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Problematizando o ensino de língua portuguesa na educação de surdos
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Publicado em 2002
Projeto de Iniciação Científica (PIBIC), desenvolvido na Universidade Federal da Paraíba em convênio com o CNPq
Ana Dorziat Barbosa de Mélo
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

O ensino de surdos foi, por longo período, baseado num modelo clínico em que prevaleciam técnicas que visavam o desenvolvimento da expressão oral. Com a valorização da linguagem gestual nas escolas, a língua de sinais passou a ser alvo de estudos e a língua portuguesa a ser tomada de forma diferenciada. Tendo em vista essa realidade, desenvolvemos um estudo junto a professores de surdos, no sentido de buscar problematizar o ensino/aprendizagem da língua portuguesa, de modo a que pudessem ser desenvolvidas maiores reflexões sobre a prática pedagógica nessa área. Os dados mostraram uma vontade dos professores em superarem as próprias trajetórias de aprendizes de língua portuguesa, ligadas a uma visão estruturalista e normativa. Embora apresentando alguns desencontros, no que diz respeito às concepções de língua, houve uma inclinação a ver o ensino de línguas para surdos como uma manifestação cultural, um lugar de encontro de vários discursos e embate de experiências.

I Introdução

Em se tratando da educação de surdos, podemos constatar que a realidade da comunidade surda é bem diferente de muitas idéias fragmentadas citadas sobre o assunto, devido ao fato de retratarem, muitas vezes, um modelo clínico sem se fundamentarem nas questões educacionais propriamente ditas.

Um dos fatores que tem acarretado grande inquietação nos pesquisadores e, sobretudo na comunidade surda é a questão da língua, desde o uso que se tem feito da língua de sinais, à maneira de se trabalhar a língua portuguesa no ensino de surdos, entre outras coisas.

Tendo em vista essa realidade, desenvolvemos um estudo junto a professores de surdos, no sentido de buscar problematizar o ensino/aprendizagem da língua portuguesa, de modo a que pudessem ser desenvolvidas maiores reflexões sobre a prática pedagógica, nessa área, nas escolas de surdos. O ensino da Língua Portuguesa deve ser desenvolvido da mesma forma do dos ouvintes? Como se deu a trajetória dos professores, como aprendizes dessa língua? Como as concepções de linguagem são colocadas pelos professores ao se referirem a sua prática docente? Essas são algumas das questões que nos colocamos frente à problemática do ensino da língua portuguesa para surdos.

II Fundamentação Teórica

1 Concepções de língua e ensino de língua

Nos dias atuais tem se atribuído ao ensino da Língua Portuguesa uma série de “ranços”, no dizer de Geraldi (1997). O referido autor afirma que se torna necessário “reconhecer um fracasso da escola e, no interior desta, do ensino de língua portuguesa tal como vem sendo praticado na quase totalidade de nossas aulas” (p.39).

O professor, de forma geral, tem sido responsabilizado por esse fracasso, sem se considerar as condições de trabalho e vida a que ele é submetido, e, muito menos, a influência de práticas consolidadas de ensino da língua portuguesa, baseadas na metalinguagem, que resultam em desperdício de tempo e esforço, por parte de educadores e educandos, durante o processo escolar.

Geraldi (1997) complementa que é preciso conhecer a diferença de saber língua e analisá-la, sugerindo que no Ensino Fundamental as atividades devem girar em torno do ensino da língua e apenas subsidiariamente se deverá apelar para a metalinguagem.

Para que isso seja possível, faz-se necessário que o professor tenha conhecimento das concepções de língua e tenha clareza de qual dessas concepções ele defende. Assim, ele pode dar as diretrizes para responder as questões que Geraldi (op. cit.) considera prévias quando se trata de ensino: “Para que ensinamos o que ensinamos?, e sua correlata: para que as crianças aprendem o que aprendem?” (p.40).

Para responder a estes “para quês”, se torna imprescindível um estudo mais detalhado sobre as concepções de linguagem, que na visão de Geraldi (op. cit.) são as seguintes: linguagem como a expressão do pensamento; linguagem como instrumento de comunicação; e linguagem como uma forma de interação.

