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O Abade de L’Epée no Século XXI
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Publicado em 2012
1ªs Jornadas da LGP. Língua. Ensino. Interpretação. ESEC - Escola Superior de Educação de Coimbra
Paulo Vaz de Carvalho
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

O presente artigo tem como objetivo recuperar a vida e obra do Abade de L’Épée, percursor da educação pública das crianças e jovens surdos em todo o mundo realçando a contemporaneidade das suas obras enquanto alicerces da educação bilingue defendida no século XXI. Este professor fundou o primeiro instituto público de surdos de todo o mundo - o Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris - tendo como base um método que reconhecia a existência da língua gestual dos surdos franceses, incluindo-a na sua educação. A este método, L´Épée chamaria de gestos metódicos cuja descrição é apresentada nas suas duas principais obras: Institution des Sourds- Muets par la voie des signes methodiques (1776) e La veritable maniére d’instruire les sourds et muets confinée par une longue experience (1784). Apresentar-se-á, no início deste trabalho, uma resenha acerca da história da educação de pessoas surdas antes do Abade de L’Épée, realçando de seguida os seus principais contributos para a educação de surdos, a nível mundial e finalmente salientar a atualidade das suas obras como base para o desenvolvimento de uma educação de surdos bilingue e de qualidade.

1. A Educação de Surdos antes do Abade de L’Epée

Antes de nos debruçarmos sobre a vida e obra do Abade de L’Epée devemos recuar na História e perceber como foi a educação de surdos antes desta incontornável personalidade.

O mais longe que as fontes nos permitem recuar é à Antiguidade e à civilização egípcia. Segundo Berthier (1827) na civilização egípcia, os surdos eram adorados como deuses já que a população acreditava que os surdos transmitiam mensagens secretas dos deuses ao faraó e este transmiti-as ao povo, servindo o surdo de mediador entre os deuses e os faraós. Embora existisse um aproveitamento do surdo por parte do faraó para legitimar o seu poder, o surdo conseguia ter uma boa situação social já que eram temidos e respeitados pela sociedade.

O mesmo não aconteceu na época clássica. O filósofo Aristóteles, em 355 a.C. defendia que os que nasciam surdos, por não terem linguagem eram incapazes de raciocinar. Os surdos eram pessoas sem direitos já que não eram úteis à Polis e muitas vezes eram condenados à morte ou marginalizados juntamente com os doentes e os débeis mentais (Berthier, 1827). No entanto, em 360 a.C., o filósofo Sócrates considerou que era lógico e aceitável que os surdos comunicassem naturalmente utilizando as mãos, a cabeça e outras partes do corpo por estarem privados da audição. Podemos, assim, constatar que a forma de encarar a pessoa surda diferia não só entre as sociedades como entre os indivíduos.

Os romanos, muito influenciados em vários aspectos pelos gregos, também, viam o surdo como um ser demasiado imperfeito para pertencer a uma sociedade que perseguia a perfeição física e intelectual. Lucrécio escreveu um poema na sua obra Natureza das Coisas, em 30 a.C. referindo que os surdos não podiam ser instruídos nem a sua inteligência ser ensinada. No entanto, como em todas as sociedades, sabemos que o poder económico e o estatuto social fazia com que algumas pessoas fossem privilegiadas em relação a outras. Plínio, na sua obra História Natural (70 d.C.) refere-se a um Quintus Pedius, artista surdo bastante talentoso, filho de um cônsul romano que necessitou de uma autorização especial do imperador César Augusto para desempenhar a sua profissão. Pode constatar-se que nem todos os surdos seriam ostracizados ou condenados à morte, dependendo da sua condição social. Ao longo de toda a história dos surdos, como poderemos verificar, esta situação irá repetir-se várias vezes tendo grande influência no início da educação de surdos, assim como, no seu desenvolvimento.

Em 529 d.C., o imperador Justiniano criou uma lei baseada no Talmude palestiniano onde se distinguem cinco categorias diferentes de surdos e consoante a categoria que pertenciam detinham ou não direitos como a posse de propriedades, celebração de contratos ou direito a heranças.

