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Ana Claudia Balieiro Lodi
Ana Claudia Balieiro Lodi
Professora e Investigadora
Plurilinguismo e surdez: uma leitura bakhtiniana da história da educação dos surdos
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Publicado em 2005
Educação e Pesquisa, vol. 31, número 003 - Universidade de São Paulo São Paulo, Brasil pp. 409-424
Ana Claudia Balieiro Lodi
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Resumo

A história da educação dos surdos é marcada por conflitos e controvérsias. Observa-se, porém, que embora as discussões realizadas nos últimos cinco séculos façam referência à educação, as questões próprias das esferas educacionais nunca foram enfatizadas. Ou seja, os métodos de ensino e as práticas realizadas foram submetidos ao fator lingüístico e abordados com o objetivo de descrever e sustentar a defesa pelo desenvolvimento da língua oral ou de sinais. Neste artigo, serão tecidas discussões, à luz da teoria de Bakhtin, considerando-se os principais fatos ocorridos na história da educação dos surdos no decorrer dos séculos. Serão explicitadas as diversas ideologias que perpassaram os discursos sobre a surdez; o embate histórico entre a língua brasileira de sinais (LIBRAS) e o português, enfocando-se os processos determinantes do desin-centivo do uso da LIBRAS, por mais de um século, no processo educacional dos surdos; e apontados os reflexos dessa história nos dias atuais em nosso país. Ao final, será feita uma breve exposição de uma pesquisa, realizada pela autora deste artigo, que aponta para processos indicativos para que uma transformação da educação de e para surdos seja realizada, principalmente no que se refere ao desenvolvimento dos sujeitos como leitores, dando subsídios, assim, para que novas pesquisas, na esfera educacional, sejam delineadas.

Introdução

A história da educação dos surdos é marcada por conflitos e controvérsias. Em alguns estudos, como os de Lane (1984) 1, Sánchez (1990), Skliar (1997a), Rée (1999) e Moura (2000), que descrevem e discutem os fatos ocorridos nesses últimos cinco séculos (os primeiros registros datam do século XVI) à luz de diferentes teorias, pode-se observar que o foco dos debates sempre esteve relacionado a questões ligadas à(s) língua(s), ou seja, se os surdos deveriam desenvolver a linguagem oral (acompanhada ou não de sinais) e, assim, sua educação ser realizada e pensada a partir da língua utilizada pelos ouvintes ou se deveria ser permitido a eles (já que essa educação sempre foi eterminada por ouvintes que se autoatribuíram poder para a tomada dessa decisão) o uso da língua de sinais, cujo reflexo seria também sentido nas esferas educacionais.

É importante notar nessa história que, embora as discussões façam referência à educação, as questões próprias das esferas educacionais nunca foram enfatizadas. Os métodos de ensino, as práticas realizadas, assim como os conteúdos ensinados foram submetidos ao fator linguístico e abordados com o objetivo de descrever e sustentar a defesa pelo desenvolvimento dessa ou daquela língua (oral ou de sinais). Esses aspectos só começaram a ser discutidos no final da década passada, juntamente com críticas sobre a determinação e subordinação dessa educação à de ouvintes (Skliar, 1997b, 1998).

Neste artigo, serão tecidas discussões, à luz da teoria de Bakhtin, considerando-se os principais fatos ocorridos na história da educação dos surdos. Serão explicitadas as diversas ideologias que perpassaram os discursos sobre a surdez no decorrer dos séculos e apontados os reflexos dessa história nos dias atuais em nosso país.

Para o desenvolvimento deste estudo, será levado em consideração o contexto cultural determinante das ações de cada época, na medida em que uma interpretação desses fatos, se realizada segundo os pontos de vista e regras modernas, apenas poderia olhar para os aspectos que afastam esse determinado momento da época atual, perdendo-se, assim, a compreensão do contexto histórico e da conjuntura sociocultural que deu sustentação às posturas (ideológicas e, consequentemente, práticas) assumidas (Bakhtin, 1965) .

Plurilinguismo e educação dos surdos

Segundo os registros da história, a educação de surdos teve sua origem no século XVI, a partir do trabalho desenvolvido pelo monge beneditino Pedro Ponce de León 2 . Seu trabalho não apenas influenciou os métodos de ensino para surdos no decorrer dos tempos, como também demonstrou que eram falsos os argumentos médicos e filosóficos as crenças religiosas da época sobre a incapacidade dos surdos para o desenvolvimento da linguagem e, portanto, para toda e qualquer aprendizagem.

Embora seja reconhecido e enfatizado em seu trabalho o ensino da fala aos surdos, o foco de sua educação era a linguagem escrita, pois, até o final desse século, acreditava-se que à escrita cabia a chave do conhecimento, ou seja, ela era tida como a natureza primeira da linguagem; a fala era apenas um instrumento que a traduzia. À escrita, fora atribuído, assim, um signo de poder.

Segundo Barthes e Mauriès (1987), a escrita, por muito tempo, serviu para esconder o que lhe fora confiado: ao invés de unir, separou os homens, opondo aqueles que sabiam cifrar e decifrar àqueles que disso eram incapazes. As razões por trás desse poder da escrita eram de ordem religiosa e social: buscava-se preservar aos escribas e ao clero, representantes da classe social de poder, a posse exclusiva de certas informações.

Para Goody (1990), as religiões escritas eram aquelas consideradas religiões de conversão e, portanto, superiores. Porque os sacerdotes, por meio da escrita, tinham um acesso privilegiado aos textos sagrados dos quais eram os primeiros intérpretes e assumiram o papel de mediadores da palavra de Deus. Por esse motivo, ofereciam, inicialmente apenas à congregação, a possibilidade de acesso a essa língua para posteriormente estenderem esse conhecimento à casta ligada à nobreza. Esse fato justifica porque historicamente a educação esteve sob responsabilidade do clero, situação que a ele interessava conservar a fim de manter seu papel de guardião das idéias. Pelo poder da escrita, cabia-lhe a manutenção do conteúdo ideológico dominante, já que possuía o controle do consumo e da produção de grande parte do conhecimento disponível.