Na concepção de linguagem como expressão do pensamento, Travaglia (1996) diz que existe a noção de que as pessoas não se expressam bem porque não pensam. Isso porque, segundo essa corrente, a expressão se constrói no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas uma tradução. Presume-se que há regras a serem seguidas para a organização lógica do pensamento e, consequentemente, da linguagem. Já na linguagem como instrumento de comunicação, ainda de acordo com Travaglia (op. cit.), a língua é vista como um código, ou melhor, como um conjunto de signos que se combinam segundo regras, e que é capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um receptor. Essa concepção está representada pelo estruturalismo saussuriano e pelo transformacionalismo chomskiniano. Por último, o mesmo autor trata da linguagem como forma de interação, afirmando que nessa concepção a linguagem é tomada como um lugar de interação comunicativa através de efeitos de sentido entre interlocutores. É representada por todas as correntes de estudo da língua, reunidas sob o rótulo de “linguística da enunciação”.

Para cada concepção de linguagem está intimamente ligada a uma concepção de gramática. Para a primeira (linguagem como expressão do pensamento), é necessário estudos da gramática tradicional ou normativa, que dá ênfase ao estudo da sintaxe e morfologia; gramática é nada mais que o “estudo do pensamento”. Quando considera a linguagem como instrumento de comunicação – Código – a gramática passa a ser entendida como um conjunto de regras a serem memorizadas e seguidas. Este tipo de gramática privilegia a língua padrão que é falada pela classe social que domina a sociedade, os que dispõem do poderio político e econômico na sociedade. Ao entender a linguagem como forma de interação, a gramática é vista como um feixe de variações e recursos linguísticos que deve ser usado em função do texto (oral e escrito) que se produz e de seu contexto. Essa concepção possibilita o estudo e o uso de várias formas dialetais por parte de linguistas, professores, alunos, etc.

Segundo Castilho (1998), as duas primeiras concepções de linguagem e de gramática no seu conjunto mostram a língua como um fenômeno homogêneo, como um produto que deve ser examinado independente de suas condições de produção. Já a terceira concepção (de linguagem e gramática) mostra a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis, socialmente motivadas. A língua é, em síntese, uma enunciação, um elenco de processos.

Por fim, Geraldi (1997) acrescenta que a alteração da situação atual do ensino de língua portuguesa não passa apenas por um mudança nas técnicas e nos métodos empregados na sala de aula. Uma diferente concepção de linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas principalmente um “novo conteúdo” de ensino.

Em se tratando de ensino de português para surdos, essa nova metodologia e “novo conteúdo” são ainda mais urgentes, visto que a língua portuguesa deverá ser ensinada como segunda língua a pessoas que não têm o apoio de uma língua oral, mas da língua de sinais (Libras), como 1a língua. Essa forma de bilinguismo será abordada no item a seguir.

2 Bilinguismo: o social em foco

As pessoas surdas, por não ouvirem e por não adquirirem linguagem oral espontaneamente, foram consideradas ineducáveis, sendo alijadas do processo de apropriação do conhecimento escolar e até mesmo do espontâneo, por longo período.

Para solucionar esse problema, a questão da surdez foi abordada na história mais recente da educação de surdos (século XX), até os anos 60, sob forte influência clínica audiológica (Behares, 1993). Diante do fracasso dessas técnicas e do consequente baixo nível de aprendizagem dos surdos, realizaram-se, depois dos anos 60, estudos sobre o tipo de comunicação informal utilizada entre essas pessoas: os gestos. Esses estudos contemplaram, principalmente, o desenvolvimento de crianças surdas, filhas de pais surdos, e empregaram, segundo Behares (1993), uma metodologia estritamente linguística, inserida numa visão cognitivista, em que os mecanismos interativos eram desconsiderados.