Com as invasões bárbaras e a criação do Império Romano do Oriente com a capital em Constantinopla, a situação do surdo em nada se alterou e embora não se conheçam fontes sobre a situação do surdo nesta nova capital do Império pensa-se que era muita semelhante à de Roma. No entanto, quando o império turco-otomano reconquista Constantinopla devolve-lhe o nome de Bizâncio e várias alterações se deram nesta cidade. Também a situação do surdo se alterou, muitos prestavam serviço na corte interior, servindo de pagens às mulheres e outros serviam como mimos para entreter o Sultão.

Após a queda do Império Romano surge o declínio das cidades e da vida urbana, entrando a Europa na Idade Média. Neste período surge o feudalismo e o monaquismo e por consequência um grande desenvolvimento do domínio social e político da Igreja Católica. Esta religião estará durante muitos séculos ligada à educação de surdos. A situação do surdo na Idade média não era muito diferente da existente na época clássica. Acreditava-se que a alma dos surdos não era imortal já que não conseguiam dizer os sacramentos e até ao século XI estavam impedidos de casar. Segundo santo Agostinho (354-430 d.C) aqueles que tinham filhos surdos estavam a pagar pelos seus pecados. No entanto, é na Idade Média (em 700 a.C.) que surge a primeira tentativa de ensinar um surdo a falar. Este episódio passou-se com o Arcebispo de York, John Beverley que ensinou um surdo a falar contrariando as ideias de Aristóteles.

Com o fim da Idade Média, a Europa entra numa nova Era, a Era Moderna iniciada com o Renascimento, no final do século XIV. Nesta época a cultura ocidental será marcada por dois movimentos- o classicismo e o humanismo. A nova visão humanista do mundo irá alterar a mentalidade da antiga sociedade teocrática medieval em muito devido à acção de grandes pensadores como Dante, Petraca, Erasmo de Roterdão e Martinho Lutero, este último o grande responsável pelo movimento da Reforma Protestante.

É nesta época de grandes mudanças que surgem as primeiras abordagens mais sérias sobre a problemática da surdez. Bartollo della Marca (1314-1357) refere a possibilidade do surdo poder aprender através da língua gestual ou da língua oral. No século XVI, surge pela primeira vez a distinção entre surdez e mutismo no livro Inventione Dialectica de Rudolfus Agricola, em 1528. Também Girolamo Cardano (1501-1576) declarou que os surdos podiam e deviam receber instrução e que podiam ser ensinados a ler e escrever sem o auxílio da fala. No entanto apesar do aparecimento da imprensa e da consequente divulgação literária e cultural era a igreja católica que continuava a ser responsável pela educação.

Por esta razão é do seio da igreja que surge o primeiro professor de surdos, Pedro Ponce de León, um monge beneditino espanhol cujo trabalho serviu de base aos futuros educadores de surdos. No entanto, o objectivo de educar os surdos não era exatamente a preocupação com a pessoa surda, motivos económicos escondiam-se por trás desta iniciativa. Os alunos surdos de Ponce de Léon eram todos pertencentes à nobreza que queriam que os seus filhos surdos conseguissem falar. Nesta época uma pessoa que não conseguisse falar não tinha quaisquer direitos perante a lei e desta forma as famílias que tinham como filho primogénito um surdo, com receio de perderem os seus bens enviavam-no para Ponce de León para aprenderem a falar. Segundo Pablo Bonet, Ponce de León desenvolveu um alfabeto manual que ajudava os surdos a soletrar as palavras. Ensinava-os, também, a ler, escrever e rezar. O grande contributo de Ponce de León foi contrariar a tese de Aristóteles de que os surdos eram incapazes de aprender. Mas a contribuição hispânica para o desenvolvimento do ensino de surdos não encerrou com Ponce de León.

Pablo Bonet (1579-1629) de Saragoça, aproveitou o trabalho de Ponce para ensinar um surdo, Luis Velasco, segundo filho de Fernandez Velasco, condestável de Castela. Esta família, ao longo de gerações, teve vários casos de surdez e pensa-se que foram eles que entregaram alguns escritos de Ponce de León a Bonet. O grande contributo de Bonet para a educação de surdos foi a publicação do seu livro Redução das Letras e Arte para Ensinar a Falar os Mudos. Bonet defendia que seria mais fácil, o surdo aprender a ler se cada som fosse representado de forma visível, pelo alfabeto manual, que já existia muito antes do seu tempo. A publicação do seu livro atraiu a atenção de vários intelectuais europeus, inspirando alguns deles a dedicarem-se ao ensino de surdos.