Houve, assim, um processo de centralização sociopolítica e cultural que a igreja procurou manter por meio da língua (escrita), fenômeno que pode ser compreendido somente se considerada a força da palavra como signo ideológico. Responsável pelas lentas e graduais transformações em todas as esferas sociais, ela determina e reflete as relações recíprocas entre superestrutura e infraestrutura, pois toda ideologia passa necessariamente pelo signo verbal (Bakhtin;Volochinov, 1929)

Nesse contexto, inseriu-se também a educação dos surdos. Entretanto, o ensino proposto por Ponce de León apresentou uma particularidade: a forma de comunicação utilizada.

Segundo Plann (1993), embora sejam pouco conhecidos na história, os monges do Monastério de Oña, na Espanha (ao qual Ponce de León pertencia), viviam em silêncio. Deles havia sido tirada a fala e, para poderem se comunicar, empregavam um sistema de comunicação manual inventado no próprio Monastério. Dessa forma, de León estava acostumado a uma comunicação que prescindia do oral. Francisco e Pedro de Velasco, os dois irmãos surdos educados por de León, pertenciam a uma família em que havia quatro irmãos surdos. Dessa maneira, utilizava-se de uma comunicação manual desenvolvida domesticamente (home signs). Embora houvesse diferenças entre os dois sistemas manuais postos em contato — o Beneditino e o da família de Velasco —, Ponce de León parece não haver hesitado em utilizar os sinais, negociados entre os dois sistemas, como instrumento comunicativo para o desenvolvimento da educação. Essa negociação fazia-se necessária, na medida em que o sistema manual utilizado pelos Beneditinos era restrito a um conjunto lexical utilizado para a representação dos objetos; era uma coleção de sinais que tinha o Espanhol como ponto de referência. Os home signs dos de Velasco, por sua vez, pode ser caracterizado como um sistema de comunicação utilizado e criado pelos próprios surdos, não tendo como base a gramática da linguagem oral espanhola.

Dessa forma, segundo Plann (1993), os surdos da família de Velasco auxiliaram de León no desenvolvimento de seu processo educacional, provendo os meios mais eficazes para essa aprendizagem. Essa contribuição crucial deve ser reconhecida quando se é feita referência à educação proposta por de León, pois acredita-se que esse tenha sido o fator principal para o sucesso de seu método educativo, que outros, nos anos que se seguiram, tentaram copiar sem sucesso (e possivelmente sem compreender o porquê do fracasso).

Para Rée (1999), os resultados obtidos por de León na educação dos de Velasco refletiram de tal forma nas diversas esferas sociais que seus feitos foram retratados na literatura da época: há uma história de Cervantes em que o protagonista é um monge com habilidades especiais para fazer os surdos-mudos ouvirem e falarem e curá-los da “demência”; em outra obra, Mersenne, ao citar o uso da escrita por Pedro de León com seus alunos surdos, fá-lo como prova dos antigos princípios platônicos de que a linguagem é arbitrária e totalmente dependente da instituição humana 3.

Devido à fama alcançada e aos seus ensinamentos estarem voltados a filhos de nobres, Pedro de León ganhou prestígio nessa classe social. Nessa época, apenas os surdos filhos de nobres buscavam educação (principalmente o desenvolvimento da fala), pois, sem esta, não tinham direito à herança e aos títulos de família. Esse fato acarretou-lhe muito dinheiro que, somado aos empréstimos que realizava às custas de pequenas propriedades, fez com que contribuísse para o enriquecimento de sua Ordem.

Segundo Goody (1990), o controle sobre a educação obtida pela igreja foi decisivo para que essa instituição acumulasse riquezas, pois além do ensino, eram necessários meios para a manutenção das escolas nas quais a educação era desenvolvida. Essa manutenção não implicava apenas em terras e em edificações, mas também num grupo de pessoas para realizar a educação. Todos esses aspectos eram, então, mantidos por doações substanciosas e permanentes. Essa prática foi decisiva para a perpetuação do poder econômico da igreja, que passou a ter o controle de grande parte das terras cultiváveis da Europa Ocidental.

[...] a capacidade de ler e escrever não era apenas um dos fins, mas também um dos meios implicados, de forma decisiva, no próprio processo de aquisição [de terras] já que a redação de testamentos e escrituras servia para a perda da posse (e inclusive para legitimar esta perda) da propriedade da família ou linhagem em favor da igreja (Goody, 1990, p. 39).

Para esse autor, a igreja, ao configurar-se como uma instituição burocrática, criou uma área de conflito de interesses com o Estado, dado o controle que passou a ter sobre as mentes, as técnicas e sobre o acúmulo de terras, pois em nome da caridade — pedra angular de sua ideologia —, justificava a quantidade de propriedades adquiridas, passando, com o tempo, a competir com o poder público.´

Instaurou-se, assim, um conflito social marcado pelas relações de dominação e de resistência para reforço e manutenção do poder. A ideologia da época passou a refletir novas estruturas sociais, na medida em que a igreja voltou-se à defesa de seus próprios interesses e não mais àqueles do poder econômico dominante. Pela escrita, a religião sofreu uma “adaptação” social, passando a integrar a cultura com papel definido e próprio: perdeu o caráter reflexivo do sistema social, influenciando-o de forma significativa.

Esse fato ganha especial importância na educação dos surdos nos séculos seguintes. Com o tempo e com a expansão da educação (embora ainda restrita a uma classe social de privilegiados), a exclusividade do poder educacional pelo clero foi perdida. Esse papel foi, aos poucos, sendo assumido também por filhos de nobres em busca de prestígio. Vários foram os nomes que buscaram no método de Ponce de León (embora sem admitir) inspiração para dar a “palavra” ao surdo, tendo como objetivo primeiro dessa educação levá-los à oralização – única forma de os surdos saírem da condição de selvagens, elevando-se à condição de humanos.

