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Gênero e sexualidade na escola de surdos
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Publicado em 2010
5º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero - Redações, Artigos Científicos e Projetos Pedagógicos Premiados. Brasília: Presidência da República, Secretaria de Políticas para as Mulheres. v. 5. p. 131-140
Pedro Henrique Witchs
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Resumo

Este artigo é direcionado a todos os professores e a todas as professoras que se veem agindo sob práticas de silenciamento das diferenças, em destaque as de gênero e sexualidade. A partir de experiências pedagógicas adquiridas durante o estágio supervisionado, ministrando a disciplina de Ciências para uma turma da 7ª série do Ensino Fundamental, em uma escola especializada na educação de surdos, uma infinidade de questões envolvendo os sexos, os gêneros e as sexualidades tornam-se emergentes. Tendo em vista que essas questões envolvendo essas diferenças são reduzidas por um discurso biológico oficializado no currículo escolar, este artigo objetiva problematizar a normalização das identidades de gênero e das sexualidades presentes no contexto da escola de surdos. O artigo está fundamentado em autores e autoras de campos teóricos como o dos Estudos Surdos (Lopes, 2007; Perlin, 2001; Quadros, 2004; Skliar, 2001) e como o dos Estudos de Gênero e Sexualidade (Louro, 2001, 2003; Carvalho, 2008; Dinis, 2008; Lopes, 2008). Para tanto, são apresentadas duas situações ocorridas no interior da sala de aula de Ciências dessa turma que propiciaram discussões sobre a construção de conceitos como, por exemplo, o da heteronormatividade; além disso, é apresentada uma análise de quatro textos imagéticos que focam o tema “O que é ser homem? O que é ser mulher?” produzidos pelos alunos e pela aluna que constituem a turma. As produções dos alunos e da aluna podem ser entendidas como capturadas por um discurso pedagogizado sobre a sexualidade. Além da marca de transcendência da Modernidade, os textos imagéticos representaram a normalização dos gêneros, através de ilustrações de casais heterossexuais manifestando uma forma de se exercer a sexualidade aceita pela sociedade. Considerando os questionamentos abordados pelos os alunos, suas representações em seus textos imagéticos e a infinidade de argumentos que surgem com os estudos nas temáticas focadas, é possível concluir que a escola de surdos, bem como qualquer outra instituição social, é um espaço em que as identidades de gênero e as sexualidades são conduzidas a um padrão de normalidade. Portanto, torna-se fundamental a necessidade de construção de espaços de formação pedagógica dentro da escola para que temas de interesse dos alunos jovens, como o da sexualidade, possam ser abordados com tranquilidade e segurança por professores e professoras; permitindo que a diversidade de gênero e sexualidade possam ser vistas e reconhecidas com o direito às possibilidades de coexistência.

Introdução

Durante o meu estágio supervisionado no Ensino Fundamental, ministrando a disciplina Ciências para uma turma da 7ª. série em uma escola especializada na educação de surdos, deparo-me com uma infinidade de questões que envolvem os sexos, os gêneros e, principalmente, as sexualidades. Tendo em vista que essas questões tornaram-se explícitas quando começo a trabalhar com os conteúdos relacionados aos sistemas genitais (masculino e feminino) e à fecundação humana, questiono como abordar os assuntos que envolvem gênero e sexualidade sem cair na redução biologista oficializada no currículo escolar.

A partir dessas experiências em uma escola de surdos, objetivo problematizar, neste artigo, a normalização de gênero e sexualidade presente no currículo da escola, bem como a necessidade de construção de espaços de formação pedagógica para que temas como os da diversidade de gênero e sexualidade possam ser abordados sem polêmica. Nesse sentido, direciono este artigo a todos os professores e professoras que, como eu, se veem agindo sob práticas de silenciamento das diferenças – em destaque as de gênero e sexualidade – que são conduzidas pelos padrões de normalidade.