Assim, começam a surgir paulatinamente pessoas notáveis interessadas pela educação dos surdos obtendo, alguns deles, grande reconhecimento como os defensores do método oral como Konrad Amman ou John Wallis e outros menos reconhecidos, defensores do método gestual como John Bulwer. Devemos destacar algumas obras que viriam a dar um contributo inestimável para o futuro da educação de surdos, uns defendendo o método oral, outros defendendo o método gestual.

Relativamente aos defensores do método oral destaca-se a obra Surdus Loquens (1692) de Konrad Amman, um médico suíço que viria a desempenhar a sua profissão nos Países Baixos. Quanto aos defensores do método gestual distinguiuse a obra Chirologia, ou a linguagem natural da mão (1644) de John Bulwer, um médico inglês.

Os educadores oralistas obtiveram sempre mais projecção que os gestualistas até ao tempo do Abade de L’Epée (século XVIII) devido à necessidade legal que imperava em ensinar a fala aos surdos como referimos anteriormente.

A educação de surdos durante quase toda a Idade Moderna era individual e apenas os surdos oriundos de famílias nobres tinham acesso ao ensino cujo objectivo era o ensino da fala. Por esta razão a figura de Charles Michel de L’Epée, um abade francês, viria a mudar a história da educação de surdos na Europa com repercussões até aos dias de hoje. Para muitas pessoas, erradamente, foi considerado o criador da língua gestual, no entanto, está documentado que a língua gestual já existia muito antes dele (Desloges, 1779). Pierre Desloges, a primeira pessoa surda a escrever um livro, refere na sua obra Observações de uma pessoa surda acerca do curso elementar de educação de surdos (1779), a existência de uma comunidade surda parisiense que comunicava em língua gestual ( a antiga língua gestual francesa). L’Epée reconheceu, sim, a existência desta língua que servia de base comunicativa entre os surdos e que, segundo ele, deveria ser utilizada na educação de surdos.

2. A vida do Abade de L’Epée

Charles Michel de L’Épée é considerado como uma das figuras mais relevantes da História dos Surdos. Apesar de ter sido ouvinte a comunidade surda venera-o como um membro ilustre por ter sido o iniciador da educação institucional dos surdos através do uso da Língua Gestual.

Nasceu a 25 de Novembro de 1712 no seio de uma família abastada na cidade francesa de Versalhes, então residência dos reis de França. A comemoração do seu aniversário foi durante muito tempo considerada a festa mais importante comemorada pela comunidade surda francesa. Será a comemoração do seu aniversário que dará origem aos banquetes de surdos e consequentemente ao movimento associativo surdo.

Cedo iniciou a sua carreira, ainda jovem mas as suas ideias progressistas impediram-no de ser ordenado (negou publicamente as ideias jasenistas, uma corrente católica muito popular na época) padre e por isso recebeu o título de abade, uma figura muito popular na época que permitia certos trabalhos religiosos como ser tutor de crianças e conselheiro espiritual privado ao serviço de famílias ricas. Paralelamente a essa actividade desenvolveu os seus estudos em direito.

No trabalho enquanto abade, L’Épée dedicou-se a actividades de caridade que consistia em procurar angariar dinheiro para apoiar projectos de ajuda a pessoas pobres. Contam os seus biógrafos que boa parte dos projectos levados a cabo por L’Épée eram filantrópicos, ou seja, à custa da sua fortuna pessoal.

Pouco se sabe acerca dos seus trabalhos até 1760 quando assumiu a responsabilidade do seu colega que estava a morrer, o padre Famin /Vanin para educar duas gémeas surdas muito pobres cuja formação espiritual estava a cargo de Vanin.

O seu contacto com as duas meninas surdas convenceu o abade que era possível ensinar os surdos através do uso de gestos e a partir daí propôs-se a abrir uma instituição para receber outras crianças surdas e instruí-las na religião. Em 1771, financiado com os seus próprios meios fundou a “A Instituição Nacional de Surdos Mudos” em Paris na sua casa cujas salas encheu com crianças surdas que ele próprio recolheu em toda a cidade. Após alguns anos de trabalho, o abade convenceu-se que também podia ensinar os seus alunos em matérias mais amplas. Assim, a sua escola passou a oferecer uma formação geral em francês escrito e outras matérias do conhecimento.