No século XVIII, em 1760 aproximadamente, um novo movimento social de oposição à ideologia verbal oral começa a delinear-se na educação dos surdos. Ele teve seu início no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris, primeira escola pública para surdos na Europa, fundado pelo abade Charles Michel de l’Epée. De l’Epée reconheceu que os surdos possuíam uma língua utilizada para propósitos comunicativos com seus pares, que poderia ser usada em sua educação. Segundo ele:

Cada surdo-mudo enviado a nós já tem uma língua [...]. Ele tem o hábito de usá-la e de entender os outros que o fazem. Com ela ele expressa suas necessidades, desejos, dúvidas, dores e assim por diante... Nós queremos instruí-lo e ensinar-lhe o francês. Qual método mais curto e mais fácil? Não seria nós nos expressarmos em sua língua? Adotando sua língua e fazendo isto conforme regras claras nós não seremos capazes de conduzir sua instrução como desejamos? (Lane, 1984, p. 59-60) 4

Entretanto, o reconhecimento da língua dos surdos foi apenas relativo. Quando de l’Epée se referiu a regras claras, ele fazia referência à gramática francesa, tida na época como superior às demais.

Conforme discutiu Souza (1998), para os filósofos da Idade Clássica, todo conhecimento era derivado das impressões que os objetos causavam no espírito. Tudo era, então, conhecido pelos sentidos. O convívio entre os homens permitiu que as experiências comuns, expressas por gestos, urros e sons, determinassem o estabelecimento de relações entre os gestos e os objetos que representavam e, portanto, que os signos fossem construídos.

No princípio, esses signos eram análogos à representação [...]. Entretanto, com o uso livre, disperso e cada vez mais difundido da linguagem, a analogia com a representação se esvaneceu. A arbitrariedade não era entendida, por esse prisma, como produto de convenção, mas como decorrência da corrupção de certas analogias primitivas. (Souza, 1998, p. 134)

Essas concepções determinaram que o filósofo Denis Diderot (1751/1993) discutisse as inversões ocorridas durante a evolução da linguagem, buscando encontrar uma língua que mais se aproximava da forma pela qual o espírito conhecia o mundo, ou seja, aquela língua na qual “a ordem correta do dizer seria a que mais se compatibilizasse com a ordem das impressões primeiras” (Souza, 1998, p. 134). Para Diderot (1751), o estudo sobre a formação e o aperfeiçoamento de todas as línguas deveria partir da língua dos gestos dos surdos, pois sua ordem “narra com bastante fidelidade a história da ordem em que os gestos teriam sido substituídos por signos oratórios” (p. 80).

No entanto, para ele, no processo de evolução das línguas, podem ser distinguidos três estados diferentes: o do nascimento, o de formação e o de perfeição. A língua francesa completou esse processo enquanto a língua dos surdos, não. Dessa forma, um estudo sobre as inversões não poderia ser realizado pela comparação entre essas duas línguas, mas sim comparando-se à língua francesa com a sintaxe de outras línguas faladas/escritas, como a grega, latina, italiana e inglesa.

Entendendo que a comunicação do pensamento era o principal objeto da linguagem, concluiu-se que a língua francesa era aquela que, dentre todas, mostrava-se como a mais exata por ter sido a que menos reteve negligências linguísticas, não possuindo, portanto, inversões.

[...] com o fato de não possuirmos inversões, ganhamos nitidez, clareza, precisão, qualidades essenciais ao discurso [...]. Podemos, melhor do que qualquer outro povo, fazer com que o espírito fale [...]. Deve-se falar Francês em sociedade e nas escolas de filosofia, e Grego, Latim e Inglês, nos púlpitos e teatro: nossa língua será a da verdade, se um dia morrer e vier a ser recuperada, ao passo que as demais serão línguas da fábula e da mentira. O Francês é feito para instruir, esclarecer e convencer; o Grego, o Latim, o Italiano e o Inglês, para persuadir, emocionar e enganar. Falai ao povo em Grego, Latim e Italiano, mas falai em Francês ao sábio. (Diderot, 1751/1993, p. 42-43)

De l’Epée, que sofria fortes influências dos filósofos da época, acreditava, então, que deveria “organizar” a língua de sinais segundo a gramática francesa (centro organizador da língua), pois dada a diferença linguística existente, a língua de sinais era concebida como sendo “pobre de gramática” por apresentar “inversões” e “falta de elementos” linguísticos se comparada ao francês. Para tal tarefa, criou o que chamou de sinais metódicos que, segundo Fischer (1993), foram caracterizados pelo próprio de l’Epée como sendo qualquer sinal usado para instruir os surdos-mudos, assim chamados por serem submetidos a regras.

Conforme Fischer (1993), de l’Epée apresentou os sinais metódicos como úteis para o tratamento das palavras em francês, instrumentos que, por serem visuais, auxiliariam os surdos na aprendizagem da língua francesa. Enfatizava que a extensão de seu uso era tal que esses mesmos sinais poderiam ser utilizados para o ensino de outras línguas, como o italiano, inglês e alemão.

Observa-se, assim, no uso dos sinais metódicos de de l’Epée, um movimento de imposição de uma língua - reconhecida e valorizada - sobre a outra - desconhecida e, portanto, desconsiderada.

Esse fato vem ao encontro do que discutiu Bakhtin (1934-1935) quando comentou as diferentes correntes da filosofia da linguagem que postulavam a existência de um sistema de linguagem única. Para ele, existem (e sempre existirão) forças reais de unificação linguística — forças centrípetas —, responsáveis pela criação de um núcleo sólido de defesa da língua contra a diversidade crescente de linguagens sociais e que, portanto, servem aos processos de centralização sociopolítico e cultural. Geralmente, essas forças são determinadas institucionalmente como uma forma de perpetuação da ideologia dominante e, dessa forma, buscam anular toda e qualquer diferença linguístico-social existente.

