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Ana Claudia Balieiro Lodi
Ana Claudia Balieiro Lodi
Professora e Investigadora
Educação bilíngue para surdos e inclusão segundo a Política Nacional de Educação Especial e o Decreto nº 5.626/05
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Publicado em 2013
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 49-63
Ana Claudia Balieiro Lodi
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Resumo

Este artigo foi desenvolvido com o objetivo de desvendar os diferentes sentidos de educação bilíngue e de inclusão na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto nº 5.626/05 à luz da teoria discursivo-enunciativa de Bakhtin. Enquanto a Política de Educação Especial defende a inclusão dos alunos surdos no sistema regular de ensino, as comunidades surdas e pesquisadores da área, considerando a diferença linguística desse grupo social e o disposto no Decreto nº 5.626/05, advogam que a educação de surdos constitui-se como um campo específico do conhecimento, distanciando-se da educação especial. Observou-se que o Decreto compreende educação bilíngue para surdos como uma questão social que envolve a língua brasileira de sinais (Libras) e a língua portuguesa, em uma relação intrínseca com os aspectos culturais determinantes e determinados por cada língua; a Política, por sua vez, reduz educação bilíngue à presença de duas línguas no interior da escola sem propiciar que cada uma assuma seu lugar de pertinência para os grupos que as utilizam, mantendo a hegemonia do português nos processos educacionais. Tal concepção limita a transformação proposta para a educação de surdos apenas ao plano discursivo e restringe a inclusão à escola, impossibilitando uma ampliação desse conceito a todas as esferas sociais, conforme defendido pelo Decreto. Essa diferença entre os sentidos dos conceitos de educação bilíngue e de inclusão nos dois documentos tem alimentado velhas tensões e inviabilizado o diálogo entre as proposições da Política de Educação Especial e do Decreto nº 5.626/05.

A Política Nacional de Educação busca instituir sistemas educacionais que consideram igualdade e diferença como valores indissociáveis e constitutivos de nossa sociedade. Nesse sentido, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva propõe o delineamento de ações educacionais que visam superar a lógica da exclusão no ambiente escolar e na sociedade de forma geral. Para efetivar tal propósito, defende a matrícula dos alunos, independentemente de sua diferença, no sistema regular de ensino, organizado para assegurar condições adequadas para um processo educacional igualitário a todos nos diferentes níveis de ensino. Há, portanto, a necessidade de se repensar a organização das escolas de maneira que os alunos, sem exceção, tenham suas especificidades atendidas (BRASIL, 2008).

Nesse contexto insere-se a educação de surdos, compreendida como responsabilidade da educação especial, apesar das discussões iniciadas na década de 1990, que indicam que o especial dessa educação refere-se unicamente à diferença linguística e sociocultural existente entre surdos e ouvintes (SKLIAR, 1999). Essa antiga tensão, longe de ser enfrentada, ecoa nos documentos oficiais e mantém-se como tema de debates e embates entre os que defendem a educação para surdos como um campo específico de conhecimento e aqueles que a consideram como domínio da educação especial. Entende-se, assim, o porquê de ter sido esse o ponto de maior tensão na discussão do Eixo VI - Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade, na Conferência Nacional de Educação (Conae), em 2010 (LAPLANE; PRIETO, 2010).

Observa-se, no entanto, que essa polarização no que diz respeito à educação de surdos é decorrente de diferenças nas significações atribuídas aos conceitos de educação bilíngue para surdos e de inclusão, presentes na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto nº 5.626/05, documento que conta com o apoio das comunidades surdas brasileiras (FENEIS, 2011a, 2011b, 2011c) e de pesquisadores da área da educação de surdos. Na perspectiva de desvendar os sentidos desses conceitos na constituição dos dois documentos à luz da teoria discursivo-enunciativa de Bakhtin, foi desenvolvido este artigo.

Para o tratamento do tema, inicialmente, será realizada uma breve contextualização histórica da referida Política de Educação Especial e do Decreto nº 5.626/05, considerando-se que, embora as discussões que deram origem a ambos os documentos sejam contemporâneas, os movimentos sociais que as subsidiaram partiram de princípios político-ideológicos distintos. Em seguida, serão analisados os conceitos de educação bilíngue para surdos e de inclusão presentes nos dois documentos, revelando, na teia interdiscursiva que os constitui, o porquê de o Governo Federal e as comunidades surdas brasileiras defenderem propostas educacionais para surdos tão distantes.

Breve contextualização histórica dos documentos

Os movimentos sociais em nosso país que impulsionaram a redação e a aprovação da Política de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva e do Decreto nº 5.626/05 datam da década de 1990. A Política - tendo como base os princípios da democratização da educação, que a garantem como um direito de todos e um dever do Estado - teve influência de diversos documentos internacionais e nacionais (BRASIL, 1988, 1994, 2001; UNESCO, 1990; entre outros). O Decreto, motivado pelos movimentos das comunidades surdas e por pesquisadores da área da educação de surdos, foi promulgado após o reconhecimento legal da língua brasileira de sinais (Libras) como meio de comunicação e expressão das comunidades surdas brasileiras (BRASIL, 2002), nove anos após o início da tramitação da matéria no Senado Federal. Para a redação dos documentos, buscou-se o diálogo com diferentes segmentos sociais, sendo a academia quem mais participou desse processo; as comunidades surdas puderam dar sua voz 1 apenas nas discussões que antecederam a redação final do Decreto, fato que merece ser destacado.