Para ensinar os surdos, o abade aprendeu Língua Gestual utilizada pelos surdos parisienses, a chamada “Antiga Língua Gestual Francesa” e utilizava-a nas aulas adicionando outros gestos que inventou e que lhe permitiram “cunhar” conceitos do francês escrito para os quais, aparentemente, não existiam equivalentes em Língua Gestual. Esta situação deve destacar-se porque durante muito tempo, em todo mundo e mesmo em França, a comunidade surda atribuía a L’Épée a criação da “Langue des Signes Françaises”. Todavia, como recorda Piérre Desloges na sua obra de 1779, a LSF já existia muito antes do abade de L’Épée porque já existia em Paris uma comunidade surda bem estabelecida quando o abade abriu a escola.

L’Épée escreveu bastante acerca dos seus métodos de trabalho e recebeu na sua escola de Paris muitas pessoas ouvintes e surdas de outros países europeus que estavam interessadas na sua actividade. Várias dessas pessoas regressaram aos seus países de origem e fundaram escolas semelhantes o que deu ao abade uma projecção continental.

Quando da sua morte a 23 de Dezembro de 1789 (ano da revolução francesa), o abade gozava de um merecido prestígio, porque vários dos seus alunos surdos destacaram-se como intelectuais da sociedade parisiense. Devido ao trabalho destes intelectuais surgiu o seguinte lema: “O abade foi o pai da LSF”. A Assembleia Nacional de Paris concedeu ao abade em 1791 o título de “Benfeitor da humanidade” e declarou que os surdos tinham os mesmos direitos enunciados na “Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão” que tinha sido aprovada em 1789.

3. A Obra de L’Épée

Ao longo da sua vida L’Épée escreveu três obras principais das quais chegou a publicar duas. A primeira em 1776 que se intitulava: “Institution des Sourds-Muets par la voie des signes methodiques”. Nesta obra apresentava os primeiros sucessos do seu trabalho com a Língua Gestual Metódica. A este trabalho seguiu-se outro em 1784 intitulado “La veritable maniére d’instruire les sourds et muets confinée par une longue experience”. Nesse mesmo ano começou a trabalhar num livro intitulado “Dictionnaire des Sourds-muets” que não publicou em vida (alguns autores defendem a ideia que o abade escreveu este último livro para ser publicado para ser apenas um guia para o trabalho na escola. Deixou-o incompleto e foi terminado pelo seu sucessor à frente da escola de Paris, o abade Sicard.

Deixamos aqui um excerto da sua obra “La veritable maniére d’instruire les sourds et muets confinée par une longue experience” onde L’Epée explica o método que utilizava no ensino de surdos.

(...) Parte I
Ensinar surdos é menos difícil do que normalmente se supõe.
Apenas temos que introduzir nas suas mentes através dos olhos o que tem sido introduzido nas nossas próprias mentes através dos ouvidos. Estas duas avenidas estão sempre abertas, cada uma levando ao mesmo ponto; desde que não se desviem para a direita ou para a esquerda seja qual for a nossa escolha.

Capítulo 1. Como começa a instrução dos surdos
Em qualquer língua, não aprendemos o significado das palavras apenas por ouvi-las a serem produzidas. Palavras como “porta” ou “janela” podiam ser repetidas cem vezes sem, contudo, se ligarem a qualquer ideia se os objectos designados não fossem simultaneamente mostrados.

Um sinal da mão ou do olho era o único meio para aprender a combinar a ideia destes objectos com os sons estimulando os nossos ouvidos. Sempre que ouvíamos estes sons, as mesmas ideias surgíam na mente porque nos lembrávamos dos sinais feitos quando estes sons eram produzidos. Devemos usar os mesmos procedimentos com os surdos. A instrução começa com o alfabeto manual como os alunos usam para comunicar de um lado da sala para o outro. A forma da letra produz um forte impacto visual nos surdos, que não ficam mais confusos do que nós ficamos com os vários sons que ouvimos.