Esses estudos contribuíram para a desmistificação da idéia corrente de que os gestos usados pelos surdos eram espontâneos, incapazes, por isso, de transmitir todo tipo de informação, principalmente as de teor abstrato. Até então, os gestos eram considerados apenas, segundo Pereira (1989), como um suporte da comunicação oral. De acordo com essa autora, o gesto só passou a ser objeto linguístico, a ser visto independente da oralidade mas com função equivalente, quando as pesquisas voltaram-se para a forma de comunicação da comunidade de surdos que utilizava os denominados ‘sinais’, o correlato da ‘palavra’ ou ‘item lexical’ das línguas oro-auditivas (Felipe, 1997).

As pesquisas pioneiras em sinais foram realizadas com a Língua Americana de Sinais (ASL), comparando-a com o aspecto organizacional do inglês oral (Pereira, 1989). Entre elas, Pereira (1989) destaca as de Klima e Bellugi, Wilbur, Marcowics e Petitto, as quais revelaram que os sinais apresentavam organização formal nos mesmos níveis de funcionalidade das línguas orais, constituindo uma língua de fato: a língua de sinais.

Diante dessas novas comprovações, os estudiosos do assunto passaram a questionar a forma de encarar o ensino de surdos, dando enfoque à comunicação gestual, com prevalência, num primeiro momento, no aspecto comunicativo (Comunicação Total), e, depois, no social, ao buscar trazer para a discussão o indivíduo surdo e, com ele, tudo o que envolve seu modo de estar no mundo, inclusive sua língua, a língua de sinais.

Por um longo período, essa língua foi tomada como o caminho para a resolução de todos os problemas existentes no ensino de surdos, ocasião em que proliferaram estudos sobre sua constituição, em vários campos de estudo da linguística. Esses estudos apresentaram uma contribuição inicial importante para a ascensão da língua de sinais ao estatuto de língua e permitiram o surgimento de uma nova postura em relação à surdez, respaldadas em explicações mais sociais, embasando o que se costumou chamar de Bilinguismo.

Parece não existir, entre os seguidores dessa corrente, posição contrária à noção de que a língua de sinais é fundamental para o desenvolvimento pleno dos surdos e a língua majoritária (no nosso caso o Português) é importante para viabilizar a inclusão social dessas pessoas. No entanto, se essas questões não forem olhadas de forma mais global, corre-se o risco de, embora aceitando e defendendo a linguagem numa perspectiva mais interacional, continuar defendendo a língua de sinais a partir de outras concepções, que se baseiam no normativo, no cognitivo.

Por isso, urge aprofundar os conhecimentos sobre as relações sociais nas quais se dá o desenvolvimento linguístico. Em outras palavras, é preciso buscar entender as línguas, seja de sinais, seja portuguesa, a partir dos lugares concretos que ocupam quando são materializadas.

3 Português como segunda língua para surdos

Sabe-se que todo cidadão deve ter o direito de participar da vida social, política e econômica da nação e a escola pode ter um papel importante para que ele exerça essa cidadania. Isso não vem se dando de forma satisfatória em nenhum nível e modalidade de ensino, em especial o público, devido a um cem número de fatores.

Ao comparar a situação dos alunos ouvintes com a dos surdos, percebe-se que os segundos encontram-se numa posição bastante inferiorizada, pois, além de sofrerem as mesmas limitações a que são submetidos os ouvintes, é-lhe negada uma educação na sua língua natural (a língua de sinais). Em lugar dela, é oferecida uma língua estranha, no nosso caso o português, na modalidade oral e/ou escrita e, até mesmo, na gestual.

Dessa forma, é difícil vislumbrar um bom aprendizado desses alunos, uma vez que ele se dá basicamente, segundo Vygotski (1993), na interação da criança com o mundo através dos signos. A ausência desses signos é mais limitadora ainda no âmbito da escrita, devido às práticas pedagógicas que preconizam o bom desempenho em linguagem oral como requisito necessário à aprendizagem da linguagem escrita. Embora não haja uma relação direta oralidade – escrita, Vygotski (1993) alerta para a necessidade de entendimento da linguagem escrita como elemento indispensável para a formação das estruturas mentais do ser humano, constituindo-se um dos principais instrumentos de mediação entre os indivíduos e o conhecimento acumulado. Esse elemento faltante ou limitante na vida das pessoas acarreta, pois, perdas incalculáveis.