A Política Nacional de Educação Especial foi construída a partir de um discurso que tem como objetivo valorizar os processos inclusivos dos alunos sob sua responsabilidade "a partir da visão dos direitos humanos e do conceito de cidadania fundamentado no reconhecimento das diferenças e na participação [social] dos sujeitos" (BRASIL, 2008, p. 1). Para a garantia desse processo, enfatiza-se a necessidade de uma reorganização estrutural e cultural dos sistemas de ensino a fim de que estes se tornem inclusivos, de forma a assegurar o atendimento das especificidades educacionais de todos os alunos.

Na apresentação da Política Nacional de Educação Especial, foi tecido um discurso que buscou marcar o (re)posicionamento desse documento em relação aos princípios educacionais presentes na história da educação especial, opondo-se à compreensão dessa modalidade de ensino como algo paralelo à educação regular, desenvolvido em instituições especializadas ou em classes especiais, construído a partir de um conjunto de práticas que enfatizavam a deficiência em detrimento da dimensão pedagógica, e organizado a partir de currículos reduzidos e facilitadores. Para a proposição do novo paradigma educacional, o documento entende que a educação especial deve integrar a proposta pedagógica da escola, complementando ou suplementando as práticas e os conteúdos desenvolvidos no ensino regular, de forma a possibilitar um currículo comum a todos, que contemple a diversidade e as necessidades específicas dos alunos.

Ao resgatar a compreensão da educação especial como uma modalidade transversal a todos os níveis de ensino, a atual Política procurou rever os princípios presentes no Decreto nº 3.298/99, em especial aqueles que previam a matrícula na rede regular de ensino apenas dos alunos considerados capazes de se integrar ao sistema (Artigo 24, Inciso I) e o oferecimento dos serviços de educação especial principalmente para os níveis de ensino considerados obrigatórios (Artigo 24, Inciso VI, § 2º). Esse novo olhar culminou na proposição, pela então Secretaria de Educação Especial (SEESP) 2 do Ministério da Educação (MEC), do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, cujo objetivo foi promover a formação de gestores e educadores para a transformação dos sistemas educacionais em inclusivos, garantindo-se, assim, o direito dos alunos com necessidades educacionais especiais de acesso e permanência com qualidade, nas escolas regulares (BRASIL, 2005, p. 9).

No entanto, apesar dos esforços da SEESP/MEC na busca de superar a separação entre a educação especial e a regular, o Governo Federal reconheceu, em 2007, que poucas transformações haviam de fato ocorrido com o intuito de garantir a educação inclusiva, o que contrariava a concepção de transversalidade da educação especial, "limitando o cumprimento do princípio institucional que prevê a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola e a continuidade nos níveis mais elevados de ensino" (BRASIL, 2007a, p. 9). Assim, o Governo reafirmou, por meio do Decreto nº 6.094/07, a garantia de acesso e permanência dos alunos com necessidades educacionais especiais nas classes comuns do ensino regular, fortalecendo, desse modo, a inclusão nas escolas públicas (BRASIL, 2007b).

Nesse contexto, foi instituído um grupo de trabalho com o objetivo de "rever e sistematizar a Política Nacional de Educação Especial" (BRASIL, 2007c, p. 1). Tal grupo, constituído pela equipe gestora da SEESP/MEC e por nove docentes de diferentes instituições públicas de educação superior, procurou, por intermédio de fóruns educacionais, debater a "inclusão no país, as conquistas do movimento das pessoas com deficiência, bem como os avanços dos marcos legais e educacionais" (BAPTISTA et al., 2008, p. 18). O grupo reconheceu as dificuldades que os sistemas de ensino vêm enfrentando em relação à existência de práticas discriminatórias e buscou, pela educação inclusiva, criar alternativas para superá-las. Para os idealizadores do documento, a nova Política é concebida como um avanço e as práticas inclusivas são vistas como desafiadoras, pois provocam as escolas a repensarem sua própria concepção de educação - incluindo sua organização e as práticas pedagógicas - de forma a respeitar todas as diferenças existentes. No entanto, eles reconhecem que, para a real implantação dessa proposta, muitas barreiras ainda precisam ser rompidas e, por isso, o sistema deve trabalhar na direção de garantir condições adequadas de acessibilidade e de formação dos educadores, a fim de que a educação especial torne-se parte integrante da escola (BAPTISTA et al. 2008).

