a cultura e identidade surda. Na Escola Bilíngue, os alunos surdos não mais precisarão “ser consertados”, na tentativa de torná-los iguais aos ouvintes. Na Escola Bilíngue, o surdo poderá ter a oportunidade de aprender com seus pares. Nesta escola, a Libras é tratada com status de primeira língua, a língua de instrução. Todos os espaços desta escola têm que favorecer as experiências visuais, os professores têm que saber Libras, bem como todos os profissionais que nela atuam. O Português nesta escola é ensinado somente na modalidade escrita. Mas e os professores, sabem o que significa tudo isso? Eis alguns relatos:

O maior problema são eles estarem numa rede regular com uma metodologia que não contempla em sua plenitude nem os alunos ouvintes. Acredito profundamente que o mais adequado seja uma escola para Surdos que contemple sua cultura, identidade Surda, em que a Língua de instrução seja de fato a Libras e que o português seja a segunda língua, ministrado por professor bilíngue graduado em Letras. (P5)

Não fomos preparados e nem estamos sendo, este é o maior e mais grave problema. Até quando?( P7).

A Libras, realmente não saber falar com os alunos surdos é o maior problema. (P9).

(...) falta de formação, falta de preparo da equipe pedagógica, falta de apoio da família, a Libras. Como aprender Libras num curso de 20 horas? Impossível. Salas lotadas, falta de Intérprete. Enfim, muita coisa precisa ser mudada. (P10).

Formação, preparação, capacitação, habilitação. Todos estes conceitos utilizados evidenciam a necessidade que os professores têm em serem “preparados” para a inclusão. Tardif (2002, p. 39) ao falar do perfil do professor, relata que este profissional é “alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos”.

Com a inclusão escolar e o fantasma da educação especial, no meio deste caminho estão os surdos que, através das mobilizações nos últimos três anos, têm tentado conquistar a escola que é considerada a melhor para eles, que é a Escola Bilíngue. Entretanto, para que esta conquista se concretize com qualidade, é preciso que haja profissionais que realizem o seu fazer pedagógico de forma a atender com qualidade os alunos surdos. Senão, de que adiantaria estar numa Escola denominada Bilíngue, em que professores não são bilíngues, em que não existam professores surdos, em que o currículo não é feito por professores surdos?

O que pensam e sentem os surdos?

A inclusão de alunos surdos em escolas regulares, juntamente com alunos ouvintes, tem trazido uma série de problemas, pois, não é de hoje que a educação de surdos é acometida pelo fracasso escolar, como bem coloca Sá (2011, p. 20) “as propostas para a educação de surdos no Brasil, sempre baseadas na visão da ‘deficiência’, não conseguiram levá-los ao sucesso educacional, mesmo depois de mais de cento e cinquenta anos de tentativas”.

Dorziat (2011, p. 24), coloca que os surdos “têm sofrido as consequências de uma educação que, historicamente, não se caracterizou pelo foco no ensino e nas suas implicações, mas na preocupação extremada com o fator biológico, clínico, com foco em treinos sistemáticos de linguagem oral”. Nas escolas especiais o foco era para a oralização, numa tentativa de “concertar” os alunos surdos, através de técnicas que os “ajudariam” a falar.

Foi perguntado aos surdos o que eles acham da inclusão escolar 5. Dos 17 surdos participantes, somente 02 deles disseram ser favoráveis à inclusão, apontando como ponto positivo a convivência com os ouvintes e a paciência dos professores.

Porque aluno surdo tem mais contato com aluno ouvinte. (S1).

Alguns professores respeitam alunos surdos. Quando alunos surdos tem dúvida perguntar por professores que tem atenção e ajudar alunos surdos entender. Professores tem que ter paciência com alunos surdos. (S4).

Para os que responderam que a inclusão não é boa, a figura do “ouvinte” apareceu em quase todas as falas, demonstrando que este contato com alunos ouvintes têm “atrapalhado” o aprendizado.

Ouvinte atrapalha muito, pois fica andando muito e reclama muito. (S7)

Ouvinte atrapalha surdo, preconceito, gozação. (S9)

Surdo estudar junto ouvinte ruim porque às vezes professor fala e eu não entendo. (S13)

Ouvinte atrapalha muito surdo, fica andando, cutucando etc. (S14)

Ouvinte fala muito e atrapalha os surdos. (S15)

Porque a inclusão com ouvintes podem provocar os surdos e chamo bullying. Por mim opinião é melhor escola bilíngue para surdos. (S16)

Esta convivência com os ouvintes, apesar de contribuir para o processo de socialização dos surdos, pois é fato que a experiência com os diferentes favorece isso, não significa dizer que é boa também para a aprendizagem dos surdos. Existe uma desigualdade no processo ensino e aprendizagem, pois numa sala que não tem intérprete e nem o professor sabe Libras, por exemplo, a informação não vai chegar igual para os dois: surdos e ouvintes. Portanto, os objetivos educacionais não são somente para contribuir com a socialização dos alunos, mas também com o seu aprendizado intelectual. O que está em questão é o respeito às especificidades dos alunos surdos e esse respeito deve ser dado pelos responsáveis pela educação, no caso o Poder Público através do cumprimento das leis. É preciso entender que os surdos por serem visuais, numa sala de aula em que a maioria dos alunos são ouvintes, este tipo de situação do “ouvinte fala muito, atrapalha muito surdo, anda muito, cutuca” é passível de acontecer. Desta forma, a inclusão escolar traz consigo toda esta problemática e acaba excluindo ao propor incluir.