No caso em questão, a língua de sinais representava a diversidade, representava a transgressão da língua culta padrão e, portanto, necessitava estar em conformidade ou submetida aos mesmos princípios e regras da língua francesa. Isso não reduz, no entanto, o mérito de de l’Epée em ter se aproximado dessa língua, de tê-la levado à instituição educacional e de ter respeitado sua materialidade quando na proposição dos sinais metódicos.

Cabe acrescentar também que esse mesmo procedimento de “apagamento” da diferença
e busca de imposição linguístico-cultural (de forma explícita, como no Instituto de Surdos-Mudos de Paris) não foi realizado apenas no caso dos surdos. Orlandi e Souza (1988) comentam que missionários adotaram procedimentos bastante próximos a este em relação à língua tupi utilizada pelos índios. Segundo as autoras, eles realizavam uma sistematização da língua, criavam uma gramática e, ao mesmo tempo, uma língua simplificada. Utilizando o termo discipli-nação da língua, criado por Mattoso Câmara ao se referir a esse processo, Orlandi e Souza (1988) discutem que essa prática tinha como objetivo aperfeiçoar a língua indígena em direção ao ideal da gramática ocidental.

No entanto, conforme discutiu Bakhtin (1934-1935), as forças centrípetas de centralização linguística e cultural não atuam sozinhas. A própria diversidade, as diferentes linguagens em circulação em todas as esferas sociais, constituindo o que o autor denominou plurilin-guismo, propiciam que a língua mantenha-se viva e em constante movimento. Dessa forma, caminhando ao lado das forças de unificação e, ao mesmo tempo, opondo-se a elas, desenvolvem-se processos de desunificação e descentralização – as forças centrífugas da língua. Num conflito permanente, essas duas forças participam da natureza dialógica da linguagem.

Assim, em oposição às forças centrípetas da “língua comum”, atuantes no plurilinguísmo
social, faz-se sempre presente um outro movimento. No caso em questão, esse movimento, representado por um grupo de surdos do Instituto de Paris e de alguns poucos educadores ouvintes, aos poucos, começou a ganhar forças, instaurando assim um embate. Essa oposição foi propiciada, principalmente, pelo fato de o Instituto de Surdos de Paris ser residencial 5 e de manter parte de seus ex-alunos em seu corpo docente, permitindo assim uma organização (social) dos surdos e, consequentemente, a perpetuação e o fortalecimento da língua de sinais francesa. Esse grupo lutava pela extinção do uso dos sinais metódicos de de l’Epée e pelo reconhecimento e inserção da língua de sinais na educação de seus pares.

Um novo discurso sobre a surdez foi se constituindo e espalhando-se pela Europa e América por meio dos ex-alunos do Instituto convidados a organizar e/ou trabalhar na educação de crianças surdas. A maior expressão desse movimento pôde ser sentida na França e nos Estados Unidos, países onde a comunidade surda e seus educadores (surdos e ouvintes), unidos, fortaleceram-se e lutaram pelos direitos dos surdos à sua língua e a uma educação realizada por seu intermédio.

Somente nos anos 20 do século XIX, o embate entre surdos e ouvintes voltou a acentuar-se. Em 1822, com a morte de Roch Ambroise Sicard, sucessor de de l’Epée no Instituto de Paris, entram em cena novos diretores que, desconhecendo os problemas educacionais dos surdos, passaram a questionar o papel da língua de sinais nessa educação e, consequentemente, o papel dos professores surdos (Mottez, 1993).

A resistência dos surdos a essa oposição à língua de sinais foi grande. No entanto, depois da metade do século XIX, as forças centrípetas começam a ficar cada vez mais fortes, podendo ser sentidas também no que se refere aos ouvintes. Iniciam-se movimentos sociais em todos os países da Europa, defendendo a unificação nacional, tendo na língua a maior expressão de força e de centralização sociopolítica e cultural. Era necessário acabar com o plurilinguismo social, subjugando-o à língua oficial do país. Conforme Quartararo (1993), a ideologia política republicana francesa pregava a necessidade de unificação dos franceses pela homogeneização cultural. Buscava, assim, a imposição do uso da “língua correta” a todos aqueles que representavam desvio: as várias linguagens sociais, os dialetos e, no caso dos surdos, a língua de sinais que deveria ser substituída pela língua francesa falada. Só assim todos se tornariam plenamente humanos, civilizados e, logo, franceses. Posteriormente, essa mesma ideologia passou a ser a dominante nos Estados Unidos.

Como qualquer movimento de transformação social (e portanto ideológica) depende da organização interindividual, ou seja, a própria especificidade do ideológico reside no fato de ele se situar entre indivíduos organizados (Bakhtin;Volochinov, 1929), uma forma de descentralizar, de enfraquecer o movimento dos surdos, foi a extinção das escolas residenciais, pois enquanto elas existissem e os surdos continuassem juntos, a língua de sinais estaria presente e viva. Além disso, esse contato social propiciava o casamento entre surdos e, consequentemente, o nascimento de mais surdos e a continuidade e perpetuação da língua. Orlandi e Souza (1988) comentam processo semelhante com relação às línguas indígenas e apontam que esses procedimentos, na verdade, visavam a extinção da língua pelo extermínio do povo.

Assim, durante quase um século (1880-1960), o discurso dominante sobre a surdez centrou-se no abafar, no inferiorizar, no descaracterizar as diferenças, elevando e enfatizando aquilo que estava ausente no surdo frente ao modelo ouvinte (a audição, a fala, a linguagem), determinando o desenvolvimento de abordagens clínicas e práticas pedagógicas que buscavam o apagamento da surdez, por meio da tentativa de restituição da audição pelo uso de aparelhos de amplificação sonora, e de levar os surdos ao desenvolvimento da linguagem oral a partir de técnicas mecânicas e descontextualizadas de treino articulatório.

Esse discurso, que se mostrava aparentemente homogêneo, ocultando as contradições ideológicas, a luta e o plurilinguísmo social existente, era reforçado por forças internas cujo interesse era a manutenção dessa ideologia da surdez. Essas forças, corporificadas pela medicina, fonoaudiologia, linguística e pedagogia especial, amparavam atitudes preconceituosas quanto à língua de sinais. Mantinham assim o mito da existência de uma língua única e que, portanto, necessitava ser imposta aos surdos.