Enquanto o texto da Política de Educação Especial visa instituir objetivos e traçar diretrizes que deem conta da enorme diversidade que constitui o alunado brasileiro, o texto do Decreto nº 5.626/05 dispõe sobre os processos educacionais específicos das pessoas surdas. Enfatiza a necessidade de implantação da educação bilíngue para esses alunos e, a fim de que essa proposta seja efetivada, estabelece como deve ser a formação dos profissionais para atuarem junto a esses estudantes. Essa cisão entre as particularidades dos alunos surdos e aquelas dos demais estudantes ouvintes (com ou sem outras diferenças) carrega uma marca histórica de luta e conquista dos direitos linguísticos dos surdos com vistas à inclusão social, deslocando essa educação das discussões gerais sobre a especial e constituindo-a como uma área específica de saber.

Os conteúdos dispostos no Decreto nº 5.626/05, em termos temporais, começaram a ser discutidos em período muito próximo ao de quando as questões referentes à educação inclusiva ganharam destaque em nosso país. As primeiras discussões relativas ao reconhecimento e à legalização da língua de sinais e seu uso nos espaços educacionais tiveram início no ano de 1996, a partir da realização da Câmara Técnica O Surdo e a Língua de Sinais (BRASIL, 1996), promovida pela Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), vinculada à Secretaria dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça. 3 Participaram da Câmara Técnica representantes de universidades públicas e privadas do Brasil, estabelecimentos de ensino para surdos, instituições voltadas ao desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre a Libras e representantes da Federação Nacional de Educação e Integração do Surdo (Feneis), por meio dos quais as comunidades surdas puderam ter voz em todas as discussões realizadas.

A Câmara Técnica caracterizou-se como um fórum democrático que teve como objetivo principal subsidiar as discussões referentes ao Projeto de Lei nº 131/96 em tramitação no Senado Federal, que dispunha sobre o reconhecimento da Libras. Após quatro dias de intensos trabalhos, traçou-se, no documento final, o contexto em que as pessoas surdas viviam e apresentou-se a necessidade de legalização da Libras, a fim de ser possível a participação social dos membros das comunidades surdas como cidadãos brasileiros. Foram apresentados aspectos linguísticos da Libras, caracterizados seus usuários e discutida a formação dos profissionais tradutores e intérpretes de línguas de sinais, elencando os conhecimentos necessários para essa prática. Apontou-se, ainda, a necessidade de inclusão da Libras nos currículos de formação dos profissionais que atendem e trabalham diretamente com a pessoa surda (BRASIL, 1996).

O documento final serviu de base para as discussões do Projeto de Lei nº 131/96 nas Comissões Técnicas do Senado Federal e, após quase seis anos em tramitação, culminou na Lei nº 10.436/02. Em dezembro de 2005 foi sancionado o Decreto nº 5.626, que regulamenta essa Lei e traz muitos aspectos constantes no documento elaborado na Câmara Técnica de 1996.

Os sentidos do conceito de educação bilíngue para surdos

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva compreende que cabem à educação especial os processos educacionais dos alunos surdos. Assim, na apresentação dos marcos históricos dessa educação, faz referência à Lei nº 10.436/02 e ao Decreto nº 5.626/05, destacando, desses documentos, o reconhecimento legal da Libras; a inclusão, nos currículos dos cursos de formação de professores e de fonoaudiologia, de uma disciplina voltada ao ensino dessa língua; a formação e a certificação dos profissionais envolvidos nos processos escolares de surdos (professores, instrutores e tradutores/intérpretes); o ensino da língua portuguesa como segunda língua; e a necessidade da organização do sistema de forma a contemplar a educação bilíngue no ensino regular. O documento traça como diretrizes para essa educação:

Para o ingresso dos alunos surdos nas escolas comuns, a educação bilíngüe - Língua Portuguesa/Libras desenvolve o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para alunos surdos, os serviços de tradutor/intérprete de Libras e Língua Portuguesa e o ensino da Libras para os demais alunos da escola. (BRASIL, 2008, p. 11)

Uma leitura isolada de tais orientações sugere que elas tratam dos mesmos princípios educacionais garantidos pelo Decreto nº 5.626/05; no entanto, considerando-se que esses enunciados não podem ser entendidos se desvinculados do todo textual, da situação social que os engendra e dos demais textos com que dialogam, pode-se reconhecer diferenças significativas nos sentidos que os constituem.

O Decreto nº 5.626/05, em diálogo com as reivindicações das comunidades surdas brasileiras (FENEIS, 1999), defende a educação bilíngue, definindo-a, bem como os espaços onde ela deve ser implantada, nos seguintes termos:

São denominadas escolas ou classes de educação bilíngüe aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo. (BRASIL, 2005, Artigo 22, §1º)

Contrariamente à Política, que prevê uma mesma organização educacional para todos os alunos surdos, há no Decreto a preocupação em diferenciar os anos iniciais de escolarização dos finais, respeitando, assim, o desenvolvimento das crianças, as especificidades nos processos de ensino-aprendizagem e a formação necessária para os professores.