A seguir nós escrevemos (digo “nós” porque com os meus alunos surdos muitas vezes tenho assistentes) no quadro as palavras “porta” e mostro-lhes a porta. Os alunos, imediatamente reproduzem no alfabeto manual cada letra da palavra cinco ou seis vezes, imprimindo nas suas memórias o número e a ordem das letras. Uma vez isto feito, eles apagam a palavra, e pegando eles próprios no giz, escrevem-na, não importa quão bem ou mal formadas ficam as letras. Então, cada vez que eles escrevem deve-se mostrar o mesmo objecto.

Fazem o mesmo com tudo o resto que seja apontado, o nome é escrito de forma rápida, primeiro em letras grandes, no quadro, depois em tamanho normal em diferentes cartões. Quando estes cartões são entregues aos alunos, eles ficam agradados em examinar a proficiência uns dos outros e a ridicularizar os erros. A experiência mostrou que uma pessoa surda de inteligência normal, irá, através destes procedimentos, adquirir mais de oitenta palavras em menos de três dias.

Pegue num cartão com letras apropriadas e entregue-os um a um ao seu aluno. Ele irá apontar sucessivamente para cada parte do seu corpo correspondente a cada palavra do cartão. Baralhe os cartões como quiser e ele nunca se enganará. Ou se escrever uma destas palavras no quadro vê-lo-á a apontar cada objecto nomeado provando que compreende o significado do nome. Através deste procedimento o aluno irá, em poucos dias, aprender todas as palavras para as diferentes partes do corpo, desde a cabeça aos pés, assim como as palavras para os vários objectos do meio ambiente, tanto se apontarmos os nomes escritos no quadro ou nos cartões na sua mão.

Mesmo nesta fase inicial, contudo, não nos limitamos apenas a este tipo de instrução, divertido como é para os alunos. No primeiro dia escrevemos o presente do indicativo do verbo “carregar” e explicá-lo por meio de gestos como se segue: com vários alunos sentados em torno de uma mesa, coloco um aluno novo à minha direita. Coloco o dedo indicador da minha mão esquerda na palavra “eu” e explico em gestos, apontando para mim com o dedo indicador da mão direita dando no meu peito dois ou três toques. De seguida, com o dedo indicador esquerdo na palavra “carregar”, pego num livro grosso e carrego-o debaixo do braço, em toda a orla da minha batina, na minha cabeça, nas costas, andando com a expressão de alguém que carrega um pesado fardo. Nenhuma destas acções escapa à atenção do aluno. Volto para o quadro. Para explicar a segunda pessoa do singular coloco o meu dedo indicador esquerdo na palavra “tu” e com o meu dedo indicador direito no peito do aluno, dou algumas pancadas suaves, conseguindo que ele repare que estou a olhar para si e ele para mim. De seguida coloco o meu dedo sobre a segunda pessoa do verbo “carregar” e entregando-lhe o livro faço um gesto para ele imitar a minha acção. Ele ri-se, pega no livro e executa a acção indicada. Depois vem a terceira pessoa do singular. Coloco o meu dedo indicador esquerdo na palavra “ele” e com o meu dedo indicador direito aponto para alguém próximo, tornando evidente que não estou a olhar para ele (que estou a falar dele e não com ele). Dou-lhe o livro sem olhar para ele; ele carrega-o em várias direcções descritas e coloca-o de volta em cima da mesa. Depois desenho uma linha debaixo da terceira pessoa do singular e a explicação fica completa.

Prosseguimos com o plural. Coloco o meu dedo indicador esquerdo na palavra “nós” e com o meu dedo indicador direito aponto primeiro para mim e depois para todos em volta da mesa e finalmente para mim outra vez, mostrando que ninguém foi deixado de fora. De seguida levantámos a mesa e carregámo-la. A seguir vem a segunda pessoa do plural. Colocando o meu dedo indicador esquerdo na palavra “vós”, uso o meu dedo indicador direito para apontar para a pessoa que está à minha esquerda e sucessivamente, todos os alunos em volta da mesa e incluindo o novo aluno que está à minha direita. Em vez de apontar para mim, afastei-me alguns passos do grupo; os outros alunos de seguida levantaram a mesa e carregaram-na. É evidente que não me envolvi nesta acção.

Chegámos, então à terceira pessoa do plural. Voltando à mesa, coloco o dedo indicador esquerdo na palavra “eles” e como meu dedo direito aponto para todos em volta da mesa, começando pela pessoa à minha esquerda e acabando na pessoa à direita do meu novo aluno que deixei à parte. Eu e ele permanecemos quietos enquanto os outros levantaram e carregaram a mesa.

