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Ana Claudia Balieiro Lodi
Ana Claudia Balieiro Lodi
Professora e Investigadora
A Leitura em Segunda Língua: Práticas de Linguagem Constitutivas da(s) Subjectividade(s) de um Grupo de Surdos Adultos
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Publicado em 2006
Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 185-204
Ana Claudia Balieiro Lodi
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Resumo

Este trabalho discute aspectos constitutivos da(s) subjetividade(s) de um grupo de surdos adultos, a partir do desenvolvimento de oficinas bilíngües de leitura. A partir de interações discursivas em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), tal espaço possibilitou uma transformação dos lugares sociais assumidos pelos sujeitos, ao permitir o estabelecimento de diálogos entre histórias de vida e entre as diversas relações sociais construídas em e pelo grupo. Considerando que a subjetividade é sempre relativa, determinada pelos diversos olhares dos outros e construída em lugares e em tempos sócio-ideológicos distintos; um evento plural, marcado discursivamente, no qual o eu se completa dialogicamente na(s) relação(ões) com o(s) outro(s), as discussões realizadas neste estudo apontam para a necessidade de um repensar dos espaços educacionais como lócus de interações discursivas e, portanto, de transformação e de constituição dos sujeitos.

Alguns pressupostos da teoria enunciativa de Bakhtin

Todo o arcabouço teórico bakhtiniano é fundado no dialogismo e,neste, linguagem e sujeito caminham sempre em direção à di-versidade, à multiplicidade. Um discurso é sempre constituídopor diversas linguagens sociais que se interceptam de múltiplas maneiras, imprimindo, assim, uma opinião plurilíngüe sobre o mundo. Alémdisso, todo discurso é perpassado por linguagens alheias sobre ummesmo objeto, pois este já foi falado, contestado, avaliado pelo discur-so dos outros, na medida em que um objeto está sempre amarrado porpontos de vista, apreciações e entonações de outrem.Desse modo, compreende-se que o sentido do enunciado é construído na interação verbal, é atualizado no contato com outros sentidos, na relação estabelecida entre interlocutores. Ele procede de dois sentidosque se encontram, existindo, apenas, na relação de um com o outro,como um elo numa cadeia de sentidos.

Do mesmo modo, ao se referir à questão da subjetividade,Bakhtin (1920-1930/1979, 1970-1971/1979)1 enfatiza a necessidadedo outro, daquele cuja voz é constitutiva do eu. Para ele, o eu e o outro se constituem mutuamente: o eu não existe sem o outro, assimcomo a autoconsciência só se desenvolve através do outro. Dessa for-ma, o eu bakhtiniano não se constitui isoladamente, não é algo acabado e completo; existe apenas em uma relação tensa e dinâmica com aquilo que é outro, que lhe dará acabamento e completude. Meu eu só é percebido pelos olhos do outro, na refração do mundo através dosvalores do(s) outro(s).

No entanto, a relação eu/outro, na qual minha autoconsciência éconstituída, não é simples. Para Bakhtin (1970-1971/1979), esta re-lação, dialógica em essência, é fundada numa tríplice distinção: o eu-para-mim (representação que o eu faz sobre si próprio), o eu-para-o-outro (representação do eu devolvida pelo outro) e o outro-para-mim(representação que o eu constrói do outro).

(...) Tudo quanto pode nos assegurar um acabamento na consciência deoutrem, logo presumido na nossa autoconsciência, perde a faculdade deefetuar nosso acabamento e apenas amplia em nossa consciência a orientação que lhe é própria; ainda que conseguíssemos apreender o todo denossa consciência, no acabamento que ele adquire no outro, esse todo nãopoderia impor-se a nós e assegurar nosso próprio acabamento, nossa cons-ciência o registraria e o superaria (...) a última palavra pertencerá sempreà nossa consciência e não à consciência do outro; quanto à nossa consci-ência, ela nunca dará a si mesma a ordem de seu próprio acabamento. Navida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regres-samos a nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que nos parece re-sumir o todo, realiza-se sempre nas categorias de nossa própria vida.(Bakhtin, 1920-1930/1979, p. 36-37)