O Decreto dispõe que, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a educação bilíngue deva ser desenvolvida por intermédio de professores bilíngues. Depreende-se assim que os espaços previstos para a escolarização inicial devam ser organizados de forma que a Libras seja a língua de interlocução entre professores e alunos, logo a língua de instrução, responsável por mediar os processos escolares (por isso a necessidade de os professores serem bilíngues), já que a linguagem escrita da língua portuguesa não pode, por sua materialidade, ser utilizada na relação imediata entre professor-aluno durante o processo de ensino-aprendizagem. A presença da escrita do português nos processos educacionais é decorrente da organização pedagógica, na medida em que as atividades, os textos complementares à sala de aula e os livros didáticos indicados para leitura são escritos em português, o que lhe garante também status de língua de instrução. Dessa forma, o desenvolvimento de linguagem/apropriação da Libras pelos alunos surdos nos primeiros anos escolares é assegurado e, por conseguinte, garante-se uma sólida base educacional, uma vez que esta é desenvolvida em uma língua acessível aos alunos. Tal processo abre a possibilidade de se pensar outra organização para os anos finais do ensino fundamental, o ensino médio e a educação profissional.

No que se refere a esses níveis de ensino, a educação bilíngue pode ser desenvolvida por meio de "docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade lingüística dos alunos surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras - Língua Portuguesa" (BRASIL, 2005, Artigo 22, Inciso II). Embora defenda que a educação de surdos possa continuar sendo realizada em escolas bilíngues, o Decreto não exclui a possibilidade de ela ser desenvolvida em escolas da rede regular de ensino, desde que haja professores com o perfil descrito, responsabilizando os tradutores e intérpretes de Libras/língua portuguesa por "viabilizar o acesso dos alunos aos conhecimentos e conteúdos curriculares, em todas as atividades didático-pedagógicas" (Artigo 21, §1º, Inciso II) e "no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades-fim da instituição de ensino" (Artigo 21, §1º, Inciso III). Nessa definição, o Decreto reitera o posicionamento antes assumido, de que a função de tal profissional não pode ser confundida com a do professor docente (Artigo 14, §2º).

Na significação dada à educação bilíngue para surdos pelo Decreto, observa-se que a Libras assume papel central, fato que demanda "mecanismos alternativos para a avaliação de conhecimentos expressos em Libras, desde que devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos e tecnológicos" (Artigo 14, §1º, Inciso VII). A linguagem escrita da língua portuguesa, compreendida e trabalhada nos espaços escolares como segunda língua, deve ser ensinada também como conteúdo de complementação curricular (Artigo 15), requerendo mecanismos de avaliação

coerentes com aprendizado de segunda língua, na correção das provas escritas, valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade linguística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa. (Artigo 14, §1º, Inciso VI)

Embora o direito dos alunos surdos à educação bilíngue seja também reconhecido no documento da Política de Educação Especial, tal educação é caracterizada como "o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais" (BRASIL, 2008, p. 11), além de haver o ensino da língua portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para os alunos surdos. Assim, de forma contrária ao disposto no Decreto, a Política, ao orientar sobre a educação de alunos surdos, não deixa claro qual língua deverá ser utilizada pelo professor nas salas de aula inclusivas (língua portuguesa ou Libras), desconsiderando o fato de ser impossível o uso de ambas concomitantemente. Infere-se, pelo discurso utilizado, que a língua portuguesa em sua modalidade oral seja aquela utilizada pelo professor, a língua de interlocução nas salas de aula, logo aquela responsável pela mediação dos processos de ensino e de aprendizagem dos alunos.

Essa leitura é corroborada pelo fato de estar previsto o serviço de tradutores e intérpretes de Libras/língua portuguesa para todos os níveis educacionais, sem diferenciação dos processos específicos relacionados ao período de desenvolvimento de linguagem em Libras pelos alunos. Desconsidera-se, ainda, que durante os anos em que as crianças frequentam a educação infantil, elas estão em processo de apropriação de sua primeira língua (Libras), período que, no caso da maioria das crianças surdas, por serem elas filhas de ouvintes, pode ser estendido para os anos iniciais do ensino fundamental. A questão sobre como possibilitar esse processo em Libras por meio de tradutores e intérpretes de Libras/língua portuguesa e/ou por intermédio de professores que não são usuários da Libras (e se forem, não podem tê-la como língua de instrução em um ambiente em que participam alunos surdos e ouvintes) é um aspecto não abordado pelo documento.

Entende-se, desse modo, que a presença da Libras nos espaços de sala de aula é definida como sendo de responsabilidade dos tradutores e intérpretes da língua, cuja função mostra-se indefinida no documento e mesclada com a de outros profissionais de apoio educacional:

Cabe aos sistemas de ensino, ao organizar a educação especial na perspectiva da educação inclusiva, disponibilizar as funções de instrutor, tradutor/intérprete de Libras e guia-intérprete, bem como de monitor ou cuidador dos alunos com necessidade de apoio nas atividades de higiene, alimentação, locomoção, entre outras, que exijam auxílio constante no cotidiano escolar. (BRASIL, 2008, p. 11)

A partir do discurso que constitui a Política, apreende-se que a relação professor-aluno e, portanto, a construção dos conhecimentos escolares pelos alunos no período regular de escolarização ganham menor importância, já que os processos envolvendo a Libras (língua que possibilitaria a participação e a aprendizagem dos alunos surdos) acabam sendo de responsabilidade dos tradutores e intérpretes (com papel e formação não definidos), e seu uso como (possível) língua de instrução é deslocado para os espaços de atendimento educacional especializado (AEE).

