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Ronice Müller de Quadros
Ronice Müller de Quadros
Professora e Investigadora
O 'bi' em bilingüismo na educação de surdos
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Publicado em 2005
Surdez e bilingüismo. 1ed. Porto Alegre : Editora Mediação, v.1, p. 26-36.
Ronice Müller de Quadros
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Resumo

A proposta deste capítulo será definir bilingüismo em contextos educacionais, mais especificamente, no contexto da educação de surdos no Brasil. Há várias discussões sobre bilingüismo sabidamente muito conflitantes. A questão norteadora do texto será a seguinte: O que é o ‘bi’ em bilingüismo na educação de surdos brasileiros? Na tentativa de responder a esta questão, percebe-se que os aspectos relacionados às propostas bilíngües, em geral, extrapolam as questões lingüísticas, sendo determinadas por questões políticas. Nesse sentido, apresentar-se-á uma reflexão sobre o caso específico das políticas públicas de educação de surdos que acabam interferindo nas formas que o ‘bi’ do bilingüismo passa a tomar nas experiências brasileiras.

Bi(multi)lingüismo em meio a tantos desencontros

O Brasil, assim como vários outros países do Continente Americano, é identificado como país monolíngüe. No entanto, também é sabido que tais países, a exemplo do próprio Brasil, apresentam vários grupos falantes de outras línguas caracterizando o status bilíngüe desses países, embora não reconhecidos como tais. Interessantemente que na história dos países europeus também as políticas lingüísticas sempre favoreçam alguma língua em detrimento de outras (Grosjean, 1982). Assim, percebe-se um movimento político que obscurece a realidade lingüística de vários países, dentre eles a do Brasil.

Pensa-se que no Brasil todo falante adquire a Língua Portuguesa como primeira língua (L1). Ignora-se, portanto, que temos falantes de famílias imigrantes (japoneses, alemães, italianos, espanhóis, etc.), que temos as várias comunidades indígenas que falam várias línguas nativas (mais de 170 línguas indígenas de famílias totalmente diferentes) e que temos, também, “falantes”, digo, “sinalizantes” da língua de sinais brasileira (os surdos e familiares de surdos brasileiros). Todas estas línguas faladas no Brasil, também são línguas brasileiras caracterizando o país que o Brasil realmente é, um país multilíngüe.

Neste contexto, percebe-se que definir bilingüismo depende de várias questões de ordem política, social e cultural. Assim como nos Estados Unidos, no Brasil as políticas lingüísticas têm a tendência de “subtrair” as línguas, ao invés de utilizar uma política lingüística “aditiva” (no sentido de Cummins, 2003). Em outros termos, a idéia equivocada é de que uma língua leva ao não uso da outra e, neste caso “subtrai”. Assim, não é incentivado o ensino de línguas com qualidade, não é trazido para dentro do espaço escolar a multiplicidade lingüística brasileira. Pelo contrário, o ensino da língua portuguesa é quase que exclusivo, uma vez que representa a língua “oficial” do país. As políticas públicas de educação são de “assimilação” não só lingüística, mas cultural também. Se o aluno não consegue assimilar um currículo em português organizado de uma determinada forma, ele é visto como não capaz. Este ainda é o modelo de escola inclusiva que temos em nosso país.

E quanto às demais línguas faladas e sinalizadas no país? Por que tais línguas não dividem espaços dentro das escolas?

Em uma perspectiva “aditiva”, saber mais línguas apresenta vantagens tanto no campo cognitivo quanto nos campos políticos, sociais e culturais. As crianças são estimuladas a conhecer diferentes formas de organizar o mundo através das diferentes línguas em diferentes contextos culturais.

More than 150 research studies conducted during the past 35 years strongly support what Goethe, the German philosopher, once said: The person who knows only one language does not truly know that language. The research suggests that bilingual children may also develop more flexibility in their thinking as a result of processing information through two different languages.
(Cummins, 2003) 1

Tentando buscar encontrar o “bi(multi)lingüismo” em meio a tantos desencontros, percebe-se que estamos diante de grupos sociais que utilizam diferentes línguas em diferentes contextos, em diferentes espaços. Bilingüismo, então, pode, entre tantas possíveis definições, assim ser definido: o uso que as pessoas fazem de diferentes línguas (duas ou mais) em diferentes contextos sociais. Aqui já temos uma relativização do “bi” em bilingüismo, uma vez que genericamente o termo é usado para se referir ao uso de mais de uma língua, apesar de haver o uso do termo “multilingüe” neste sentido.