Segundo Sanchez (1999), entre as coisas que mais preocupam na educação dos surdos é o ensino da língua escrita, já que se supõe todo um entendimento sobre a não ênfase mais na língua oral. Os surdos, assim como grande parte dos ouvintes, não sabem ler bem, não estão aptos a usar a língua escrita para o que ela realmente serve. Para Sanchez (1999), não se tem dado oportunidade também aos ouvintes, embora a visibilidade seja menor com estes, de desenvolverem essa habilidade. A falta de oportunidade está concretizada na forma como a escola tem se colocado, em termos teórico-metodológicos, frente ao ensino de línguas.

Ao que parece tem se tomado a língua como produto acabado ou sistema fechado de normas pré-existentes ao locutor. Não se poderá fazê-lo diferente se não tiver a produção de significações como ancoradouro numa língua natural, ou seja, a língua de sinais deve permear e dar sentidos aos conceitos existentes no mundo, mesmo que a intenção seja o trabalho com produção textual, tendo como modelo a língua portuguesa. Ou seja, a questão bilíngue-bicultural não é apenas retórica na área de surdez, ela é pré-requisito para a apropriação de elementos de diferentes contextos culturais. Portanto, a língua de sinais, como uma primeira língua, é essencial para que o surdo, vendo-se a si mesmo, possa enxergar o outro, o ouvinte, e, enxergando o outro, possa adentrar no mundo da linguagem escrita desse, de forma mais apropriada.

Na ausência da linguagem oral, que funcionaria num primeiro momento, como substrato da linguagem escrita, que só mais tarde ganha autonomia como um sistema simbólico de primeira ordem, a língua de sinais exerce a função de organizadora das idéias dos surdos. Segundo Fernandes (1999), isso termina se refletindo nas estruturas morfossintáticas das atividades escritas dos surdos, tendo como produto estruturas morfossintáticas bem distantes daquelas que são tidas como padrão de normalidade. Essas estruturas são influenciadas, também, pelas estruturas linguísticas desenvolvidas metodologicamente nas escolas.

Sanchez (1999) afirma que o principal obstáculo no ensino-aprendizagem da escrita está em que os professores de surdos conhecem pouco sobre língua escrita e tentam fazer com que os surdos aprendam através de procedimentos que não são válidos nem para os ouvintes. Isso é consequência da falta de oportunidade que têm tido os professores de estudar a língua escrita como objeto de conhecimento, como expressão de uma prática social, como instrumento privilegiado de linguagem para o desenvolvimento cognitivo, concebendo-a apenas como um conteúdo escolar.

Para isso, é essencial o entendimento de que a linguagem, seja oral, sinalizada ou escrita, não se dá em um vácuo social. Ao contrário, a interação linguística se faz em um determinado momento, em um determinado espaço, entre determinadas pessoas. Para desenvolver trabalhos adequados de língua escrita nas escolas de surdos é preciso ir além da língua. Urge buscar entender os surdos na sua totalidade sócio-histórico-cultural, e promover uma ambiente bilíngue-bicultural nas escolas de surdos.

III Metodologia

1 Local

O estudo foi realizado numa escola exclusiva para surdos, localizada no estado da Paraíba. De uma proposta baseada no modelo clínico-terapêutico, nos seus primórdios, a escola buscava, respaldada no incipiente desenvolvimento acadêmico dos surdos e nos estudos mais atuais sobre surdez, implementar uma proposta bilíngue de trabalho.

2 Participantes

Os participantes do estudo foram 10 (dez) professores, que atuavam no ensino de surdos de 3 (três) meses e 20 (vinte) anos. Todos eles possuíam curso superior, como: Pedagogia, Serviço Social e Letras. Um deles tinha especialização. Cinco professores possuíam o Curso de Pedagogia com Habilitação em EDAC (Educação dos Deficientes da Audiocomunicação), realizada na Universidade Federal da Paraíba.