No que diz respeito a esse atendimento, contrariamente ao disposto no Decreto nº 5.626/05, garante-se na Política que seu desenvolvimento ocorra "tanto na modalidade oral e escrita quanto na língua de sinais" (BRASIL, 2008, p. 11). O documento não discute como realizar os processos educacionais na linguagem oral quando se trata de alunos surdos, deixando implícita a possibilidade de essa linguagem ser também objeto de atenção no interior das escolas. Soma-se a isso a formação prevista para os profissionais responsáveis pelo AEE: "Para atuar na educação especial, o professor deve ter como base da sua formação, inicial e continuada, conhecimentos gerais para o exercício da docência e conhecimentos específicos da área" (BRASIL, 2008, p. 11), entre eles aqueles relacionados ao ensino de Libras. No entanto, não se explicita a forma como esse ensino é compreendido, nem quais são os conhecimentos da língua necessários aos profissionais. Pode-se observar, ainda, uma incoerência no texto da Política, pois não se discute como garantir a aprendizagem das crianças surdas em Libras, sendo que essa língua ainda deve ser ensinada (logo, não adquirida como primeira língua) nos espaços do AEE aos alunos surdos.

Compreende-se, assim, que a Libras adquire, no texto da Política de Educação Especial, caráter instrumental, distanciando-se de seu status linguístico, o que justifica a previsão de que o AEE ocorra em língua portuguesa (oral e escrita) e em Libras. Reconhece--se, pelo discurso tecido no documento, um movimento muito próximo ao vivido nas décadas de 1960 e 1970, quando se propôs o uso de métodos comunicativos artificiais para a comunicação e para os processos educacionais de surdos - sistemas sinalizados. Nesse movimento, havia a negação das línguas de sinais de forma velada, permitindo e, discursivamente, aceitando sua presença, ao mesmo tempo em que, na prática, elas eras descaracterizadas e assimiladas pela gramática da língua majoritária (LODI, 2005). Dessa forma, a língua de sinais era submetida a compartilhar, com a linguagem oral, os mesmos espaços discursivos, e os sinais eram tratados como instrumento para o desenvolvimento daquela língua.

Assim, as relações dialógicas constitutivas da linguagem, sua natureza heterogênea e polissêmica, os diversos discursos e linguagens sociais que circulavam nos processos enunciativos, foram mantidos, apenas, na linguagem oral. Os sinais a ela subordinados acabaram sendo tratados, nos termos bakhtinianos, em sua sinalidade, devendo ser reconhecidos e assimilados sem qualquer possibilidade de sentido que não aquele determinado pela linguagem oral; não se constituíram como signos verbais. Este apagamento das línguas de sinais serviu, mais uma vez, para a manutenção da ideologia lingüística dominante. (LODI, 2005, p. 418)

Tais reflexões são corroboradas pelo fato de, na Política, o profissional especializado não precisar, necessariamente, ser fluente em Libras. Desse modo, reitera-se a leitura realizada anteriormente, considerando-se que, para o processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua (L2), é necessário que o professor tenha formação específica para essa prática e domine os processos discursivos e enunciativos de ambas as línguas, pois, conforme discutiu Bakhtin (1999), a aprendizagem de uma língua estrangeira (L2) tem na primeira língua (L1) a base para a compreensão e a significação dos processos socioculturais, históricos e ideológicos que perpassam a segunda. O autor discute, ainda, que o contato linguístico em jogo na aprendizagem de uma segunda língua não pode ser compreendido como sendo um campo de convivência pacífica, pois a palavra em língua estrangeira transporta consigo forças e estruturas distintas daquelas subjacentes à L1.

Negar esse processo implica não considerar a palavra estrangeira como signo linguístico e, portanto, ideológico. Por esse motivo, Bakhtin (1999) argumenta que qualquer ensino de língua deve considerar sua dinâmica dialógica, a língua viva; por isso, o ensino eficaz de uma língua estrangeira deve levar o aprendiz a vivenciá-la por meio de sua inserção no contexto de produção e em situações concretas de enunciação, ou seja, a palavra estrangeira deve ser introduzida na vida do aprendiz a partir dos diversos contextos nos quais ela figure, estando associada, desse modo, aos fatores da mutabilidade contextual e da diferença. Para tanto, os sentidos construídos em L1 são determinantes dos processos de aprendizagem da L2, princípio que torna possível uma reação, de aceitação ou oposição, à palavra estrangeira, num processo vivo e dinâmico de intercâmbio de conhecimentos e de embates ideológicos.