No contexto bilíngüe, as pessoas usam diferentes línguas em contextos completamente diferenciados. Vale lembrar um relato de um colega indiano sobre sua situação multilíngüe não reconhecida por ele mesmo, uma vez que, ao ser perguntado sobre quantas línguas falava, respondia que falava apenas uma língua. Somente após algum tempo, tomou consciência de que, de fato, falava cinco línguas diferentes. Por que ele não reconhecia inicialmente que falava todas estas línguas? Porque utilizava cada língua em um contexto determinado (uma língua na sala de aula, outra língua em cerimoniais religiosos, outra em casa e assim por diante) e, também, porque ele era um falante único.

Conhecer várias línguas não representa uma ameaça, mas sim abre um leque de manifestações lingüísticas dependentes de diferentes contextos. Vale mencionar ainda de mais caso: uma criança ouvinte de pais surdos com uma babá ouvinte, além de outros familiares ouvintes. Esta criança já produzia algumas combinações de sinais da língua de sinais brasileira, bem como algumas combinações de palavras do português. Como tínhamos interesse em ver a sua produção em sinais, fizemos algumas perguntas em sinais para ver suas respostas, embora fossemos ouvintes sinalizantes da língua de sinais. Ela prontamente respondeu, mas em português.

Em seguida, fez alguns sinais ao se dirigir ao seu pai sinalizante da língua de sinais brasileira. Neste caso, a criança é bilíngüe e faz a mudança do código (codeswitching) de acordo com o interlocutor ouvinte ou interlocutor surdo de forma apropriada. Vemos aqui que as línguas tornam-se opções que são ativadas pelos falantes/sinalizantes diante das pessoas com quem fala, das funções que as línguas podem desempenhar e dos contextos em que podem estar inseridas.

O ‘bi’ em bilingüismo: o caso da educação de surdos

Se não fosse a diferença na modalidade, todos teriam tranqüilidade em reconhecer as pessoas surdas enquanto bilíngües. Elas nascem no Brasil e, portanto, falariam a língua portuguesa. Convivem com surdos, portanto, usam a língua de sinais brasileira. No entanto, não é dessa forma que caracterizamos a situação bilíngüe dos surdos brasileiros, se é que podemos considerá-los genericamente com este status. Vários aspectos devem ser considerados no caso específico dos surdos:

  1. A modalidade das línguas: visual-espacial e oral-auditiva;
  2. Surdos filhos pais ouvintes: os pais não conhecem a língua de sinais brasileira;
  3. O contexto de aquisição da língua de sinais: um contexto atípico, uma vez que a língua é adquirida tardiamente, mas, mesmo assim tem status de L1;
  4. A língua portuguesa representa uma ameaça para os surdos;
  5. A idealização institucional do status bilíngüe para os surdos: as políticas públicas determinam que os surdos “devem” aprender português;
  6. Os surdos querem aprender na língua de sinais;
  7. Revisão do status do português pelos próprios surdos: reconstrução de um significado social a partir dos próprios surdos.

Pensar no “bi” do bilingüismo na educação de surdos requer, minimamente, pensar nas considerações apresentadas. O fato de as línguas de sinais serem adquiridas pelos surdos de forma assistemática, ou seja, de forma espontânea diante do encontro surdo-surdo 2, assim como acontece a aquisição de quaisquer outras línguas por outros falantes de outros grupos sociais, caracteriza o processo de aquisição da linguagem em sua plenitude. Este fato também implica rever o processo de aquisição da língua falada no país, no caso do Brasil, da língua portuguesa, uma vez que este acontece através do ensino. Os surdos, em sua grande maioria, crescem em famílias de pais que falam e ouvem o português e não adquirem esta língua (apesar de estarem “imersos” 3).

Eles olham as bocas se movimentando e sabem que, através destes movimentos, as pessoas expressam pensamentos e idéias, mas, mesmo havendo tal percepção, não compreendem esta língua. Em alguns casos, passam por processos terapêuticos intensos e chegam a adquirir a língua portuguesa, mas de forma sistemática e limitada. A diferença na modalidade da língua e do acesso a ela implica diferença na forma de aquisição dessa língua. Os surdos privilegiam o visual-espacial e a língua de sinais é visual-espacial. Vários estudos (Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo-Martin, 1986; Petitto, 1987; Karnopp, 1994; Quadros, 1995) evidenciam que o processo das crianças surdas adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças adquirindo uma língua oral-auditiva. O fato de o processo ser concretizado através de línguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvolva em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como esse processo vem sendo tratado na educação de surdos.