O artigo está organizado como segue: esta pequena introdução dada acima, onde apresento minhas justificativas e os meus objetivos, é seguida pela minha descrição de metodologia utilizada, bem como pelo meu posicionamento em relação à especificidade do artigo, de modo a evidenciar que olho para os surdos como sujeitos de uma diferença linguística e cultural; na seção Sexos, gêneros e sexualidades, apresento uma situação ocorrida durante o estágio que contribui para desencadear a discussão sobre como as concepções de gênero e sexualidade estão condicionadas pelo discurso biológico; na seção Representações de gênero e sexualidade, trago outra situação desencadeadora de discussões e propícia para apresentar os resultados dos textos-imagéticos produzidos pela turma; e, para de finalizar este artigo, concluo: a escola de surdos, como qualquer outra instituição social, é um espaço em que as identidades de gênero e as sexualidades são conduzidas a um padrão de normalidade.

Os sujeitos surdos e suas múltiplas diferenças

Devido a minha integração ao Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação de Surdos (GIPES), optei por cumprir a atividade acadêmica da grade curricular do meu curso de Graduação em Biologia, o Estágio Supervisionado no Ensino Fundamental – Ciências, em uma escola de surdos. Desta forma, eu estaria inserido no contexto da pesquisa realizada pelo GIPES 3; adquirindo experiência e aumentando meu vocabulário na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) ao conviver com a comunidade surda escolar.

A instituição escolhida para a realização do estágio foi uma escola pública estadual que conta com o trabalho de um corpo docente composto por dezessete professoras e um professor 4. Depois de feita a escolha da instituição, foi preciso selecionar a série com a qual trabalharia; meu interesse pelos conteúdos abordados no ensino de Ciências para a 7ª. série guiou a minha decisão. Afinal de contas:

Por que incluímos a temática sexualidade em nossas aulas somente a partir da 7ª. série? Será por que é nessa idade que a voz encorpa, o corpo muda, a menstruação chega, os hormônios estão em ebulição, enfim os jovens estão “descobrindo” a sexualidade? (ALVARENGA; DAL’IGNA, 2004, p. 65)

No caso específico da turma de Ciências da 7ª. série em que realizei o estágio, não posso negar que muitos desses fatores citados acima já estavam em desenvolvimento, pois a faixa etária da turma encontra-se entre 15 a 25 anos. Composta por cinco alunos e uma única aluna, esta turma apresenta significativas características para se discutir gênero e sexualidade. Esse número bastante reduzido de alunos é explicado por se tratar de uma escola de surdos. Geralmente, o número de dez alunos por turma não é ultrapassado, facilitando a comunicação em uma língua de modalidade viso-gestual na sala de aula.

Penso ser necessário explicitar sobre qual referencial teórico fundamento meus entendimentos sobre a surdez. Para tanto, posso dizer que compartilho com os autores e as autoras dos Estudos Surdos 5 que, articulados ao campo teórico dos Estudos Culturais, numa perspectiva pós-estruturalista, entendem a surdez como uma diferença linguística e cultural. Ou seja, o fator deficiência, nesse referencial, é considerado oriundo de uma visão clínica, patológica e terapêutica. Ao não reduzir a surdez a uma condição deficitária, tenho a oportunidade de entender que existem inúmeras possibilidades de se constituir surdo. Fazendo uso de palavras que em nenhum momento atribuem a ausência de um sentido em um corpo, comungo com Quadros (2004, p. 10) na apresentação do sujeito surdo como alguém

[...] que apreende o mundo por meio de experiências visuais e tem direito e possibilidade de apropriar-se da língua brasileira de sinais e da língua portuguesa, de modo a propiciar seu pleno desenvolvimento e garantir o trânsito em diferentes contextos sociais e culturais. [...] As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes.

Nesse sentido, esclareço que não quero negar a deficiência auditiva, mas também não tenho intuito de torná-la o foco da discussão. Sendo assim, afasto-me do conceito de corpo danificado, que necessita ser tratado, reabilitado, normalizado, e aproximo-me de um conceito sócio-cultural.