3 Instrumento de coleta de dados

Utilizamos como instrumento de coleta de dados dois roteiros de entrevistas semi-estruturadas. Um visava levantar a trajetória de vida acadêmica dos professores, como aprendizes de língua portuguesa e, o outro tinha como meta conhecer as concepções dos entrevistados sobre língua e ensino de línguas.

4 Procedimentos

Realizamos a primeira parte da entrevista que visava levantar as trajetórias dos professores, como aprendizes de língua portuguesa. As falas dos professores foram registradas em áudio e foi necessário apenas um encontro com cada entrevistado.

Num segundo momento, selecionamos os cinco professores que trabalhavam nas séries iniciais do ensino fundamental, que eram polivalentes ou lecionavam exclusivamente Língua Portuguesa. Em seguida, realizamos com eles a segunda parte da entrevista que objetivava conhecer as suas concepções sobre língua e ensino de línguas.

IV Resultados e Discussão

1 Ensino: diferenças entre surdo e ouvintes

Com base nas entrevistas feitas com os professores, constatamos que, entre os 10 (dez) entrevistados, nove já haviam ensinado a ouvintes e a maioria encontrava diferenças com relação ao ensino de surdos. Desses, cinco se referiram à questão das línguas, principalmente da língua de sinais.

A colocação dos professores, trazendo a língua de sinais como fator diferenciador entre o ensino de surdos e de ouvintes, merece atenção. Não há dúvida de que a língua de sinais é o aspecto mais aparente no ensino de surdos. O uso da língua de sinais é critério básico para esse trabalho, assim como o são as línguas orais no ensino de ouvintes. Ela não é apenas o código adequado para o estabelecimento da comunicação professor-aluno, aluno-aluno, mas é a ferramenta mais importante na assimilação dos significados, na formação de sentido e na consequente estruturação do pensamento para os surdos. Vista dessa forma, a língua de sinais deixa de ser um fim em si mesma para ser a base a partir da qual outras questões estão envolvidas no trabalho pedagógico.

A língua de sinais pode, assim, ser representada como a porta de entrada que dará acesso ao entendimento da cultura de um grupo, fazer o conhecimento chegar a eles de forma mais apropriada e contribuir para que esse conhecimento seja fator de desenvolvimento não apenas individual, mas do grupo, da cultura surda. É necessário pôr um ponto final nas discussões sobre educação de surdos que giram em torno dos aspectos linguísticos isolados e caminhar para uma prática efetiva dessa língua e uma discussão que vá para além desse aspecto, meramente linguístico, considerando as questões epistemológicas do que denota ser surdo, como essa significação se traduz na questão pedagógica de uma escola para surdos e que condições de vida de alunos e de professores estão vinculadas ao fazer pedagógico.

Outras diferenças citadas pelos professores, entre o ensino de ouvintes e de surdos, foram a questão da identificação que o professor de surdos deve ter com o trabalho realizado, o fato de os surdos serem mais interessados, o fascínio existente no ensino de surdos e a rapidez com que os ouvintes aprendem.

2 Trajetória como aprendizes de Língua Portuguesa

2.1 Aspectos marcantes

Dos professores questionados sobre os fatos que marcaram sua trajetória como aprendizes de língua portuguesa, seis entrevistados mencionaram aspectos negativos dessa trajetória, alegando o tradicionalismo no ensino, as dificuldades em aprender regras gramaticais e a falta de um ensino que considerasse a linguagem da comunidade rural. Apenas dois entrevistados se reportaram a aspectos positivos dessa trajetória, ao lembrar o fato de ter tido oportunidade de redigir bastante e outro falou da influência positivas que uma professora exerceu sobre ele. Dois professores não responderam diretamente a questão.
Esse resultado mostra como a língua portuguesa foi veiculada na grande maioria das escolas: de uma maneira muito desvinculada das reais necessidades de um nativo da língua. A persistência em se trabalhar o português de forma estanque, através de um ensino normativo em que prevaleciam regras distanciadas das experiências dos alunos com a língua, tem levado muitos profissionais a terem uma convivência difícil quando se trata de usar o português. E, o que é o mais grave, muitos desses profissionais estão dentro das escolas, reproduzindo um ensino também inadequado, por ser esse, muitas vezes, os únicos modelos a que eles estiveram expostos.