Escusado será dizer que o novo aluno ficou encantado com esta actividade. Pedi ao meu aluno para repetir tudo o que viu fazer com com a primeira, segunda e terceira pessoa do singular e plural. Ele começou e mesmo no início (não por culpa sua) cometeu um erro. Com o seu dedo indicador esquerdo em cima do “eu” colocou o indicador direito no meu peito, pensando que “eu” era o meu nome porque me tinha visto aplicar esta palavra relativamente a mim.

Para corrigir este erro, imediatamente incitei cinco ou seis alunos que tinha feito parte do “nós”, “tu” e “eles” a juntarem-se a nós. Cada um destes alunos apontaram primeiro para si próprios comum dedo em cima do “eu”, depois para alguém para quem estava a olhar e para quem ele se virou, com o dedo em “tu” e finalmente para uma terceira pessoa, sem olhar para essa pessoa e virou-se para ela, tendo o dedo indicador no “ele”. Assim, o nosso estudante aprendeu a chamar a si mesmo “eu” como os outros fazem, e não houve mais problemas.

Para evitar perder tempo, usamos uma língua que significa algo de correcto no início. O aluno compreende-nos necessariamente se não for tão desprovido de inteligência como um cavalo ou uma mula e doravante ele entende o que está escrito, quando segundo o modelo que vimos “carregar” ele conjuga “eu puxo”, “tu puxas”, etc… “eu arrasto”, “tu arrastas”, etc…

Em suma, ele compreende em um ou dois dias todas as frases feitas de uma das seis pessoas do presente do verbo transitivo com o objecto (ex: “eu puxo a mesa”, “tu arrastas a cadeira”, “ele oferece uma poltrona”, “nós estamos a olhar para o espelho”, “vocês fecham a porta”, “eles fecham a janela”).

Todos estes verbos expressam acções cujos gestos são imediatamente compreendidos e os alunos podem ver com os seus próprios olhos que este gesto se refere à actividade em curso.

Seria prematuro entrar em explicações detalhadas dos verbos. O que mostrámos com o presente do indicativo “carregar” é apenas uma espécie de antecipação útil, porque desenvolve as faculdades mentais do surdo, melhor do que a forma usual de começar com as declinações dos substantivos e pronomes.

Além disso, os alunos divertem-se mais com essa forma devido ao número de frases curtas que assim adquirem o que é uma consideração importante no ensino de pessoas que devem ser atraídas para estudar pelo prazer. Embora nos confinemos a estes preliminares, os nossos alunos com a ajuda dos professores com quem vivem e com os seus rabiscos recreativos, quando estão juntos, aprendem gradualmente os outros tempos deste primeiro verbo. Assim, que se aperceberem, estabelecem uma base valiosa sobre a qual podemos construir conhecimento.i(...)

4. Os contributos de L’Epée para a Educação de Surdos

O Abade de L’Epée viria a marcar a educação de surdos na Europa e no mundo alterando por completo o paradigma da educação de surdos até então. Os seus principais contributos foram:

  • criação do Instituto Nacional de Surdos-Mudos em Paris, que foi a primeira escola para surdos do mundo;
  • atribuição aos surdos do estatuto de humanos, ao reconhecer a existência da sua língua;
  • passagem da educação individual para a educação colectiva.
  • constatação de que o tempo que se perdia a ensinar o surdo a falar, devia ser aproveitado para educá-lo, pois era raro o surdo que se conseguia exprimir claramente pela via oral;
  • demonstrações a nobres, filósofos e educadores, comunicando em Língua Gestual, e os surdos respondendo por escrito.

5. A influência do Abade de L’Epée desde o século XIX ao século XXI

Após termos passado em revista, de forma sucinta, a educação de surdos antes do Abade de L’Epée e de seguida um pouco da sua vida e obra iremos agora relatar de que forma a sua obra é ainda hoje tão fundamental.

A obra do Abade de L’Epée viria a ser difundida pela Europa e pelo mundo através do seu sucessor, o Abade Sicard e dos seus dois alunos Jean Massieu e Laurent Clerc que viriam a tornar-se os primeiros professores surdos em todo o mundo.