Nesse período, a filosofia da linguagem e a linguística, servindo as importantes tendências centralizantes da vida ideológica verbal, buscaram a unidade na diversidade e essa “orientação para a unidade”, segundo Bakhtin (1934-1935), fixou a atenção do pensamento filosófico-linguístico sobre os aspectos mais resistentes, mais estáveis e menos ambíguos do discurso.

Do ponto de vista ideológico, a consciência linguística, real, saturada de ideologia, participante de um plurilinguísmo e de uma plurivocalidade autêntica, permanecia fora do campo de visão dos estudiosos. (Bakhtin, 1934-1935, p. 84)

A consequência para a educação dos surdos não poderia ter sido pior: sua essência foi perdida. Ela passou a ter como objetivo central o desenvolvimento da oralidade e a prática pedagógica deu lugar à prática terapêutica. Segundo Sánchez (1990), mesmo perseguido com obstinação, o desenvolvimento de linguagem das crianças surdas - oral e escrita - foi sempre insatisfatório e as dificuldades observadas, compreendidas como sendo um problema causado pela surdez, uma limitação dos próprios surdos. O discurso sobre a surdez passa a ser o da deficiência.

Entretanto, o silenciamento das vozes 6 dos surdos, do plurilinguísmo constitutivo dos discursos sociais, não foi total. Alguns grupos constituídos na e pela língua de sinais em épocas anteriores não se dissolveram, pois os fenômenos ideológicos ligados às condições e às formas de comunicação social - a linguagem - tornaram-se parte da consciência social e cultural desse grupo. A comunidade surda, segundo Padden e Humphries (1988), manteve-se organizada (principalmente nos países onde tiveram um maior fortalecimento como, por exemplo, nos Estados Unidos) e a língua de sinais seguiu sua evolução natural, sua dinâmica viva e as vozes desse grupo continuaram circulando e entrelaçando-se nos diversos discursos sociais.

Entre os períodos de 1960 e 1970, o discurso sobre a surdez sofreu novo deslocamento após a descrição linguística da língua de sinais americana e, posteriormente, de outras línguas de sinais. Várias pesquisas desenvolvidas demonstravam o pouco ou o não-desenvolvimento das linguagens oral e escrita pelos surdos e apontavam um melhor desempenho educacional de surdos filhos de surdos usuários de língua de sinais. Esses estudos somaram-se aos movimentos sociais dos grupos minoritários, que mesclavam suas vozes às diversas linguagens sociais cotidianas e brigavam pelo reconhecimento de seus direitos.

Entretanto, no caso dos surdos, o movimento que se assistiu foi, novamente, o da tentativa de extinção da língua de sinais pela ideologia da língua nacional, havendo, uma vez mais, a prevalência das forças centrípetas de unificação linguística. Isso ocorreu de duas maneiras: pela manutenção da imposição da língua oficial como língua única ou pelo uso de métodos comunicativos artificiais, como no caso dos sistemas sinalizados ou bimodalismo. No primeiro caso, a oposição à língua de sinais foi clara: não se discutia sua existência, sua possibilidade de ser o que é — uma língua; no segundo, essa negação ocorreu de forma velada, pois, ao mesmo tempo em que se “permitia” e, discursivamente, “aceitava-se” a língua de sinais, ela era descaracterizada e assimilada pela gramática da língua majoritária. Impossibilitou-se, dessa maneira, o embate, o conflito sociocultural e ideológico determinado pelo contato das duas línguas.

Nesse último caso, nota-se uma oposição mais acentuada à língua de sinais, já que a proposta foi a de submetê-la a compartilhar dos mesmos espaços discursivos concomitantemente à linguagem oral. Os sinais passaram a ter a função de instrumentos para o desenvolvimento das linguagens oral e escrita. À língua de sinais, foram aplicadas forças linguísticas coercitivas para aproximá-la ao máximo da gramática da língua usada pela sociedade majoritária e, excluída de seus processos discursivos, ela sofreu um tratamento como se estivesse morta: fizeram-lhe uma análise em unidades, recortaram seus itens lexicais para poder reorganizá-los e moldá-los às regras sintáticas e morfológicas da linguagem oral, imputando-lhes flexões verbais e nominais. Com o isolamento das palavras dos contextos discursivos determinantes de todo e qualquer processo de significação, buscou-se a estabilização dos sentidos dos sinais e, na justaposição de línguas, um paralelismo entre ambas.

Assim, as relações dialógicas constitutivas da linguagem, sua natureza heterogênea e polissêmica, os diversos discursos e linguagens sociais que circulavam nos processos enunciativos foram mantidos apenas na linguagem oral. Os sinais a ela subordinados acabaram sendo tratados, nos termos bakhtinianos, em sua sinalidade, devendo ser reconhecidos e assimilados sem qualquer possibilidade de  sentido que não aquele determinado pela linguagem oral; não se constituíram como signos verbais. Esse apagamento das línguas de sinais serviu, mais uma vez, para a manutenção da ideologia linguística dominante. Houve o predomínio das forças centrípetas de unificação sociolinguística e cultural.

Nos espaços educacionais, conforme discutiram Góes e Souza (1998), a utilização dos sistemas bimodais criou um impasse, na medida em que os dois sistemas linguísticos eram usados sem haver uma distinção clara quanto aos contextos de uso; os professores, por serem ouvintes, possuíam um conhecimento reduzido dos sinais; e os alunos surdos pouca compreensão do português. A solução prática para tal situação foi encontrar no empirismo sua sustentação teórica. Para essa corrente, a linguagem é tida como representação das coisas e, assim, se as idéias são construídas fora da linguagem (pois lhes são anteriores), toda a atividade representativa seria considerada válida para sua simbolização e, portanto, para sua comunicação. Como consequência, segundo as autoras, passou-se a utilizar nas salas de aula uma combinação indiscriminada de diversos recursos semióticos — pantomima, desenho, escrita, sinais, gestos “naturais”, linguagem oral, dentre outros — e o resultado foi a redução dos eventos sociais de uso da linguagem pela utilização de estratégias comunicativas voltadas, principalmente, ao atendimento de necessidades imediatas.