As crianças surdas têm tido acesso à língua de sinais brasileira tardiamente, pois as escolas não oportunizam o encontro adulto surdo-criança surda. Elas encontram os surdos adultos na fase da adolescência, normalmente, por acaso. Como diz Perlin (1998), este encontro representa o encontro com o mundo:

É uma identidade subordinada com o semelhante surdo, como muitos surdos narram. Ela se parece a um imã para a questão de identidades cruzadas. Esse fato é citado pelos surdos e particularmente sinalizado por uma mulher surda de 25 anos: aquilo no momento de meu encontro com os outros surdos era o igual que eu queria, tinha a comunicação que eu queria. Aquilo que identificavam eles identificava a mim também e fazia ser eu mesma, igual. O encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem.
(Perlin, 1998:54)

A partir desta compreensão, as crianças surdas precisam ter a chance de desfrutar do encontro surdo-surdo. Os pais ouvintes precisam descobrir este mundo essencialmente visual-espacial e conhecer a língua de sinais. As crianças surdas e seus pais ouvintes poderiam compartilhar o bilingüismo: língua portuguesa e língua de sinais brasileira e ir além descobrindo os vieses das culturas e identidades que se entrecruzam. Possibilitar a aquisição da linguagem das crianças surdas implicará um desenvolvimento mais consistente do seu processo escolar. Segundo Cummins (2003), crianças que vão para a escola com uma língua consolidada, terão possibilidades de desenvolver habilidades de leitura e escrita com muito mais consistência. Assim, crianças surdas precisam ter acesso à língua de sinais com sinalizantes fluentes desta língua muito cedo. Estes sinalizantes são pessoas que, normalmente, não fazem parte do círculo de pessoas que a criança usualmente teria contato. Os pais terão que conhecer a comunidade surda que usa esta língua.

Este contexto bilíngüe é completamente atípico de outros contextos bilíngües estudados, uma vez que envolve modalidades de línguas diferentes. Descobrir os laços de tais cruzamentos e das fronteiras que são estabelecidas é desafiador tanto para os surdos como para os ouvintes envolvidos.

Diante de uma política de subtração lingüística aplicada aos surdos em que o português deveria ser a única língua a ser adquirida, os surdos negam esta língua por ter representado por muitos anos uma ameaça ao uso da língua de sinais. Essa realidade implica processos de delimitação de fronteiras e de poderes. Os surdos têm razão em assumir uma postura defensiva diante do português, uma vez que esta língua foi tida (ainda é tida) como a língua melhor, a língua oficial, a língua superior em oposição à língua de sinais brasileira representada como uma opção, como um instrumento utilizado apenas caso o aluno surdo não tenha conseguido acessar a língua (entende-se língua aqui, como a língua portuguesa e, portanto, os sinais como não-língua). Nas tessituras das propostas atuais de educação de surdos, encontramos muitos indícios desta postura: a língua de sinais é vista como secundária. Os surdos politizados já não aceitam mais isso e, portanto, implementam um movimento de resistência ainda no sentido de subtração, uma vez que o movimento é de oposição.

Apesar disso, percebe-se que o espaço de negociação é um espaço possível. Entre algumas lideranças surdas, há movimentos de resistência buscando um bilingüismo aditivo considerando o português como um instrumento essencial de poder. Nesse sentido, no caso dos surdos, se é bilíngüe, porque a língua portuguesa passa a ter uma representação social diferenciada para os próprios surdos e não porque as políticas públicas determinam que a educação de surdos deva ser bilíngüe.

No entanto, as propostas bilíngües estão estruturadas muito mais no sentido de garantir que o ensino de português mantenha-se enquanto a língua de acesso ao conhecimento. A língua de sinais brasileira parece estar sendo admitida, mas o português mantém-se como a língua mais importante dos espaços escolares. Inclusive, percebe-se que o uso “instrumental” da língua de sinais sustenta as políticas públicas de educação de surdos em nome da “inclusão”. As evidências das pesquisas em relação ao status das línguas de sinais incomodam as propostas, mas não chegam a ser devidamente consideradas quando da sua elaboração. A língua de sinais, ao ser introduzida dentro dos espaços escolares, passa a ser coadjuvante no processo, enquanto o português mantém-se com o papel principal. As implicações disso no processo de ensinar-aprender caracterizam práticas de exclusão.