Nessa mesma direção, Revuz (1998) discute que aprender uma segunda língua é defrontar-se com expressões, com palavras que carecem de sedimentação, pois trazem em si valores socioculturais diversos daqueles constitutivos da primeira língua. Por esse motivo,

a aprendizagem de línguas estrangeiras esbarra na dificuldade que há para cada um de nós, não somente de aceitar a diferença mas de explorá-la, de fazê-la sua, admitindo a possibilidade de despertar os jogos complexos de sua própria diferença interna, da não coincidência de si consigo, de si com os outros, de aquilo que se diz com aquilo que se desejaria dizer. (p. 230)

Superar tal dificuldade implica possibilitar ao aprendiz o sentimento de estar diante de outra cultura, de outra comunidade linguística que lhe está acolhendo, e, portanto, experimentar um deslocamento em relação à sua comunidade de origem.

Nesse sentido, a formação de professores para o ensino de línguas deveria constituir-se como tema central nos documentos. No Decreto nº 5.626/05, encontra-se um capítulo dedicado a esse processo, em particular àquele relacionado à formação do professor de Libras, posta em diálogo com a formação necessária para o ensino do português como segunda língua. No que diz respeito ao ensino de Libras, o documento, uma vez mais, relaciona essa formação à atuação nos diferentes níveis educacionais e recomenda que pessoas surdas tenham prioridade em todos os processos formativos, visando garantir, assim, que a apropriação dessa língua pelos alunos surdos ou sua aprendizagem por ouvintes, seja realizada por meio de seus usuários.

Art. 4º: A formação de docentes para o ensino de Libras nas séries finais do ensino fundamental, no ensino médio e na educação superior deve ser realizada em nível superior, em curso de graduação de licenciatura plena em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua.

[...]

Art. 5º: A formação de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental deve ser realizada em curso de Pedagogia ou curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa escrita tenham constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngüe. (BRASIL, 2005)

Desse modo, observa-se que, segundo o Decreto, o professor formado para atuar em Libras com alunos surdos deve ter também formação específica para o ensino da língua portuguesa como segunda língua, o que deve ser objetivado por meio da inclusão de uma disciplina curricular específica sobre a temática nos cursos de formação de professores para os anos iniciais de escolarização e nas licenciaturas em Letras - língua portuguesa. O documento estabelece um diálogo no interior de seu próprio texto, de forma a assegurar o direito dos estudantes surdos a uma educação que reconheça a Libras como a L1 dos alunos e o português como L2, fato negligenciado, conforme já apontado, na prática proposta no documento da Política.

Os aspectos analisados neste artigo até o momento apontam para a existência de uma diferença significativa nos sentidos de educação bilíngue para surdos na constituição dos textos da Política Nacional de Educação Especial e do Decreto nº 5.626/05. Enquanto neste último documento a Libras adquire papel central em toda a educação das pessoas surdas e o português, em sua modalidade escrita, é tratado como segunda língua, a Política desloca a Libras de seu status de primeira língua para as pessoas surdas, marcando a hegemonia da língua portuguesa durante todo o processo educacional.

Questiona-se, assim, o quanto o discurso da Política distancia-se do modelo que constituiu, historicamente, as práticas da educação especial em relação aos surdos, ao se reconhecer em tal discurso a manutenção, mesmo que velada, de uma organização educacional que perpetua a ideologia dominante de apagamento da diferença linguístico-social e a imposição da língua portuguesa nos processos educacionais de tais alunos. Nessa perspectiva, a significação de educação bilíngue para surdos reduz-se ao seu sentido estrito - presença e convivência pacífica de duas línguas no interior da escola -, sem haver, necessariamente, um trabalho que viabilize que cada língua assuma seu lugar de pertinência para os grupos que a utilizam, pois apenas o deslocamento discursivo de reconhecimento da Libras não é, por si só, suficiente para alterar os princípios que sustentam a ideologia que perpassa as organizações sociais/escolares, as quais promovem a manutenção da Libras e do grupo que a utiliza em lugar subalterno ao dos falantes da língua portuguesa.

Como decorrência, as decisões educacionais relativas aos surdos continuam sob responsabilidade apenas dos ouvintes, e todas as reivindicações realizadas pelas comunidades surdas são ignoradas ou descaracterizadas.

Essa educação é compreendida de forma inversa pelo Decreto, que, em um processo de ressignificação e distanciamento etimológico da palavra bilíngue, transforma tal conceito em novo signo verbal, cujo tema propicia a construção de sentidos que considerem, mais do que um problema relativo a duas línguas, questões sociais envolvendo "instrumentos lingüísticos, formas de ver o mundo, organização comunitária e conteúdos culturais" (SÁ, 1998, p. 186). A Libras passa a ser privilegiada como única capaz de garantir a participação educacional/social dos surdos em todas as esferas de atividade.

As concepções de educação bilíngue para surdos nos dois documentos determinam, portanto, significações distintas também ao conceito de inclusão.