Atualmente, tem-se questionado de forma muito enfática o ensino de uma gramática abstrata e fragmentada, ensinada a partir de exercícios repetitivos de palavras e frases isoladas, centradas na memorização de regras, definições, nomenclaturas e classificações. Com base em críticas a esse tipo de ensino, Silva e Brandão (1999) sugerem ao professor a seleção de conteúdos gramaticais relevantes e adequados à compreensão, interesses e faixa etária dos alunos. Recomendam, ainda, um ensino que não priorize o “certo” e o “errado”, mas que estimule a análise e a reflexão sobre a língua, em situações de uso e como forma de dar qualidade a esse uso.

2.2 Dificuldades no aprendizado

Ao serem questionados se sentiam dificuldades, como alunos, em língua portuguesa, a maioria (6) dos professores disse que tinha dificuldades, relacionadas à produção de textos (3), regras gramaticais (1), ortografia (1) e interpretação de texto (1). Dentre esses, apenas um professor afirmou ter superado a dificuldade explicitada, dois disseram não a ter superado e três colocaram que superaram a dificuldade em parte. Os quatro entrevistados restantes afirmaram não ter tido dificuldade em língua portuguesa.

Como foi mencionado, as maiores dificuldades dos professores estavam centradas nas produções textuais, sem falar em questões com as quais o ensino de língua portuguesa mais se preocupou, como regras gramaticais e ortografia. O fato é que tais regras não partiram de uma vivência adequada com a língua, de forma ampla e contextualizada, mas de uma abordagem dicotomizada que colocava, de um lado, as regras que deveriam ser assimiladas, para, de outro, trabalhar as produções escritas. Nessa perspectiva, tanto a leitura quanto a escrita eram secundarizadas, ficando ambas subordinadas ao ensino puramente normativo da língua. Isso pode ser constatado pela pouca experiência citada pelos professores nessas duas habilidades.

Segundo Silva e Brandão (1999), atividades diferentes das que os professores vivenciaram como aprendizes da língua não parecem ser tão simples de serem postas em prática. Planejar situações didáticas que sigam essa concepção de gramática é, ainda hoje, visto como algo novo e com poucas referências concretas sobre como encaminhar um trabalho dessa natureza em sala de aula. Embora entendamos que essas dificuldades existem, é necessário darmos início a um processo de reflexão que auxilie o professor a reproduzir menos na área de ensino de língua portuguesa, para assumir uma postura mais crítico-reflexiva.

3 Experiência docente em língua portuguesa

3.1 Dificuldades frente ao ensino para surdos

Dos cinco entrevistados questionados a respeito das dificuldades presentes no ensino de língua portuguesa para surdo, três ressaltaram a dificuldade de tradução, devido a diferenças presentes nas duas línguas – portuguesa e de sinais; além disso, a necessidade de o próprio surdo conhecer a sua língua. Os outros dois afirmaram que é preciso ter mais conhecimento da língua de sinais, para não passar um português sinalizado.

Com a obtenção desses dados, observamos a necessidade de o professor ouvinte possuir uma concepção clara do que seja língua, principalmente no que diz respeito à língua de sinais, para que possa fazer uma ponte com a língua portuguesa. Embora cada língua possua sua estrutura, todas elas são estruturadas com igual complexibilidade. Além disso, possuem variação, isto é, não existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma. Por isso, cabe ao professor ouvinte ter mais domínio tanto da sua língua como da língua de sinais; para isso, faz-se necessário o convívio e a participação diária com os surdos, compartilhando sua cultura e variação linguística. O que, muitas vezes, limita essa iniciativa é a dificuldade de muitos surdos que ainda não estão vinculados a sua própria cultura. Isso é consequência de posturas ouvintistas (Skliar, 1999), que adotavam a filosofia clínica com o objetivo de integrar o surdo à sociedade geral, forçando um aprendizado artificial da língua oral, e com ela, os padrões culturais da comunidade ouvinte.