No entanto, é justo e necessário informar que também não tenho a intenção de restringir os surdos a uma única identidade, construída de forma isolada, estável e homogênea, pois acredito na construção multicultural de inúmeras identidades surdas (Perlin, 2001) que podem ser expressas em diferentes instâncias. Lopes (2001, p. 112) afirma que “jamais encontraremos sujeitos iguais por serem surdos. Eles possuem história, meio familiar, sexo, raça, cor, religião, língua, situação econômica, identidade, etc. diferentes”. Contudo, essas e outras diferenças tentam ser amenizadas a partir de relações de poder exercidas em todas as instituições sociais, dentre elas, a escola.

A escola, de surdos ou não, é um espaço onde o ensino se exerce de forma intencional, a partir de um conjunto de princípios selecionados que guiarão professores e alunos, bem como todos aqueles que, direta ou indiretamente, se relacionam com ela. Toda e qualquer proposta da escola de surdos, quando em operação, cria perfis aceitos para um determinado grupo em um determinado tempo, considerando um conjunto de exigências sociais, políticas e econômicas de diferentes grupos culturais. (LOPES, 2007, p. 85)

Baseado nisso, afirmo que não encontrei questões de gênero e sexualidade diferentes das questões de gênero e sexualidade que se constituem dentro de uma escola regular. A escola de surdos, neste artigo, compõe a especificidade do contexto no qual estou inserido como professor. Sendo assim, posso dizer que a escola (regular ou especial), ao tentar amenizar as diferenças, trabalhando em prol de uma normalização dos sujeitos, acaba traçando divisões na sociedade. Tais divisões proporcionam uma série de condições de desigualdade àqueles que são constituídos por uma identidade de status comprometido no grupo e no tempo em que se estabelecem.

Sexos, gêneros e sexualidades

O aluno Vitor 6 (17 anos de idade) pergunta-me 7, deixando bem claro que sua questão refere-se a uma situação hipotética, se é possível que dois homens, apaixonados um pelo outro, pratiquem sexo anal. O aluno demonstra-se espantado e desgostoso com a resposta dada por mim, “sim, é possível”, e rapidamente a relata ao colega Silvio (da mesma idade) que reage incrédulo: “mentira”. Vitor se justifica, “é verdade, o professor disse”, e ambos retornam para mim com a esperança de que eu repita a minha resposta, “sim, é possível”.

A epígrafe desta seção trata-se de uma situação ocorrida no meu estágio com a 7ª. série durante uma atividade de reconhecimento dos órgãos que compõem o sistema genital masculino. Como posso interpretar essa situação sem distanciar-me das implicações pedagógicas que ela pode propiciar? Passo a tentar entendê-la, nesta seção, trazendo à tona conceitos de gênero e sexualidade que possam suprir a necessidade dos professores e das professoras em conhecê-los e compreendê-los.

Considerando as atividades que estávamos desenvolvendo naquele momento, sou levado a pensar que Vitor e Silvio entenderam e sabiam da possibilidade do ato sexual entre duas pessoas do sexo masculino. Contudo, não posso negar a força “das tradicionais explicações dos chamados “fatos” da vida, que biologizam a sexualidade e o desejo” (LOPES, 2008, p. 133). Essas explicações tradicionais definem que o ato sexual existe com a finalidade de que os indivíduos se reproduzam. Duas pessoas do mesmo sexo não podem se reproduzir – isso é um fundamento biológico. Seguindo o mesmo raciocínio, duas pessoas do mesmo sexo, portanto, não desejariam praticar atos sexuais entre si. Por isso, quero dar ênfase à necessidade de Vitor mencionar que as pessoas envolvidas naquele relacionamento hipotético estavam apaixonadas, ou seja, desejavam-se.

Contrastando com os sexos, “uma palavra até então usada principalmente para nomear as formas masculinas e femininas na linguagem” (CARVALHO, 2008, p. 91) começa a ser utilizada por feministas no final dos anos 60 para combater as implicações sociais advindas da biologia. O gênero, agora sendo um termo utilizado “para referir-se a toda construção social relacionada à distinção e hierarquia masculino/feminino, incluindo aquelas construções que separam os corpos em machos e fêmeas” (CARVALHO, 2008, p. 91), emerge à situação e, junto dele, finalizando a trinca biologizada: a sexualidade.