Contudo, desde a década de 1980, está havendo um movimento mundial apontando em
direção à necessidade de se implantar uma política educacional bilíngue. Este tem recebido apoio das diversas comunidades surdas e vem obtendo maior sucesso nos países escan-dinavos, cuja política social e cultural é a da aceitação das diferenças.

Em termos gerais, a educação bilíngue para surdos considera que, inicialmente, os surdos devam desenvolver a língua de sinais como primeira língua (L1), no contato com surdos adultos usuários da língua e participantes ativos do processo educacional de seus pares. A partir da L1, os surdos são expostos ao ensino da linguagem escrita e, para tal, tomou-se como base os estudos sobre ensino-aprendizagem de segunda língua (L2) e os trabalhos sobre ensino de línguas para estrangeiros. Considera-se, porém, nas práticas bilíngues para surdos, as particularidades e a materialidade da língua de sinais, além dos aspectos culturais a ela associados. 

Para Bakhtin; Volochinov (1929), a comunicação da vida cotidiana, parte importante da comunicação ideológica, deve ocorrer por meio das relações estabelecidas entre sujeitos socialmente organizados. A língua, carregada de ideologia, é o veículo de transmissão cultural para a estrutura e experiência do pensamento e saber social. Por esse motivo, os profissionais envolvidos na educação bilíngue devem não apenas reconhecer e aceitar as diversidades sociais existentes como, se possível, serem participantes dessa outra organização. Assim, no caso da educação para surdos, apenas surdos adultos, participantes e atuantes da comunidade surda e, portanto, membros de referência, podem ser os interlocutores para a imersão de seus pares na língua de sinais, interferindo ideologicamente, por meio dela, nos padrões culturais e de interpretação de mundo fundados nas relações com a linguagem. É apenas na interação com adultos surdos que as crianças podem desenvolver uma identificação positiva com a surdez.

A subjetividade para Bakhtin (1920-1930;1970-1971) é construída numa relação sempre dialógica com o(s) outro(s). É, assim, um processo dinâmico que se desenvolve durante toda a existência do ser. Segundo Moraes (1996), mesmo no caso de duas pessoas pertencentes a um mesmo grupo social, as significações construídas nas interações verbais são sempre relativas, pois dependem da relação estabelecida entre as pessoas e da posição que ocupam no grupo. É dessa forma que a existência dialógica é percebida e experienciada pelo indivíduo. Nessa existência, o indivíduo é participante ativo ao mesmo tempo em que é espectador que percebe e que é percebido num mesmo tempo e espaço, numa arena de simultaneidades.

Holquist (1990), ao discutir as categorias de tempo e de espaço para o eu/outro, apresentou um exemplo, usado pelo próprio Bakhtin, tirado de um dado simples da experiência: um observador olhando para um outro observador.

Você pode ver coisas atrás de mim que eu não posso ver, e eu posso ver coisas atrás de você que são negadas à sua visão. Ambos estamos fazendo essencialmente a mesma coisa, mas de lugares diferentes: embora estejamos no mesmo evento, este é diferente para cada um de nós. Nossos lugares são diferentes não apenas porque nossos corpos ocupam posições diferentes no exterior, no espaço físico, mas também porque olhamos o mundo e os outros de diferentes centros no tempo/espaço cognitivo 7. (Holquist, 1990, p. 21-22)

O sujeito se define, assim, sempre por suas relações com outros sujeitos, razão pela qual essa construção implica num processo plural, inesgotável, inconcluso e aberto. (Bakhtin, 1970-1971)

Consequentemente, eu não me percebo como o outro me percebe e vice-versa, embora ambos ocupemos o mesmo local e o mesmo tempo. Entretanto, tempo e espaço tornamse opostos desde que eu posso perceber o que existe atrás do outro e não atrás de mim. Em outras palavras, eu tenho uma percepção limitada de mim assim como o outro dele próprio. Neste sentido, a existência é compartilhada, constitui uma coexistência na qual o eu não pode existir sem o outro, ou seja, precisamos da percepção do outro para existir [...]. 
É pela percepção do outro que nos vemos como parte do mundo. É pela percepção do outro que não podemos rejeitar nossa própria existência. O eu não tem sentido por si próprio, somente o tem na relação com o todo social e com outros. (Moraes, 1996, p. 97)

Portanto, a construção da subjetividade do ser surdo depende, fundamentalmente, da relação que eles estabelecem tanto com seus pares quanto com ouvintes e, nesse sentido, a presença de professores surdos na educação ganha relevância para a construção de uma percepção positiva da surdez pelos alunos.

Desse modo, aqueles que se propõem a trabalhar na educação de sujeitos surdos devem fazê-lo a partir de uma visão da heterogeneidade constitutiva das relações sociais e linguísticas e, para tanto, é fundamental que uma política educacional voltada para a diversidade social e cultural seja delineada. Apenas o respeito pela diversidade pode fazer com que os professores compreendam seus alunos a partir dos aspectos próprios do grupo social ao qual eles pertencem e, dessa forma, possam reconhecer como e por que os mecanismos de resistência são construídos (tanto pelos alunos como por eles próprios). Esse olhar para o outro propicia uma parceria, uma atuação conjunta frente à multiplicidade de forças sociais existentes.

As decisões educacionais não se limitam, assim, apenas aos conteúdos disciplinares e às questões linguísticas, mas promovem aos alunos uma tomada de consciência quanto à nova perspectiva social que se abre para eles. Essa consciência social, discutida nas interações entre sujeitos, possibilita uma troca sobre as diversas maneiras de ver o mundo, suas experiências culturais sobre o que significa tornar-se bilíngue, pois aprender uma segunda língua corresponde a entrar em contato com novas experiências culturais e sociais, determinadas por essa língua e determinantes dela.