3.2 Sugestões para ensino de língua portuguesa para surdos

Ao perguntar aos professores como deveria ser o ensino de português para os surdos, um deles referiu-se à necessidade de o próprio educador ter uma orientação adequada. Outros dois professores disseram que ainda não sabiam como ensinar ao surdo e estavam à procura de respostas. Um deles afirmou acreditar na possibilidade de comparar o ensino de português para os surdos com o ensino de uma língua estrangeira. Um outro entrevistado levantou a sugestão de trabalhar mais com produção textual, ressaltando as diferenças existentes entre as duas línguas. Falou também da atenção que o professor deve dar no momento da tradução, para evitar trazer estruturas que existem no português para a LIBRAS, prejudicando a compreensão dos alunos surdos. Um professor não respondeu diretamente a questão.

Como pode ser constatado, existe a necessidade de os professores terem uma orientação sobre o assunto, como disse um professor, pois sem a mesma corre-se o risco de transitar entre diversas correntes teóricas utilizando-se, ecleticamente, de materiais didáticos ou atividades de cunho estruturalista, construtivistas, etc; fazendo da prática uma “colcha de retalhos” e da aprendizagem um processo questionável, quanto à sua significância para o aluno enquanto sujeito histórico.

V Considerações Finais

Ao voltarmos as atenções para o ensino de Língua Portuguesa para surdos, tomando como base os discursos dos professores, aqui entrevistados, tivemos a oportunidade, mesmo de forma muito preliminar, de notar a vontade de superação de uma visão de língua portuguesa estruturalista, normativa, que marcou suas trajetórias como aprendizes dessa língua. No entanto, pareceu persistir a noção de língua como um instrumento de comunicação, devido às peculiaridades do ensino nessa área, que sempre teve uma preocupação extremada com o estabelecimento da comunicação entre o professor ouvinte e o aluno surdo. No nosso ver, isso dificulta entender pensamento e linguagem de forma indissociável, pensando a língua e seu ensino como algo com sentido, que nasce no cruzamento das tensões históricas, das discussões ideológicas, dos encontros e desencontros individuais (Citelli, 1991).

Acreditamos que o estabelecimento das relações dialógicas na educação de surdos deve ser concebido para além de uma simples troca comunicativa. Para isso, a língua de sinais deverá ser a base desse processo. Se isso não ocorrer, a língua portuguesa para a comunidade surda se tornará inócua. Pareceu, em algumas falas, haver uma inclinação a ver o ensino de línguas para surdos como uma manifestação cultural, um lugar de encontro de vários discursos e embate de experiências, em que falas entram em choque com outras falas, formando uma rede que muitas vezes dificulta a localização das matrizes discursivas. Sobre isso, afirma Citelli (1991: 15): “o monólogo é algo anacrônico no movimento concreto da linguagem”.

Constatamos, também, alguns desencontros, no que diz respeito às concepções de língua, mostrando o quanto é complexo o processo ensino-aprendizagem. Ele é decorrente não só das teorias, vistas de forma racional, mas faz parte de uma cultura escolar que, por sua vez, reflete as questões macro estruturais. Dessa forma, as contradições além de fazer parte da dinâmica social, são também integrantes do próprio processo de crescimento do educador.

Ao pensar o ensino de língua a partir de uma referência interacional, cabe ao professor propiciar ao aprendiz, enquanto sujeito histórico, momentos de construção do seu próprio discurso; ressaltando o aspecto dialógico e o trabalho com o discurso do próprio alunado, no meio dos quais estarão o dos alunos que vivem experiências culturais diferenciadas, que falam sobre o mundo a partir de lugares múltiplos, que operam, no caso dos surdos, com outra língua. Dessa forma, o ensino de língua terá que refletir, necessariamente, a dinâmica do confronto inter e intradiscursivo e não apenas considerar a variável linearmente codificada pela gramática normativa como única a ser valorizada e elogiada.

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