Os sentidos de inclusão

Para a Política de Educação Especial, o movimento de defesa à inclusão é compreendido como "uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação" (BRASIL, 2008, p. 1). Segundo o documento, tal movimento opõe-se àqueles reconhecidos na história da educação especial, nos quais essa modalidade educacional constituía-se como um sistema paralelo ao sistema geral de educação (JANUZZI, 2004), por se acreditar que os alunos sob sua responsabilidade não tinham condições de receber o mesmo nível de escolarização dos demais (BUENO, 2001). Opõe-se, ainda, ao movimento posterior de integração escolar, que defendia que os alunos da educação especial, se integrados ao sistema regular de ensino, poderiam beneficiar-se com uma escolarização desenvolvida em ambientes desafiadores, vivenciando contextos mais realistas para sua futura integração social; no entanto, para que essa integração fosse garantida, cabia aos alunos adaptar-se à escola, sem haver a preocupação de esta se modificar para recebê-los (JANUZZI, 2004). Argumentava-se, ainda, que os demais alunos se beneficiariam do contato com os alunos da educação especial, pois essa convivência poderia desencadear efeitos positivos em relação à aceitação das diferenças sociais existentes (MENDES, 2006). No entanto, nessa perspectiva, a escola ainda não se configurava como um espaço aberto a todos, aceitando a matrícula apenas daqueles alunos que pudessem integrar-se ao sistema regular de ensino.

Para a educação inclusiva, embora alguns desses princípios sejam ainda considerados, principalmente no que diz respeito ao ganho de todos pela convivência escolar, a transformação desejada não é mais a dos alunos, mas sim a do sistema educacional, que deve reestruturar-se, organizando-se para dar respostas às necessidades de todos os estudantes (BRASIL, 2001).

Cabe analisar, neste momento, se tal visão defendida pela Política aplica-se aos alunos surdos. A vinculação desse documento aos movimentos mundiais começa a tornar-se frágil quando a Política rompe com um dos princípios da Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994), documento trazido de forma significativa para o texto com o intuito de subsidiar as discussões nele realizadas. Afirma a Declaração:

19. Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signos como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso a educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares. (BRASIL, 1994, p. 7, grifos nossos)

Esse rompimento pode ser compreendido se as discussões realizadas sobre a significação do conceito de educação bilíngue para surdos, assim como concebido pela Política, forem retomadas.

A Declaração de Salamanca, ao atribuir status linguístico às línguas de sinais e, portanto, ao reconhecer seu valor como constitutivas das subjetividades das pessoas surdas, considera que todos os alunos surdos devam ter seu processo educacional nessas línguas (como línguas de instrução). Sendo assim, ela reconhece que a diferença linguística existente no interior da sala de aula constitui um problema que inviabiliza a inclusão desses alunos; por isso, indica que a educação mais adequada aos surdos é aquela organizada em escolas especiais, classes especiais ou unidades em escolas regulares (BRASIL, 1994).

De forma contrária, o caráter instrumental dado à Libras e, portanto, seu não tratamento como língua, presente de forma velada no discurso constitutivo da Política, permitem que se aceite discursivamente sua circulação no interior da escola, sem haver um questionamento sobre o valor de sua presença e de uma educação voltada para os surdos construída a partir dessa língua. Nesse sentido, resta aos alunos surdos adaptarem-se às metodologias de ensino pensadas para os ouvintes e aos intérpretes, responsabilizar-se pelos processos de ensino-aprendizagem dos conteúdos pedagógicos, sem qualquer consideração no que concerne à formação desses profissionais, ao momento de desenvolvimento de linguagem em que se encontram as crianças surdas e à importância da relação professor-alunos para o ensino e a aprendizagem escolar. Soma-se a tal processo, a necessidade do deslocamento dos alunos a um espaço distinto ao da sala de aula para a aprendizagem dos conteúdos escolares em Libras (caso haja professores fluentes na língua). Essa transferência de responsabilidade aos alunos surdos, aos tradutores e intérpretes de Libras e ao espaço do AEE como serviço paralelo ao da escolarização regular acaba por reforçar a ideia de que incluir significa apenas propiciar convívio social/escolar, retomando-se os princípios da integração escolar.

Ao mesmo tempo, pensar em atendimentos educacionais especializados responsáveis pela aprendizagem dos alunos, organizados a partir da diferença que os constitui, resgata o olhar para a educação especial como possível substituta da educação regular. Além disso, a determinação da necessidade de escolarização em tempo integral a esses alunos aponta para a desconsideração de que as dificuldades nos processos educacionais encontram-se na própria organização do sistema de ensino inclusivo, imputando novamente aos alunos a responsabilidade de adaptarem-se a um modelo educacional que não tem propiciado condições adequadas a essa aprendizagem.

No caso do Decreto nº 5.626/05, construído a partir de um conceito de educação bilíngue que tem como fundamento a diferença sociocultural dos surdos e a língua de sinais como base para todo o processo educacional, observa-se a presença do conceito de inclusão em apenas dois momentos, os quais, se postos em diálogo, podem dar a dimensão do que se defende quando se fala em inclusão.