O ensino de línguas deve, então, considerar sempre sua dinâmica dialógica, a língua viva. Assim sendo, conforme Bakhtin; Volochinov (1929), o ensino eficaz de uma língua estrangeira é aquele em que o aprendiz vivencia essa língua por meio de sua inserção num contexto e em situações concretas. Esse aprendizado tem na L1 a  base para a compreensão e significação dos processos socioculturais, históricos e ideológicos que perpassam a L2. A palavra em língua estrangeira (L2) não é considerada como sendo ideologicamente neutra, pois ela transporta consigo forças e estruturas distintas daquelas subjacentes à L1. No ensino de L2, é instaurado assim um confronto ideológico, um “campo de lutas” e de contradições. Por esse motivo, a discussão da educação bilíngue para surdos deve ser realizada criticamente e não ser colocada como se o contato linguístico fosse um campo de convivência pacífica.

A educação dos surdos no Brasil nos dias atuais

Infelizmente, as afirmações realizadas sobre a educação bilíngue não se configuram como a realidade da educação de surdos no Brasil. O desenvolvimento da língua de sinais como L1 é ainda restrita aos filhos de surdos usuários dessa língua e às poucas experiências educacionais que possuem, em seu quadro de profissionais, professores surdos.

Em sua maioria, os surdos brasileiros desconhecem ou pouco conhecem a língua de sinais, buscam aprender o português como língua única, frequentam escolas para ouvintes e, dadas as dificuldades de aprendizagem que apresentam, acabam por abandoná-las. Mesmo nas escolas especiais que dizem aceitar a língua de sinais, ainda são poucas as que permitem que professores surdos façam parte de seu corpo docente (como professores ou como instrutores). A pedagogia empregada não difere daquela utilizada para ouvintes (apenas os conteúdos são simplificados), cuja ênfase está nos aspectos auditivos e articulatórios e, assim, os padrões socioculturais da maioria ouvinte têm clara predominância tanto nos conteúdos como nas atividades escolares.

Essas constatações são sustentadas pelos diversos registros encontrados na literatura dos últimos 15 anos que buscam descrever algumas características das produções escritas de surdos, lidas, por grande parte dos profissionais, como “dificuldades” apresentadas por eles quando na apropriação ou em etapas posteriores do processo de aprendizagem da linguagem escrita. No entanto, conforme Góes (1996), essas ocorrências devem ser compreendidas de forma diferente: como decorrentes da má qualidade das experiências escolares oferecidas aos surdos. A desconsideração da língua de sinais para o ensino da língua portuguesa; sua inferiorização; o mito de que, pelo seu uso, a criança não desenvolverá a linguagem oral (base para que a aprendizagem da escrita possa se desenvolver) sustentam o uso dessas práticas, desenvolvidas na maioria das vezes a partir de uma comunicação bimodal, embora discursivamente perceba-se um movimento de aceitação e/ou reconhecimento da língua de sinais. Conforme apontaram Lodi, Harrison e Campos:

Embora, muitas vezes, aceite-se a língua de sinais como língua em circulação no ambiente escolar, ela é vista como prática de interação entre pares, para trocas de experiências cotidianas e informais, e não como língua em uso para as práticas de ensino. Desvaloriza-se aquilo que o surdo tem a dizer, da forma como o diz. Esclarecemos. A língua de sinais não é considerada como própria para o desenvolvimento e a apropriação dos conhecimentos veiculados social e culturalmente e nem tampouco para se ter acesso à língua portuguesa. (2002, p. 40)

Torna-se premente, então, que haja uma modificação nas posturas educacionais, no sentido de se considerar a linguagem em sua dimensão discursiva (na concepção bakhtiniana do termo) e, portanto, a língua de sinais começar a ser utilizada efetivamente nos processos de significação de mundo e de constituição socioideológica dos sujeitos surdos, inclusive na escola. Além disso, a língua portuguesa deve ser concebida como segunda língua e assim ser ensinada.

Dentre as várias abordagens desenvolvidas para o ensino-aprendizagem de uma segunda língua (para ouvintes), foram destacadas duas discutidas por Moraes (1996): a análise contrastiva e a análise de erros. A primeira pressupõe que o desenvolvimento da linguagem consiste num conjunto de hábitos linguísticos; portanto, o aprendiz transfere seus hábitos em L1 para a L2. Como exemplo, a autora cita a manutenção da estrutura gramatical da L1 quando na produção da L2. Na segunda, os erros apresentados por falantes de L2 durante o processo de aquisição da linguagem são classificados em função de duas categorias: erros decorrentes do efeito de interlíngua ou interferência (que correspondem aos apresentados na abordagem anterior) e erros que ocorrem no lidar com a própria língua - intralinguísticos -, determinando a presença de simplificações e de generalizações das regras gramaticais, realizadas de forma análoga a de crianças em processo de aquisição da L1.

Vê-se, assim, que o processo de transferência dos elementos da L1 para a L2 é um fenômeno esperado, já que aprender uma nova língua implica em mudanças na consciência do falante/escritor ou ouvinte/leitor.

Compreendido dessa forma, usar uma outra língua, dialogar com ela, significa encontrar-se num território desconhecido de signos e significações em L2 e, por essa razão, o falante transfere os signos da L1 como se eles fossem apropriados, como se o falante não tivesse saído de seu contexto em L1.

[O] falante/ouvinte não avalia a forma idêntica da palavra em todas as instâncias. Um falante/ouvinte avalia o contexto no qual o signo (forma da palavra) torna-se signo de acordo com um contexto específico. (Moraes, 1996, p. 72)

Para a autora, não pode, então, haver ensino-aprendizagem de L2 sem este estar relacionado ao contexto dos atores sociais dessa situação. Além disso, se os aspectos socioculturais em jogo e as diversas leituras e compreensões de mundo envolvidos forem desconsiderados ou negligenciados, não haverá ensino-aprendizagem de língua.