Esse retorno do eu sobre si mesmo não é coincidente com o eu-para-mim e nem tampouco com o eu-para-outro, pois o eu nunca é assi-milado pelo outro: ele sempre ocupa um lugar de sujeito que se diferen-cia daquele ocupado pelo(s) outro(s). Para explicar esta separação eu/outro,Bakhtin (1920-1930/1979, 1970-1971/1979) desenvolve os conceitosdeextraposiçãoe de excedente de visão, construídos a partir das noções detempo e espaço como unidade da arena discursiva. Para ele, toda e qual-quer visão é relativizada por ser determinada pelo posicionamento que osujeito ocupa naquele tempo e naquele espaço. Desse modo, um indiví-duo sempre vê o que está fora do campo de visão de um outro, ou seja,no campo de visão de um sempre existe um excedente de visão, algo queele não consegue ver devido à posição que ocupa no espaço.

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente,nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nósdois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro,sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e queo situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar (...) o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveisa ele (...).

Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar nomundo (...) o que vejo do outro é precisamente o que só o outro vê quan-do se trata de mim. (Bakhtin, 1920-1930/1979, p. 43)

Desse modo, o sujeito se define sempre por suas relações com ou-tros sujeitos, razão pela qual esta construção implica um processo plural,inesgotável, inconcluso e aberto (Bakhtin, 1970-1971/1979). Assim,embora ocupem um mesmo local e um mesmo tempo, tempo e espaçotornam-se opostos ao eu e ao outro e, portanto, o eu tem uma percepção limitada de si, assim como o outro dele próprio.

Nesse sentido, toda a existência é compartilhada. Desta relação,do mundo visto a partir do olhar e do sistema de valores do outro, queo eu retorna a si próprio, completando o seu horizonte com o que foidescoberto do lugar que ocupa fora dele, visto e percebido pelo olhardo outro. Assim, a tomada de consciência do eu ocorre somente quan-do este se coloca sob determinada norma social e esse processo só é pos-sível na medida em que o eu olha para si pelos olhos de outro,poistudo o que está relacionado com o eu foi dado pelo mundo exterior,penetrou em sua consciência pela linguagem do outro e, portanto, car-rega em si as entonações e os valores do(s) outro(s) (Bakhtin, 1970-1971/1979). A constituição do eu é, assim, um processo dinâmico quese desenvolve durante toda a existência do ser.

Nesse sentido, o grupo torna-se um espaço privilegiado para oestudo da construção das subjetividades, para a compreensão da ma-neira como a consciência individual e coletiva sobre si e sobre o outrofoi sendo construída no decorrer de cada história.

O trabalho empírico: procedimentos de investigação

Partindo dos pressupostos apresentados acima, foi realizada umapesquisa com um grupo de sujeitos surdos adultos, constituído para odesenvolvimento de oficinas bilíngües de leitura, realizada em uma clí-nica de fonoaudiologia de uma universidade, em uma cidade do inte-rior de São Paulo (Lodi, 2004). As oficinas caracterizaram-se por umespaço bilíngüe, na medida em que toda interação discursiva no grupo ocorria em língua brasileira de sinais (LIBRAS), enquanto o texto era es-crito em língua portuguesa.

O grupo foi formado pela autora deste artigo2 e por sete sujeitossurdos,3 cuja idade variava entre 21 e 32 anos. Todos os surdos estuda-ram em classes regulares de ensino e apresentavam um grau de escola-ridade variado. No que se refere, especificamente, à linguagem escrita,relataram muitas dificuldades em ler e em escrever, razão pela qual al-guns abandonaram os estudos e, mais tarde, procuraram a clínica defonoaudiologia.