A escola tece uma “complexa trama normativa que estabelece uma linha de continuidade entre o sexo (macho e fêmea), o gênero (masculino e feminino) e a orientação sexual que se direciona “naturalmente” para o sexo oposto” (DINIS, 2008, p.484). Em suas práticas curriculares, a escola norteia suas ações pelo padrão de existência de “uma única forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade; afastar-se desse padrão significa buscar o desvio, sair do centro, tornar-se excêntrico” (LOURO, 2003, p. 42).

Portanto, talvez, as reações de espanto expressadas pelos dois alunos sejam representações da ideia de que o sexo, quando praticado em uma relação homossexual, não possa estar atrelado ao desejo natural. A imagem do sujeito homossexual fortalecida pelo discurso de que a homossexualidade seja um distúrbio, uma patologia, uma perversão, flutua por aquele momento. Então, novamente pergunto: que implicações pedagógicas estão sendo propiciadas com essa situação? Qual o papel do professor nesse contexto?

Não quero que a possibilidade de resposta a essas perguntas reduza as reflexões que quero proporcionar aos leitores e às leitoras do artigo. Entretanto, não posso negar que a situação discutida acima possibilitou a presença do mito de que “qualquer pessoa que ofereça representações gays e lésbicas em termos simpáticos será provavelmente acusada de ser gay ou de promover uma sexualidade fora-da-lei” (BRITZMAN, 1996, p. 79-80 apud DINIS, 2008, p. 483). Digo isso em função da outra situação-chave – “situação-chave” no sentido de que também desencadeia discussões propícias ao artigo – ocorrida durante o estágio e que passo a narrar na seção a seguir.

Representações de gênero e sexualidade

Enquanto escrevia no quadro-negro, os alunos riam entre eles, mas eu desconhecia o motivo, pois não estava enxergando sobre o que eles conversavam. Alguns minutos depois, viro-me para informá-los de que, por ouvir suas risadas, eu também sentia vontade de rir. A aluna Nádia (15 anos, líder da turma) aproveitou o momento de contato visual e comentou para mim: “sua letra é muito bonitinha, parece letra de mulher”. Agradeci à Nádia por considerar minha letra bonita e, em seguida, lhe informei que não acredito na existência de um tipo de letra que possa ser associado exclusivamente às mulheres, nem um tipo de letra que pode ser associado exclusivamente aos homens. A aluna, percebendo que eu não havia demonstrado em nenhum momento estar constrangido ou ofendido com seu comentário, perguntou-me: “professor, você é bi?”. Devolvo a pergunta questionando-a o que significa bi, e ela responde perguntando-me novamente: “namora homens e mulheres?”.

A epígrafe desta seção retrata o momento em que me pergunto o que teria levado Nádia a ter o interesse sobre a minha sexualidade. Seria a lógica da sequência sexogênero-sexualidade agindo de modo que Nádia tentasse encaixar-me em alguma identidade sexual? Uma vez que eu seja homem e a minha letra represente para Nádia o gênero feminino, em qual identidade sexual eu precisaria ser encaixado? A bissexualidade seria o que Nádia melhor encontrou como alternativa de resposta? Estaria eu livre para exercer o meu sexo (macho) – portanto, a minha biologia sendo utilizada como referência para a constituição da minha sexualidade – e o meu gênero – representado no imaginário de Nádia pela minha letra feminina manuscrita no quadro-negro?

Desconfio que tal questionamento possa ter sido produzido no momento em que considerei como possível, sem fazer uso de algum juízo de valor, o ato sexual entre duas pessoas do mesmo sexo que estão apaixonadas uma pela outra. No entanto, quando a minha sexualidade vem a ser questionada, passo a pensar ainda mais nas situações em que eu e a turma nos encontramos, pois

[...] pensar a questão da homossexualidade, pode ser um convite para que o/a educador/a possa olhar para sua própria sexualidade e pensar a construção histórico-cultural de conceitos como heterossexualidade, homossexualidade, questionando a heteronormatividade que toma como norma universal a sexualidade branca, de classe média e heterossexual. (DINIS, 2008, p. 484)