No caso dos surdos, apenas a língua de sinais pode possibilitar tal mudança. Somente por seu intermédio, os surdos podem ter acesso à linguagem escrita por meio de práticas sociais nas quais a escrita é usada em sua dimensão discursiva, propiciando o estabelecimento das relações dialógicas dela constitutivas. Por meio dela, os surdos podem dialogar com a escrita, fazer suas próprias leituras, construir seus sentidos, podem “falar” sobre os materiais escritos, ao mesmo tempo em que são “falados” por eles. Tornam-se interlocutores a partir de suas próprias histórias (de mundo e como leitores).

Uma prática possível

Partindo desses pressupostos, foram desenvolvidas nove oficinas de leitura com um grupo de surdos adultos, considerando a situação bilíngue que caracterizava o grupo estudado (Lodi, 2004). Nesse espaço, a leitura foi compreendida como um processo de compreensão ativa, no qual os múltiplos sentidos em circulação no texto são construídos a partir de uma relação dialógica estabelecida entre autor e leitor, entre leitor e texto e entre os múltiplos enunciados, as múltiplas vozes e linguagens sociais que ecoam no texto.

Para o desenvolvimento das oficinas, os sujeitos foram expostos a textos escritos de gêneros discursivos distintos e de veículos de circulação variados. As interações discursivas entre o grupo de surdos e entre esse grupo e a pesquisadora foram desenvolvidas em língua brasileira de sinais (LIBRAS).

Como todas as discussões foram realizadas em LIBRAS, essa língua permitiu que os sujeitos compartilhassem conhecimentos, trocassem informações sobre o(s) tema(s), mas, principalmente, que a LIBRAS ocupasse um lugar de reflexão e de compreensão dos diversos discursos presentes nos textos e em circulação no grupo. Com isso, os sujeitos surdos desenvolveram uma leitura dialógica dos textos, demonstrando os conhecimentos e as vivências de cada um, os temas enfocados na leitura e as discussões desenvolvidas nas diversas oficinas, estabelecendo, dessa forma, uma corrente contínua de enunciados que se relacionavam e se entrelaçavam.

Houve, assim, o estabelecimento de um processo interacional, seja entre leitores/texto seja interpessoal, que não se restringiu ao espaço da oficina, às interações face-a-face, mas sim, de ordem discursiva, colocou em diálogo as histórias dos sujeitos, os textos e as oficinas e, portanto, uma cadeia interdiscursiva foi sendo gradualmente construída, completada e revista durante os meses em que as oficinas de leitura foram desenvolvidas.

Ao ser utilizada como lócus de construção de sentidos para as leituras e como meio pelo qual os sujeitos surdos puderam interagir discursivamente com os textos, com suas histórias e com o conjunto das oficinas, a LIBRAS possibilitou que os sujeitos surdos viessem a reconhecer-se como leitores. Observou-se, também, que a valorização da LIBRAS e seu uso no espaço das oficinas tiveram um papel fundamental na constituição do eu (surdo) de cada sujeito e, portanto, houve uma transformação relativa à forma pela qual passaram a olhar-se e a serem olhados pelo outro: como falantes da LIBRAS.

Esse fato vem enfatizar a importância da presença da LIBRAS e, portanto, de surdos adultos, participantes ativos das questões políticas que envolvem a surdez, quando se pensa numa real transformação das bases ideológicas que subjazem os discursos sobre o ser surdo, dando sustentação, assim, aos estudos que apontam a importância do desenvolvimento de uma educação bilíngue para surdos como lugar de constituição das identidades e dos aspectos culturais da comunidade surda.

As oficinas possibilitaram, ainda, que as diversas linguagens sociais constitutivas da língua portuguesa e presentes nos diferentes textos abordados fossem postas em confronto com a diversidade de linguagens também constitutivas da LIBRAS e, no embate estabelecido, houve diálogo e construção de sentidos. Esse diálogo (ou interação interdiscursiva) possibilitou que um trabalho de leitura fosse então realizado.

Tem-se a clareza, no entanto, de que os processos observados neste estudo são apenas indicativos para que uma transformação da educação de e para surdos seja realizada; no entanto, eles apontam para aspectos importantes que merecem sofrer uma redefinição e uma reflexão, principalmente no que se refere ao desenvolvimento dos sujeitos como leitores, dando subsídios para que novas pesquisas, na esfera educacional, sejam delineadas.

Notas

1 As datas dos trabalhos referidos neste estudo correspondem à do copyright da primeira edição ou do ano em que a obra foi escrita.
2 Plann (1993) aponta que, contrariamente ao que é descrito nos registros da história, o primeiro professor de surdos foi Frei Vicente de Santo Domingo, também no século XVI. Este foi o responsável pela educação e pelo ensino das artes ao pintor espanhol surdo El Mudo (Juan Fernández Navarrete), realizado no Monastério La Estrella, em Logroño, Espanha. Possivelmente, segundo a autora, esse fato não consta dos anais da história pelo fato de o interesse da educação de El Mudo ter sido o ensino da leitura, da escrita e das artes, e não o da fala como o desenvolvido por Ponce de Leon. Esse dado vem dar sustentação às afirmações anteriores sobre o privilégio das questões lingüísticas quando se pensa na educação de surdos.
3 As duas obras comentadas por Rée (1999) são: Miguel de Cervantes, The Glass Graduate, in Exemplary Stories, 1613; Marin Mercenne, Traitez de la Voix et des Chants, Prop. LI (Si l’on peut faire parler les muets’).
4 Ênfase adicionada.
5 Segundo relato de Laurent Clerc, ex-aluno e posteriormente professor do Instituto, os sinais metódicos eram utilizados apenas em sala de aula, permitindo-se, assim, o uso livre da língua de sinais francesa quando em outras atividades e nos dormitórios (Fischer, 1993).
6 A palavra voz está sendo usada segundo o conceito bakhtiniano do termo.
7 Por tempo/espaço cognitivo, compreende-se a arena na qual toda percepção é revelada (Holquist, 1990)

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