Neste espaço era também desenvolvido um outro grupo, consti-tuído apenas por surdos, ministrado por um instrutor surdo, que tinhacomo objetivo levar os sujeitos a um maior conhecimento e desenvolvi-mento da LIBRAS, bem como realizar discussões de aspectos específicos dasurdez e do ser surdo. Era, assim, um grupo que partilhava a mesma ex-periência: ser surdo em um mundo de ouvintes. Este fato, por si, modi-ficava o olhar de cada um sobre o outro e, conseqüentemente, sobre simesmo, na medida em que, neste espaço, o eu-para-o-outro não era maisaquele do ouvinte, mas sim daquele que respeitava e compartilhava aparticularidade do ser surdo.

Para o desenvolvimento das oficinas de leitura, buscou-se a imersãodo grupo em práticas que considerassem a linguagem escrita em sua dinâmica discursiva e, para tal, foram utilizados textos de veículos de circulação social. O grupo fez a seleção do material e optou pela leitura dequatro textos de circulação impressa – um do gênero discursivo receita etrês do gênero discursivo reportagemde revista – e um texto de circulaçãoem meio digital – gênero discursivo artigo assinado.

As oficinas foram desenvolvidas uma vez por semana, durante 90minutos. Todas foram filmadas e, posteriormente, transcritas pela au-tora deste artigo.

Para a análise dos dados, adotou-se uma metodologia de pesqui-sa qualitativa, que buscou descrever ou reconstruir o cenário e as regrasde funcionamento do grupo, considerando os contextos sócio-culturais(e, portanto, históricos) dos participantes e os eventos intersubjetivosem jogo no espaço das oficinas (Góes, 2000). Os princípios que nor-tearam a análise do corpustiveram como base as três premissas descri-tas por Bakhtin e Volochinov (1929), ou seja, partiu-se da situação so-cial ou de enunciação para o gênero/enunciado/texto e, posteriormente, para as formas lingüísticas (Rojo, no prelo).Aproximou-se, também,daanálise microgenética, na medida em que se buscou compreender agênese sócio-ideológica e as transformações do processo no curso doseventos observados (Góes, 2000).

O recorte que será apresentado neste estudo refere-se à leitura dotexto do gênero artigo assinado, de François Grosjean (1999), que abor-dava o direito das crianças surdas de crescerem bilíngües, texto sugeridopara leitura pelos próprios sujeitos.

Apresentação e análise dos dados

Logo na leitura do título do texto, o grupo levantou questões,apresentou dúvidas e discutiu a significação da palavra “bilíngüe”.

A leitura do título do texto foi feita, inicialmente, por Adriana,que introduziu o tema “ser bilíngüe” para ser discutido no grupo.Letícia, frente à enunciação de Adriana, apresentou sua concepção doque seria ser bilíngüe, relacionando o tema à sua vivência: a criança sur-da necessita ser auxiliada a realizar cópias. Essa relação estabelecida porLetícia – ser bilíngüe igual a fazer cópias – pode ser compreendida se for levado em conta que, na maioria das vezes em que o grupo se de-frontou com o tema, este se referia à esfera educacional – necessidadede ser desenvolvida uma escola bilíngüe para surdos na cidade, a im-portância da educação bilíngüe para as crianças surdas como possibili-dade de crescimento e de apropriação de conhecimentos, como lugarpara o desenvolvimento e para a valorização dos aspectos culturais dogrupo social de surdos –, tema de preocupação do instrutor surdo naépoca em que as oficinas estavam sendo realizadas e que, portanto, eraconstantemente abordado por ele no grupo que desenvolvia.

Dessa forma, para Letícia, este tema estava direta e unicamenterelacionado às práticas escolares e, assim, considerando os conhecimen-tos construídos por e durante sua vivência no espaço escolar, ser bilín-güe significava ser ajudada a realizar cópias.