Falta de uma política pública para uma inclusão que atenda as reais necessidades dos Surdos, e não do MEC! E uma política pública diversificada, pois, se tem surdo protetizado e oralizado que não querem aprender Libras, é direito deles. Mas, também, é de direito dos Surdos usuários de Libras, serem alfabetizados bilíngues, ou seja, L1 LIBRAS e L2 Português. (S17).

Um ponto interessante expresso na fala de S17 é sobre o respeito ao surdo “protetizado e oralizado que não quer aprender Libras”, pois é sabido que não são todos os surdos que se interessam pela Cultura Surda e tudo o que diz respeito a Libras. Estes surdos, tendo alguns que preferem ser chamados de deficientes auditivos, preferem oralizar e adotar a cultura dos ouvintes. Eles não participam dos movimentos surdos e nem partilham dos mesmos ideais como a luta pela Escola Bilíngue, por exemplo. Da mesma forma que os deficientes auditivos têm que ser respeitados, ao quererem estar numa escola junto com os ouvintes, S17 coloca que “é de direito dos surdos usuários de Libras, serem alfabetizados bilíngues, ou seja, L1 Libras e L2 Português” e isso só é possível numa classe ou escola bilíngue.

Este direito a que os surdos estão falando é o de ter acesso ao conhecimento, no caso da inclusão escolar, com a mesma qualidade com que os ouvintes têm. Esta luta não é para “saber mais” que o ouvinte, como se isso fosse uma rivalidade declarada, pois existem pessoas que acreditam que os surdos, ao preferirem uma escola só para eles, estão formando guetos, se isolando da sociedade e vivendo separados dos ouvintes, como se isso fosse possível. Não é isso que os surdos querem. Existe esta fronteira entre surdos e ouvintes, e ainda entre surdos sinalizantes e os não sinalizantes, o que é natural em uma sociedade multicultural.

A Libras é uma língua com estrutura gramatical completamente diferente do Português e este é um dos pontos de maior dificuldade tanto para os alunos surdos como para os professores. São dois seres: professor ouvinte e aluno surdo, que habitam o mesmo espaço, porém cada um com uma língua diferente. Isto é bastante complexo, tendo em vista que o fator comunicação é relevante no processo ensino-aprendizagem e a dificuldade ocorre pelo fato dos professores ouvintes não saberem se comunicar com seus alunos surdos. Um dos questionamentos feitos foi se eles acham que os professores estão preparados para a inclusão dos alunos surdos. A maioria relatou que os professores não estão preparados e que a maior dificuldade é com relação a Libras.

Não. Poucos professores sabem Libras. (S7), (S9) e (S10)

Não. Professor não sabe Libras. Precisa aprender comunicar com surdo. (S13)

Mais ou menos. Professores Libras fraco, precisa mais aprender Libras. (S15).

De fato, conforme demonstrado nesta pesquisa, o fato de não saber Libras dificulta o ensino para os alunos surdos, tornando quase que impossível o aprendizado.

Olhar a inclusão escolar pelo ponto de vista dos surdos mostra os muitos problemas que ela proporciona a estes alunos: constrangimento, exposição, preconceito, exclusão. E a aprendizagem, onde fica? Já é histórico o fato da escola não saber lidar com as diferenças e mesmo com o advento da inclusão, ela sempre tenta “homogeneizar” os que são diferentes. Conviver com “o diferente” não é tarefa das mais fáceis, pois, culturalmente e, porque não, tradicionalmente, as pessoas são treinadas a seguir padrões e modelos prontos.

Se o multiculturalismo é o “pensar sobre as identidades plurais, que perfazem as sociedades e em respostas que garantam a representação e a valorização dessas identidades nos espaços sociais e organizacionais”, segundo Canen (2005, p. 42), então, as pessoas surdas também tem o direito à sua língua própria, seu modo de ver o mundo e de viver no mundo, assim como os indígenas e outros segmentos da sociedade.

Considerações Finais

Sendo ouvinte e pertencente a uma cultura completamente ouvinte, foi necessário para esta pesquisadora realizar a experiência de se colocar no lugar do outro. Para compreender o que significa a Cultura Surda para os surdos, foi preciso estar com eles e conhecer as suas narrativas. Quem não conhece a Cultura Surda, talvez não consiga entender o que significa ter orgulho de ser surdo. Desta forma, foi necessário olhar de dentro. Aprender a língua de sinais, com certeza, foi o maior desafio.

Enquanto isso, os surdos estão nas escolas inclusivas e esta não é a melhor escola para eles. É preciso resguardar o direito a uma educação bilíngue para os surdos. São eles que estão sendo prejudicados na escola inclusiva. Mas, por que os surdos veem a inclusão com tanto pessimismo? Será que é porque esta inclusão que acontece nas escolas ainda não contempla sua diferença? Na verdade, percebe-se que os surdos não são contra a inclusão, eles são sim, a favor da inclusão que está pautada na legislação. O que eles questionam e não aceitam é a inclusão real, aquela a que eles estão expostos atualmente.

A lei que determina que os surdos devam estudar em escola regular inclusiva é a mesma que afirma que todos os professores devem ser capacitados para isso. Porém, a voz quase que uníssona dos professores é que esta formação ainda não está acontecendo. As narrativas dos professores neste trabalho é a mesma do aluno, que é a mesma do intérprete, que deve ser a dos pais, e assim por diante. Todos demonstraram que a inclusão, posta da maneira em que se apresenta, não oferece qualidade sendo necessário rever os processos de formação inicial e continuada de todos os professores, da Educação Infantil à Pós-Graduação.

Notas

4 Os professores que participaram da pesquisa serão identificados por P1 (Professor 1), P2 (Professor 2) e assim sucessivamente.
5 É importante esclarecer é que a escrita das respostas dos surdos foram preservadas, bem como a tradução dos vídeos.

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