Portanto, é nesse momento que sinto-me instigado a refletir com a turma sobre as concepções de gênero e sexualidade que circulam pela escola. Deste modo, trago agora o meu olhar sobre quatro textos e quatro ilustrações produzidos pelos alunos e pela aluna da turma de Ciências da 7ª. série. A forma como o texto seria produzido foi declarada como livre; levando em consideração a importância do canal visual nas maneiras de se comunicar e se expressar dos surdos, também foi dada a oportunidade de os alunos ilustrarem o texto, tornado-o, assim, como o chamarei de agora em diante, um texto imagético.

É justo esclarecer que o olhar depositado nos textos imagéticos, para analisá-los, é o olhar de professor buscando pensar sobre sua prática, articulando leituras feitas em dois campos de saber – o dos Estudos Surdos em Educação e o dos Estudos de Gênero e Sexualidade. Ou seja, olho para os textos imagéticos como artefatos culturais, representações do que o currículo escolar ensina a ser reproduzido. Então, para ter a chance de retratar aqui as representações de meus alunos e de minha aluna sobre as identidades de gênero e sexualidade que se constituem pela e na escola, o tema proposto para a elaboração do texto imagético foi “O que é ser homem? O que é ser mulher?”.

Em um primeiro instante, com um olhar superficial, é possível perceber que todos os quatro textos imagéticos focam o relacionamento entre duas pessoas, um relacionamento guiado pelos princípios da heteronormatividade. Logo, nessas representações, ser homem e ser mulher implica relacionar-se com o sexo oposto. Em um segundo instante, divido os quatro textos imagéticos em duas categorias: relacionamento romântico e relacionamento sexual. Evidentemente, não quero negar a possível presença do sexo no que chamo aqui de “relacionamento romântico”, mas nomeio essas categorias de acordo com a intencionalidade focada em cada um dos textos imagéticos. E essas duas categorias são facilmente identificadas nas duas ilustrações retiradas dos textos imagéticos que apresento abaixo:

Relacionamento romântico: ilustração do texto imagético da aluna Nádia

Relacionamento sexual: ilustração do texto imagético do aluno Marcos

O texto imagético de Nádia, bem como o do aluno André (18 anos de idade), apresenta a expressão “relação de carinho”. Além disso, ambos os textos foram representados por uma ilustração muito parecida: a imagem de um casal heterossexual de mãos dadas em um ambiente ao ar livre, na presença de árvores, flores e animais. Associo essa representação do ambiente ao que discuti anteriormente sobre o desejo natural, como também à ideia da relação pura e saudável. Outra característica interessante nos dois textos imagéticos é que eles foram produzidos como se fosse um planejamento. Uma organização para o “futuro”, palavra esta que está presente no corpo dos dois textos, como trago nos fragmentos a seguir:

[...] eu sou feliz e esposa eu sou feliz familiar eu surdo amigo combinar festa não agora só futuro.

Fragmento do texto imagético da aluna Nádia, grifo meu.

Eu como faz futuro que é ser homem, humano com é mulher mas dos fazer organizor que eu.

Fragmento do texto imagético do aluno André, grifo meu.

Em seu texto imagético, Nádia estabelece uma série de etapas pelas quais ela, mulher, ordenadamente expressa realizar. A primeira etapa, de acordo com o texto imagético de Nádia, é a provação da família em relação ao seu novo namorado. Dentre as qualidades que ela lista para esse novo namorado ser aprovado, estão as palavras “homem”, “lindo”, “fiel”, “educar” (que pode ser entendido como “educado”). As etapas seguintes são expressas nesta sequência: dedicação aos estudos, obtenção de um emprego, conclusão de um curso superior, aquisição da casa própria, casar-se, aquisição do carro próprio e, por último, ter um(a) “filho(a)”. Destaco aqui a importância que Nádia dá ao gênero do filho planejado quando adiciona em seu texto a letra A, entre parênteses, após a palavra “filho”.