As práticas educacionais às quais os surdos foram submetidos (eainda o são, em muitas instituições, principalmente quando incluídosem escolas regulares de ensino) eram centradas na cópia. Copiar dalousa, do livro, do caderno do colega. Copiar, manter-se em atividadee mostrar-se presente em sala de aula (Góes & Tartuci, 2002); dessaforma, o surdo pode ser visto e tratado como ouvinte, na medida emque a diversidade (principalmente lingüística) é mascarada e escondi-da pela imposição da cultura do silêncio7 (Perlin & Quadros, 1997). Nes-sa busca pela “igualdade de todos”, a escola acaba por olhar para apluralidade sócio-cultural e lingüística presente nas salas de aula deuma forma perversa: negando-a (Souza & Góes, 1999).

A enunciação de Letícia denunciou, assim, o diálogo entre suahistória de vida, dos diversos enunciados em que a palavra bilíngüe sefez presente para ela, e destes com o artigo que ela começava a ler.

Num diálogo com o tema em discussão, Débora questionou asignificação da palavra “direito” e aproximou-se dela, possivelmente, to-mando como base as discussões realizadas no grupo de surdos desen-volvido pelo instrutor surdo e no qual o uso da LIBRAS era, constante-mente, enfatizado e valorizado. A pesquisadora solicitou, então, àAdriana, que explicasse à Débora o sentido da palavra (já que Adrianatambém participava do grupo do instrutor surdo e poderia desenvol-ver a explicação conforme havia sido feita por ele), desconsiderando,neste momento, o deslocamento do tema feito por Cláudio que atri-buiu à palavra um sentido trabalhista.

Após a explicação de Adriana e o reconhecimento do tema comocomum ao abordado no grupo de surdos desenvolvido pelo instrutorsurdo, ela enunciou o sinal “bilíngüe”, mas este ecoou no grupo e nãoobteve resposta. Este processo pode ser compreendido se for conside-rado que a palavra “bilíngüe” era tratada por Adriana como um sinal(conforme compreendido por Bakhtin & Volochinov, 1929): ela reco-nhecia a palavra escrita e atribuía a ela um sinal da LIBRAS, mas o senti-do do tema era por ela também desconhecido.

De forma contrária, as enunciações de Letícia e de Débora busca-vam compreensão, procuravam responder ativamente às discussões e,portanto, construir sentidos à leitura/tema, valendo-se, nesse processo,de suas próprias vivências – COPIAR;ESTUDAR – e dos conhecimentosconstruídos na clínica de fonoaudiologia, em função das atividades de-senvolvidas pelo instrutor surdo – ENSINAR;GRUPO BRINCAR (como referência aos grupos de crianças surdas nos quais o instrutor surdo desenvolviaatividades lúdicas). A voz do instrutor surdo foi, novamente, reconheci-da na enunciação da pesquisadora por Adriana (LEMBRAR...IS FALAR...) e acompreensão do tema pelo grupo, parcialmente realizada.

No entanto, a voz do instrutor surdo, reconhecida nas enunciaçõesde Adriana e da pesquisadora, era ainda, para a maior parte deles, umaenunciação de outrem que, naquele momento, se tornava deles, em umprocesso de apropriação do discurso alheio, que possibilitava o diálogo com o tema “ser bilíngüe” introduzido pelo texto. Entende-se, assim, asenunciações de Débora – CRIANÇA SURDA ACREDITAR LIBRAS? – e de Adriana–APRENDER ENSINAR LIBRAS? – como discursos que ainda não se tornaramtotalmente delas, consistindo, assim, em palavras próprias-alheias.

O outro, corporificado na pessoa do instrutor surdo, e a apro-priação de sua palavra desempenhavam, neste momento histórico vivido pelo grupo de surdos participantes desta pesquisa, uma redefiniçãodas bases ideológicas determinantes da constituição do grupo social desurdos pela linguagem, materializada no reconhecimento da LIBRAS e navalorização desse saber.