A primeira menção ao conceito ocorre no caput do Artigo 22, onde se lê que, a fim de garantir a inclusão de alunos surdos, as instituições de ensino responsáveis pela educação básica devem assegurar espaços educacionais bilíngues a esses alunos. Logo em seguida, nos Incisos I e II desse mesmo Artigo, tais espaços são caracterizados como abertos a surdos e ouvintes. Essa orientação, que a princípio poderia sugerir a defesa da matrícula desses alunos nas salas regulares de ensino, se posta em diálogo com o todo do texto, enfatiza, na verdade, a compreensão de um ensino regular (em oposição ao especial) a pessoas surdas, ou seja, a ideia de que a escolarização de surdos e ouvintes seja a mesma (salvo a língua de instrução), implicando a igualdade de condições/oportunidades educacionais para todos.

A concepção de inclusão presente no Decreto traz como marca a necessidade de a educação de surdos ser entendida de forma distinta do que vem ocorrendo historicamente na educação especial e, conforme a análise aqui apresentada, também na Política. O texto do Decreto abre possibilidade para a proposição de formas alternativas de educação aos alunos surdos que não aquelas restritas a salas de aulas regulares, desde que respeitados os princípios da educação bilíngue e ouvidas as reivindicações das comunidades surdas brasileiras, que clamam pela necessidade de espaços de escolarização que tenham a Libras como língua de instrução e a língua portuguesa em sua modalidade escrita como segunda língua (FENEIS, 2011a, 2011b, 2011c). Ao expandir o conceito de inclusão escolar para o de inclusão social, defendido posteriormente em seu Artigo 25, que trata do direito à saúde "na perspectiva da inclusão plena das pessoas surdas ou com deficiência auditiva em todas as esferas da vida social", o Decreto contribui para a transformação de nossa sociedade em inclusiva, garantindo o direito à educação a todos os brasileiros e, portanto, sua participação em todas as esferas de atividade humana.

O conceito de inclusão presente no Decreto opõe-se, assim, à maneira como a teia interdiscursiva constitutiva da Política Nacional de Educação Especial foi sendo tecida. Por meio do discurso de que todos devem estar convivendo juntos, sem discriminação, o texto da Política acaba por induzir que interpretações sejam feitas de modo a se reduzir o conceito de inclusão à escola, inviabilizando, dessa maneira, qualquer diálogo que vise à significação do conceito de forma ampla. Considerando-se que nenhum discurso é neutro, dada a natureza ideológica da linguagem, nesse embate, o discurso pelo reconhecimento da diversidade presente na Política instaura resistências que inviabilizam o estabelecimento de diálogos com as comunidades surdas brasileiras, as quais pouca voz têm tido nos espaços de decisões políticas relativos à sua educação.

Considerações finais

A linguagem, ideológica por excelência, reflete os acentos sociais daqueles que a põem em funcionamento, pois, ao tomarem a palavra, os sujeitos colocam em jogo um processo marcado por conflitos, reconhecimentos, relações de poder e identidades. Quando se compreende que a linguagem é responsável pela constituição dos sujeitos e do(s) outro(s), que todo discurso está, necessariamente, comprometido com os lugares sociais daquele que o enuncia, e, portanto, que "diferentes materiais ideológicos, configurados discursivamente, participam do julgamento de uma dada situação" (BRAIT, 1997, p. 99), observa-se que há um embate de natureza ideológica entre os sentidos de educação bilíngue para surdos e de inclusão construídos na teia interdiscursiva constitutiva da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto nº 5.626/05.

Embora a Política tenha sido tecida por meio de um discurso que busca uma aproximação com os princípios de educação bilíngue para surdos constitutivos do Decreto (aceitação da Libras nos espaços escolares e do ensino do português como segunda língua), a análise dos enunciados que a fundamentam, postos em diálogo com as propostas defendidas, mostra inconsistências e um olhar para a educação de surdos que não se desloca do plano discursivo, na medida em que se reproduz, na proposição das práticas inclusivas, o passado que excluiu as pessoas surdas dos processos educacionais/sociais. Nesse sentido, o distanciamento entre tal documento e o Decreto torna-se inevitável, desvendando-se, desse modo, o porquê da impossibilidade de diálogo com as reivindicações das comunidades surdas brasileiras.

Aceitar a diferença e valorizá-la como constitutiva do humano determina um novo olhar para a diversidade, para o eu (ouvinte/surdo) e para o outro (surdo/ouvinte), a fim de que, no retorno a si próprio, seja revelado aquilo que incomoda. Na ausência de uma compreensão desse incômodo e de uma problematização dos discursos a partir dos quais fomos constituídos, o discurso oficial põe-se a serviço da manutenção do status quo sem a possibilidade de que este seja ressignificado, pois, conforme afirma Sobral (2010), falar e defender a diferença é fácil; o difícil é colocarmo-nos no lugar daquele que é diferente, reconhecendo-o em sua maneira de ser, distinta da nossa.

Notas

1 A palavra voz, neste trabalho, está sendo usada segundo o conceito bakhtiniano do termo.
2 Por meio do Decreto nº 7.690/12, foi aprovada nova estrutura organizacional para o MEC: a SEESP foi extinta e suas atribuições passaram para a Diretoria de Políticas de Educação Especial (DPEE), vinculada à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI).
3 A Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), em 2009, tornou-se Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).

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