Tendo essas referências do texto imagético de Nádia e André, convoco os leitores e as leitoras a pensar como as concepções de gênero e sexualidade se exercem sob uma lógica de normalização. Essa lógica de normalização não enxerga, ou pelo menos não quer enxergar – e talvez “expor” seria uma melhor forma de se dizer – a diversidade sexual.

Quanto aos textos imagéticos que atribuo à categoria relacionamento sexual, inicio expondo algumas situações do texto do aluno Elias (25 anos, casado e pai). Nesse texto, as expressões “vontade”, “sorriso perfeito”, “corpo esbelto”, “gostosa”, “muito bonita”, “bem mulher” e “atraente” descrevem a pessoa com quem o relacionamento, seja ele sexual ou de afeto, seria o ideal. Essas características são ilustradas na imagem do mesmo texto, onde há a presença de duas figuras: uma feminina sorridente e de costas para a figura masculina, que expõe a língua salivante, expressando o desejo pela primeira figura.

O outro texto imagético da mesma categoria é o do aluno Marcos (17 anos de idade), que teve sua ilustração exposta anteriormente neste artigo. Ao contrário dos textos imagéticos descritos até agora, o texto de Marcos aborda explicitamente as questões que envolvem o ato sexual realizado entre um homem e uma mulher. Como, por exemplo:

[...] com sexo corpo viver é o esta Homem penis ejacular já mulher posso faz só camisinha boa usa.

Fragmento do texto imagético do aluno Marcos.

Além disso, a ilustração produzida por Marcos reflete como assuntos polêmicos, tais como sexo, são silenciados no interior da escola. A imagem do quadro, que indica a presença de mais pessoas – familiares, por exemplo – na situação que representa é complementada pela janela fechada, que reproduz o tratamento do sexo como algo sigiloso. Até onde vai o meu direito em fazer meus alunos pensarem sobre essas questões? Até onde vai o direito dos meus alunos expressarem suas vontades de discutir sobre essa temática em sala de aula? Acredito que compartilho estas e outras dúvidas com todos os professores e professoras que já tenham se deparado com situações-desencadeadoras como as que trago neste artigo.

Conclusões

Considerando as situações descritas neste artigo, suas representações nos textos imagéticos produzidos pela turma de Ciências da 7ª. série e a infinidade de argumentos que surgem com os estudos nas temáticas focadas, penso que para se abordar temas de interesse dos alunos jovens, como a sexualidade, sem fazer disso uma polêmica, a necessidade de construção de espaços de formação pedagógica dentro da escola é fundamental; considerando o contexto da educação de surdos nessas mesmas temáticas, posso dizer que o pouco domínio na LIBRAS por parte dos professores ouvintes pode vir a dificultar o desenvolvimento de assuntos que ultrapassam os conteúdos formais da escola.

Sendo assim, concluo: a escola de surdos não difere de qualquer outra instituição social na tentativa de normalizar as identidades de gênero e as sexualidades; e, para finalizar este artigo, expresso aqui a minha intenção de permanecer atento às questões de gênero e sexualidade que circulam o espaço escolar de forma a permitir que a diversidade de gênero e a diversidade sexual possam ser vistas e reconhecidas com o direito às possibilidades de coexistência.

Notas

3 “A Educação dos Surdos no Rio Grande do Sul”, título da pesquisa desenvolvida pelo GIPES e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), permitiu mapear a situação escolar e linguística dos surdos no Estado do Rio Grande do Sul.
4 Carvalho (2008, p. 90) constata “que a grande maioria dos professores na educação básica no Brasil são mulheres, numa proporção que aumenta conforme diminui a idade dos alunos atendidos, a chamada “feminilização” do magistério”. No entanto, como a própria autora também menciona, não tenho a intenção de focalizar a discussão sobre gênero na temática da profissão generalizada.
5 Estudos Surdos é o termo utilizado para nomear as pesquisas na área da surdez que buscam ver os surdos como sujeitos políticos e culturais.
6 Por razões éticas, os nomes utilizados no decorrer deste artigo são fictícios.
7 Todos os diálogos descritos neste artigo ocorreram originalmente na LIBRAS e foram livremente traduzidos por mim para a língua portuguesa.

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