A(s) palavra(s) do instrutor surdo surgiu(ram), assim, como umapalavra ideológica do outro interiormente persuasiva–determinante para oprocesso de transformação da ideologia da consciência individual (Bakhtin,1934-1935/1975, p. 145). Uma palavra persuasiva interior, conforme dis-cutiu Bakhtin (ibid.), é metade nossa e metade do outro; é uma palavra contemporânea, que nasce do contato com o presente inacabado. Ela mostra-se em processo de elaboração e, portanto, sua contextualização é flexivel e dinâmica.

Dessa forma, os temas desenvolvidos no artigo assinado instaura-ram, no grupo, um embate sócio-ideológico: um conflito histórico, emque o passado foi posto em confronto com um presente que o grupo nãoreconhecia mais como certo e estável e que apontava em direção à neces-sidade de transformação, a um futuro; um confronto que pôs em xequea ideologia sócio-cultural na qual todos foram constituídos, em face deuma nova perspectiva social que começavam a conhecer.

Este fato determinou que, logo após a discussão sobre o que é serbilíngüe, o grupo passasse a questionar um ao outro sobre os conhecimentos que tinham sobre a LIBRAS e sobre o Português e, em alguns casos, a tercomo resposta o olhar que o outro tinha sobre si. Em termos bakhtinianos,a defrontar-se com seu eu-para-o-outro.

Nestes relatos, podem ser observados movimentos distintos, masbastante significativos entre os sujeitos. Estes, ao questionarem um aooutro sobre como viam suas próprias relações com a linguagem, enun-ciaram como foram representados pelo outro no decorrer de suas histórias (e, portanto, como se constituiu o eu-para-o-outro determinante,em grande medida, do eu-para-mim) e, de certa forma, como ainda oeram, na medida em que freqüentavam o grupo de língua de sinais como instrutor surdo para aprenderem e desenvolverem a LIBRAS; realizavamterapias fonoaudiológicas, em função das questões de linguagem, por te-rem tido um acesso restrito a ela, em decorrência de uma educação e deum processo clínico voltados e desenvolvidos por meio da linguagem oraldo português e não da LIBRAS; e pelas relações sociais construídas nos es-paços familiares e educacionais, nos quais suas dificuldades e poucos co-nhecimentos da língua portuguesa eram destacados e enfatizados, secomparados com os ouvintes.

No entanto, freqüentavam também um outro grupo – o das oficinas –, há três meses, no qual todas as discussões e toda construção deconhecimentos se davam em LIBRAS e este saber era, constantemente,enfatizado pela pesquisadora e pelos próprios amigos surdos.

Este fato determinou que fosse possível observar um certo movimento quanto aos lugares sociais assumidos pelo grupo no decorrer dasoficinas, em especial de Adriana, Débora e Letícia: nas duas primeirasoficinas desenvolvidas para este estudo, a pesquisadora realizou, no grupo, um levantamento das histórias de vida de cada um e explicou comoseria o funcionamento das oficinas. Ao relatar ao grupo que as discus-sões ocorreriam em LIBRAS e não em linguagem oral, o grupo e, em particular, os três sujeitos acima citados, ao mesmo tempo em que acharam interessante, demonstraram um certo estranhamento neste fato; relataram à pesquisadora que achavam que seria muito bom, mas quetodas eram aprendizes da LIBRAS, deixando transparecer uma certa dúvidaquanto à possibilidade de fazê-lo. Na oficina em que esses relatos foramretirados, o discurso apresentado por elas não foi mais o de se olharemapenas como aprendizes, mas, sim, assumiam um conhecimento de LI-BRAS, mesmo que mediano, numa transformação do eu, em grande partedeterminada pelo olhar do outro (neste caso, em particular, da pesquisadora, dos colegas e do instrutor surdo).

O movimento observado no caso de Adriana foi também determi-nado pelas enunciações de seus colegas. Inicialmente, como pode ser per-cebido no episódio 2, Adriana, assim como suas colegas, referiu-se a si(ao seu eu-para-mim)como possuidora de um conhecimento mediano da LIBRAS – MAIS-OU-MENOS. No entanto, num movimento discursivo de-terminado pelas enunciações de Cláudio – Pro 3(A) MAIS – e de Letícia, que a tomava como base para referir-se a si mesma – IGUAL Pro3(A) –, Adrianapôde rever seu olhar para si e para o lugar social que ocupava dentro dogrupo participante das oficinas: Pro1 APRENDER (...) DESENVOLVER.