O Abade Sicard desenvolveu o método do seu antecessor melhorando-o bastante. Sicard terminou a obra iniciada por L’Epée, “O Dicionário dos Surdos-Mudos” e nas suas obras seguintes introduz algumas alterações ao método iniciado pelo Abade de L’Epée baseando-se no método analítico. No Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris, como então era designado, com Sicard como director vários foram os reis e pessoas de destaque da Europa que vieram assistir às então famosas sessões públicas dadas por Sicard. Estas sessões consistiam numa aula ministrada por Sicard publicamente onde invariavelmente tinha como assistentes os seus prodigiosos alunos Massieu e Clerc. Muitos foram os monarcas europeus que ao verem o sucesso deste método viriam a fundar escolas de surdos nos seus países.

Durante o período do “Terror” na revolução francesa, o Abade Sicard foi preso e condenado devido às suas ideias adversas à revolução tendo sido salvo pela acção do seu mais querido aluno, Jean Massieu que organizou uma petição e com um grupo de alunos do Instituto reivindicou a libertação do mestre. Todavia, Sicard continuou defendendo as suas ideias políticas ganhando rapidamente a inimizade da família Bonaparte tendo que partir para o exílio. Escolheu Sicard exilar-se em Inglaterra levando consigo três dos seus alunos, dois dos quais já professores. Eram Massieu, Clerc e o jovem Godard. Em Londres o professor e os seus assistentes efectuaram várias sessões públicas onde difundiram o método de ensino de surdos através da Língua Gestual e da escrita vindo a influenciar várias escolas de surdos neste país.

Numa destas sessões estava presente Thomas Hopkins Gallaudet que impressionado com o que tinha assistido pediu autorização a Sicard para ir estagiar ao Instituto de Surdos-Mudos de Paris. Desta forma já em Paris e no final do seu estágio, Thomas Gallaudet convidou Laurent Clerc a viajar com ele para os EUA com o objectivo de fundar uma primeira escola de surdos neste país. Clerc aceitou de imediato o convite apesar do descontentamento manifestado por Sicard e em 1815 fundou a primeira escola de surdos nos EUA, na cidade de Hartford. Esta escola viria a servir de modelo a muitas outras escolas que seriam fundadas neste país.

Outro meio de divulgação do método do Abade de L’Epée foi através do teatro. Em 1799 Bouilly, um autor famoso escreveu uma peça de teatro sobre o Abade de L’Epée. Esta peça viria a alcançar um tal sucesso que seria divulgada em toda a Europa. Foi ao assistir a esta peça de teatro e inspirado na obra de L’Epée que Per Aron Borg veio a fundar a primeira escola de surdos na Suécia e mais tarde em Portugal.

Assim, várias foram as escolas que se fundaram na Europa e no mundo tendo por base o método de ensino de surdos inaugurado pelo Abade de L’Epée. Seriam algumas dessas escolas que resistiram ao impacto do Congresso de Milão de 1880 que instaurava a obrigatoriedade do ensino da língua oral aos surdos e a proibição da utilização da língua gestual na sua educação.

Foi também este método e o trabalho de L’Epée que william Stokoe utilizou em 1960 na fundamentação teórica da sua obra “The Sign Language Structure” para iniciar as investigações linguísticas da ASL.
A obra de L’Epée tem sido ainda referenciada quando se fala em educação bilingue por isso o seu trabalho e a sua influência são ainda hoje um dos pilares que defendem a utilização da língua gestual na educação das crianças surdas em todo o mundo.ao Instituto de Surdos-Mudos de Paris. Desta forma já em Paris e no final do seu estágio, Thomas Gallaudet convidou Laurent Clerc a viajar com ele para os EUA com o objectivo de fundar uma primeira escola de surdos neste país. Clerc aceitou de imediato o convite apesar do descontentamento manifestado por Sicard e em 1815 fundou a primeira escola de surdos nos EUA, na cidade de Hartford. Esta escola viria a servir de modelo a muitas outras escolas que seriam fundadas neste país.

Outro meio de divulgação do método do Abade de L’Epée foi através do teatro. Em 1799 Bouilly, um autor famoso escreveu uma peça de teatro sobre o Abade de L’Epée. Esta peça viria a alcançar um tal sucesso que seria divulgada em toda a Europa. Foi ao assistir a esta peça de teatro e inspirado na obra de L’Epée que Per Aron Borg veio a fundar a primeira escola de surdos na Suécia e mais tarde em Portugal.