Tem-se, assim, o movimento discutido por Bakhtin (1920-1930/1979, 1970-1971/1979), no qual o eu-para-mimde Adriana, em diálogocom o seu eu-para-o-outro, retornou a si mesmo e deslocou-se do lugar depouco conhecedora para o de mais conhecedora da LIBRAS em relação aogrupo. Observa-se, portanto, uma (re)constituição/transformação da cons-ciência individual de Adriana, constituída numa relação dialógica, dinâ-mica e viva, com a consciência coletiva manifesta no signo verbal (Bakhtin,1927; Bakhtin & Volochinov, 1929).

De forma contrária, Cláudio e Gabriela assinalaram, respectivamente, conhecer pouco a LIBRAS, menos do que suas colegas do grupo. Além disso, durante as discussões realizadas nas oficinas, principalmente as rela-tivas a este artigo, a comparação entre os saberes de ambos com o dos demais era feita pelo grupo sempre que as questões estivessem relacionadascom a necessidade de saberem e de desenvolverem conhecimentos em LIBRAS.

Observa-se que, frente às dificuldades de ordem discursiva apresentadas por Cláudio (por não ter tido acesso a LIBRAS até o ano de 2001, quando começou a freqüentar o grupo de surdos da clínica de fonoaudiologia), o grupo demonstrava uma apreciação valorativa negativa de seu eu, o que determinava respostas carregadas de um acento depreciativo sobre qualquer enunciação por ele realizada. Estes discursos, somados aos que Cláudio viu durante sua vida cotidiana (familiar e nas relações de trabalho), contribuíram para que seu eu tenha se constituído pelo olhar do outro como não conhecedor da LIBRAS e da língua portuguesa; dessa forma, ele retornava ao seu eu e, nesta posição social, mantinha-se.

No entanto, logo no início da próxima oficina, Cláudio trouxe ao grupo um relato que demonstrava que muitas das questões discutidas na oficina anterior haviam-no feito refletir, buscando, naquele momento, uma identificação com outros surdos que tivessem, socialmente, uma representação de inteligência e de poder (muito embora a leitura feita por ele tenha sido equivocada).

Débora, ao ver o relato de Cláudio, mostrou-se interessada e o questionou sobre seu conhecimento. Buscou saber quem era essa pessoa, onde vivia e o que ela fazia. Perguntou-lhe, então, qual era o nome (em LIBRAS) desse surdo, pois iria contar aos seus colegas. Ao fazer o sinal do homem, a pesquisadora estranhou e começou, também, a tirar algumas dúvidas. Ao perceber se tratar de Charles Chaplin, a pesquisadora interveio esclarecendo que ele não era uma pessoa surda, embora, em seus filmes, ele não falasse.

Cláudio trouxe, assim, sua forma de conceber a surdez: aquele que não fala. Explicou que esta impossibilidade de falar é uma conseqüência de problemas nas pregas vocais, e não do fato de não ouvir, e atribuiu o sucesso de Charles Chaplin (como Carlitos) ao fato dele ter tido acesso, desde pequeno, a LIBRAS.

Compreende-se esta colocação como decorrente dos discursos em circulação nos espaços da clínica de fonoaudiologia – grupo de surdos desenvolvido pelo instrutor surdo, oficinas e maior convívio com os surdos; porém, como discursos de outros, estes ainda não tinham, para Cláudio, a dimensão sócio-ideológica de transformação. Pode-se dizer que Cláudio tomava estes discursos como interiormente persuasivos, ou seja, eles indicavam e apontavam em direção a uma transformação. Porém, esta, ainda não acabada, apontava para um futuro, aquele que vinha sendo mostrado e enfatizado nos grupos em desenvolvimento e que ele desconhecia.

Pode-se dizer, assim, que o diálogo que Cláudio realizou foi entre esses discursos e sua história como não falante (em relação à linguagem oral); porém, havia possibilidade de mudança e esta se daria, unicamente, pela LIBRAS, o que explicaria, assim, o sucesso e a inteligência de Charles Chaplin. Em seu discurso, há um diálogo com a oficina anterior (na qual foi enfatizada a importância da LIBRAS para o desenvolvimento das pessoas surdas), mas, principalmente, seu discurso constituía-se em uma resposta ao grupo, que questionou suas capacidades cognitivas, por ele não ser fluente nesta língua.

Cláudio mostrou, assim, compreensão da imagem de seu eu para o(s) outro(s), realizou uma reflexão a respeito, ao retornar o eu-para-o-outro para si, e uma semana depois trouxe a resposta.

No que se refere à Gabriela, que negou qualquer conhecimento da LIBRAS e, inclusive, enfatizou a necessidade de conhecer e de aprender a linguagem oral do Português, assistiu-se a um processo muito parecido com o de Cláudio, pois o olhar e a avaliação do grupo sobre ela eram, também, negativos: em muitos momentos, não se demonstrava uma atitude responsiva às suas enunciações e, na organização para a leitura, desconsiderava-se sua presença, tendo sido deixada, muitas vezes, sozinha pelo grupo de surdos.

No que tange às questões referentes às relações familiares, Letícia e Débora disseram ter dificuldades no diálogo com os pais, que pouco conheciam a LIBRAS. Ou seja, em suas relações cotidianas, a LIBRAS nunca ocupou um espaço positivo; pelo contrário, a ênfase das famílias, a educação e o processo clínico a que foram submetidas na infância foram unicamente voltados para o desenvolvimento da linguagem oral do Português.

Um fato que chamou a atenção neste episódio foi que, ao se moverem discursivamente para o espaço familiar, Débora e Letícia demonstraram um aumento considerável no uso da linguagem oral (transcrito em itálico no episódio em LIBRAS), se em comparação às demais discussões realizadas em todo o período das oficinas. Trouxeram ao grupo, dessa forma, o eu constituído pelos olhos do(s) outro(s) no ambiente familiar, que se diferenciava daquele constituído pelo olhar do(s) outro(s) no espaço da clínica de fonoaudiologia.

Demonstraram, assim, que a subjetividade é sempre relativa, determinada pelos diversos olhares dos outros, construída em lugares e em tempos sócio-ideológicos distintos e, portanto, um evento plural marcado discursivamente: o eu que se completa, dialogicamente, na(s) relação(ões) com o(s) outro(s) e que se deixa transparecer pela e na linguagem.

Este movimento, determinado pelas interações verbais construídas no grupo de surdos e pelas relações sociais estabelecidas com outros, não pôde ser observado em se tratando da língua portuguesa. Todos os sujeitos mantiveram os mesmos lugares sociais do início das oficinas e imprimiram um acento valorativo diferente sobre seus conhecimentos, se em comparação ao demonstrado com relação à LIBRAS.

Este fato é, no entanto, compreensível, na medida em que esta mudança social implicaria uma transformação ideológica envolvendo todas as questões relacionadas à surdez. Se forem levadas em conta as histórias dos sujeitos e as práticas sociais cotidianas e educacionais em que se constituíram e se for considerado que a consciência coletiva tende a reproduzir e agir segundo os sistemas sociais de forças que a determinam, tem-se uma dimensão um pouco mais ampla da problemática em jogo.

Quando se pensa nas questões relativas à surdez e ao ser surdo, o deslocamento que tem sido realizado visa, apenas, a presença da LIBRAS nos diferentes espaços sociais. No entanto, este movimento não é suficiente, pois os discursos em circulação continuam a reproduzir a ideologia tradicionalmente conhecida. Melhor dizendo, embora a língua de sinais faça-se presente, a ideologia que perpassa as organizações sociais (da mais básica a mais complexa), por coerção das forças centrípetas que tentam, insistentemente, fechar o sistema, promove a manutenção desta língua e do grupo de surdos que a usam em lugar subalterno à língua portuguesa e aos seus falantes.