Assim, várias foram as escolas que se fundaram na Europa e no mundo tendo por base o método de ensino de surdos inaugurado pelo Abade de L’Epée. Seriam algumas dessas escolas que resistiram ao impacto do Congresso de Milão de 1880 que instaurava a obrigatoriedade do ensino da língua oral aos surdos e a proibição da utilização da língua gestual na sua educação.

Foi também este método e o trabalho de L’Epée que william Stokoe utilizou em 1960 na fundamentação teórica da sua obra “The Sign Language Structure” para iniciar as investigações linguísticas da ASL. A obra de L’Epée tem sido ainda referenciada quando se fala em educação bilingue por isso o seu trabalho e a sua influência são ainda hoje um dos pilares que defendem a utilização da língua gestual na educação das crianças surdas em todo o mundo.

6. As disputas com Jacob Rodrigues Pereira

L’Epée no seu tempo foi criticado por outros professores de surdos que defendiam o método oralista. Os seus dois principais opositores foram Samuel Heinicke na Alemanha e no seu próprio país, na sua própria cidade o então famoso Jacob Rodrigues Pereira. O Abade L’Epée chegou a enviar alguma correspondência a Jacob Rodrigues Pereira não tendo nunca obtido qualquer resposta. Deixamos aqui um pequeno excerto de uma dessas cartas:

(...) O meu único objectivo era conseguir que eles pensassem sistematicamente e combinassem as suas ideias.

Penso que isso poderá ser conseguido com gestos representativos reduzidos a um método através do qual construí uma espécie de gramática. O sr. Pereira, o professor de surdos ao qual já me referi e o seu mais hábil discípulo nem ninguém que eu tenha conhecimento foram informados do meu método mas consideraram o projecto que concebi impossível e o que eu estava a tentar realizar obstruía mais o progresso dos meus alunos do que facilitava. Porque este cepticismo ganhou algum apoio público através da reputação do sr. Pereira, entendi que era necessário combater o preconceito contra o meu método de ensino quando fosse publicado, porque acredito que fui enviado pela Providência para olhar pelos infelizes surdos para benefício das gerações actuais e futuras. Por isso, afirmo que o raciocínio destes senhores era inválido e arrisco mesmo a demonstrar que embora o sistema de ensino do sr. Pereira- chamado dactilologiapossa conduzir os surdos a falar, no entanto, é inútil para ensiná-los a pensar. O sr. Pereira referiu no jornal que responderia às minhas alegações tão cedo quanto o seu tempo livre lhe permitisse. No entanto viveu durante vários anos até aceitar o desafio mas nunca respondeu. Na verdade, ele nunca, na minha opinião, teve a verdadeira intenção de o fazer. O seu mais hábil discípulo também se manteve em silêncio. (...)

Conclusões

O Abade de L’Epée é uma figura incontornável na História da Educação de Surdos mundial. Até ao aparecimento da sua escola e do seu método de ensino, a educação de surdos era individualizada apenas acessível às classes sociais mais abastadas. Salvo raras excepções a língua gestual não era utilizada, muitas vezes desconhecida pelos educadores que apenas conheciam a dactilologia utilizada com o objectivo de desenvolver a fala.

Desta forma apenas podemos falar de uma efectiva escola de surdos quando pela acção de L’Epée foi criado um espaço onde várias crianças surdas eram instruídas e educadas colectivamente independentemente da sua classe social. Esse espaço viria a tornar-se o Instituto de Surdos Mudos de Paris. Com L’Epée, passou-se para uma educação colectiva, interactiva. Com L’Epée foi recuperada uma língua, a língua gestual francesa já utilizada pela comunidade surda parisiense e passou a ser utilizada na sua educação. Com L’Epée foi criado um método para o ensino colectivo de surdos tendo como base a língua natural da comunidade. Através do seu método várias foram as crianças e mais tarde adultos surdos que desenvolveram as suas capacidades intelectuais. Foi o seu método, o seu exemplo que viria a opor-se à ostracização da língua gestual na educação de surdos quando do mítico Congresso de Milão.

Foi com base na sua obra que se construíram as fundações e as estruturas da educação bilingue que é hoje defendida em todo o mundo civilizado.

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