Neste mesmo sentido, Skliar (1998), ao comentar o movimento de transformação sócio-ideológica que vem perpassando os novos discursos sobre a surdez, presentes nos estudos desenvolvidos à luz de uma perspectiva sócio-cultural, aponta que as conseqüências causadas pela hegemonia normalizadora e corretiva a que foram submetidos os surdos foram tais que, para que uma real transformação seja levada a cabo, seria necessário um amplo movimento, estendendo-se àquele de aceitação e de consideração da língua de sinais nas diversas esferas sociais. Para o autor, é imprescindível a adoção de uma nova perspectiva que busque:

(...) desnudar as implicações mais dolorosas que esse fracasso gerou na construção das identidades dos surdos, na sua cidadania, no mundo do trabalho, na linguagem etc. (...) duvidar dos poderes e dos saberes, arraigados na prática educacional, que ainda reproduzem e sustentam o fracasso, ao considerá-lo como um mal necessário no objetivo da naturalização dos surdos em ouvintes. (Skliar, 1998, p. 9)

Esta transformação só será possível se a significação da palavra “bilíngüe” sofrer um deslocamento e um distanciamento etimológico. Tornar-se, em termos bakhtinianos, um signo verbal cujo tema propicie a construção de sentidos que considerem, mais do que um problema relativo a duas línguas, questões sociais amplas envolvendo os “instrumentos lingüísticos, [as] formas de ver o mundo, [a] organização comunitária e [os] conteúdos culturais” (Sá, 1998, p. 186).

Essa luta é travada em todas as instâncias discursivas e, portanto, faz-se presente nas mínimas enunciações, na medida em que a linguagem, centro de qualquer cultura e marcada pela heteroglossia, articula o embate de diversas forças extrapessoais (Bakhtin, 1934-1935/1975). Essas forças centralizadas na língua(gem), lugar em que se travam os conflitos ideológicos, atuam também nas relações sempre dialógicas de constituição da subjetividade.

(...) nós obtemos o nosso self de outrem: eu obtenho um self que posso ver, que posso entender e usar, vestindo o meu self, que é, de outro modo, invisível (incompreensível, inutilizável) com as categorias completantes que eu aproprio da imagem que o outro tem de mim. (Clark & Holquist, 1998, p. 103)

Há, assim, na constituição do eu-para-mim, um embate dos meus diversos eu(s)-para-o(s)-outro(s). Dessa forma, uma mudança quanto aos lugares sociais do grupo de surdos participantes desta pesquisa, no que diz respeito à língua portuguesa, envolveria, primeiramente, uma transformação social referente à LIBRAS. Só assim poderiam tratar o Português como segunda língua, estabelecendo uma outra relação discursivo-ideológica com ela, sem necessitar submeter-se à sua força.

Considerações finais

As questões que perpassaram as discussões desenvolvidas nas oficinas dedicadas à leitura do artigo assinado de François Grosjean levaram o grupo a uma reflexão sobre aspectos relativos à construção da subjetividade e às questões de linguagem.

Pode-se dizer, desta forma, que a valorização da LIBRAS e seu uso no espaço de oficinas de leitura tiveram um papel fundamental na (re)constituição do eu (surdo) de cada sujeito e, portanto, em uma transformação relativa à forma pela qual passaram a se olhar e a serem olhados pelo outro. Isso porque as atividades foram desenvolvidas em grupo, considerando-se a LIBRAS como lócus de construção de sentidos, o que possibilitou uma interação de ordem discursiva com textos, com suas histórias e com o grupo. Além disso, leituras realizadas a partir de temas envolvendo aspectos específicos da surdez e do ser surdo possibilitaram uma transformação dos sujeitos em suas relações sociais, nas diferentes esferas de atividade humana.

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