Os surdos querem aprender na língua de sinais, ou seja, a língua de sinais é a privilegiada como língua de instrução. O significado disso vai além da questão puramente lingüística. Situa-se, sim, no campo político. Os surdos estão se afirmando enquanto grupo social com base nas relações de diferença. Enquanto diferentes daqueles que se consideram iguais, ou seja, os ouvintes, os surdos buscam estratégias de resistência e de autoafirmação. São eles que sabem sobre a língua de sinais, são eles que sabem ensinar os surdos, são eles que são visuais-espaciais. Com base nisso, a questão da língua passa a ser também um instrumento de poder nas relações com as crianças e alunos surdos. Sendo a língua de sinais brasileira a língua de instrução, os professores surdos (e/ou instrutores surdos) são os que mais dominam a língua. Quando são professores, são os mais indicados para garantirem o processo de aquisição da língua. Mesmo havendo professores ouvintes altamente qualificados e sinalizantes da língua de sinais, eles passam a ter um status diferenciado diante dos professores surdos. Essa circunstância situa-se no campo político e se faz necessária. O equilíbrio das relações somente passará a existir diante da consolidação da auto-estima dos próprios surdos e dos demais professores. A certeza dos limites existentes nas fronteiras entre o mundo dos surdos e o mundo dos ouvintes possibilitará um equilíbrio nas relações de poder e possibilidades de negociação. Isso reflete os espaços possíveis que as línguas podem ocupar na educação de surdos, passando a consolidar um bilingüismo aditivo, um bilingüismo autorizado e fortalecido.

Pensando em uma educação de surdos: um outro bilingüismo

Como as escolas poderiam estar estruturadas no sentido de se pensar em uma educação bilíngüe lingüística e culturalmente aditiva? Esta pergunta foi formulada por Cummins (2003) chamando a atenção para as pesquisas e os resultados encontrados nos últimos anos em relação à educação intercultural. O “como” poderá ser desvelado, primeiramente, se ao se pensar as políticas educacionais, se voltar para o que as pesquisas têm denunciado, identificado e proposto nos últimos anos.

Em relação à educação de surdos, as pesquisas apresentam várias evidências de que os surdos formam grupos sociais com identidades, culturas e línguas específicas (Ferreira-Brito, 1993; Quadros, 1997a; Skliar, 1997a, 1997b, 1997c, 1998; Perlin, 1998; Miranda, 2001). O fato de os grupos surdos brasileiros terem uma língua visual-espacial, a língua de sinais brasileira, determina uma reestruturação da forma standard de se entender uma escola inclusiva no Brasil. A questão da língua implica mudanças na arquitetura, nos espaços, nas formas de interação, nas formações de professores bilíngües, de professores surdos e de intérpretes de língua de sinais.

A questão da língua implica reconhecimento do status da língua nos níveis lingüístico, cultural, social e político.

No nível lingüístico, temos as investigações de várias línguas de sinais desde Stokoe na década de 60 até o presente oferecendo evidências que tais línguas apresentam todos os níveis de análise das teorias lingüísticas. Atualmente, não há dúvidas em relação ao estatuto lingüístico das línguas de sinais. Interessantemente, nos últimos anos, as pesquisas lingüísticas estão atentas aos efeitos de modalidade das línguas para as teorias com o intuito de identificar não apenas o que era “igual” entre línguas faladas e línguas sinalizadas, mas também o que era “diferente” com o objetivo de enriquecer as teorias lingüísticas atuais. A pergunta que antes era “Como a lingüística se aplica às línguas de sinais ou dá conta das línguas de sinais?” passou a ser “Como as línguas de sinais podem contribuir para os estudos lingüísticos?” (Lillo-Martin, 2002; Liddell, 1990, 1995, 2000; Rathmann e Mathur, 2002; Quadros, 2002). Para além das questões de ordem teórica, observam-se também efeitos de modalidade da língua na atuação dos intérpretes de língua de sinais e na forma de aprender e ensinar os surdos.

Quando a criança surda tem a chance de no início do seu desenvolvimento contar com pais dispostos a aprenderem a língua de sinais, com adultos surdos, com colegas surdos, quando elas narrarem-se em sinais e terem escuta em sinais, a dimensão do seu processo educacional será outra (Souza, 2000). As crianças estarão transferindo seus conhecimentos adquiridos na língua de sinais para o espaço escolar. O fato de passar a ter contato com a língua portuguesa com significado trazendo seus conceitos adquiridos na sua própria língua, possibilitará um processo muito mais significativo. A leitura e a escrita podem passar a ter outro significado social, se a criança sinalizar sobre elas. Vale ainda destacar que, no campo do letramento, se as crianças surdas se apropriarem da leitura e da escrita de sinais, isso potencializará a aquisição da leitura e escrita do português.

No nível sócio-cultural, temos um movimento entre os pesquisadores, em especial, aqueles que são surdos, que apresentam vieses dos próprios surdos definindo surdez numa outra dimensão. Como diz Wrigley (1996:13):

Contrário ao modo como muitos definem surdez – isto é, como um impedimento auditivo – pessoas surdas definem-se em termos culturais e lingüísticos.

No caso dos surdos, há uma identificação de uma cultura e identidade surdas 4. Essa cultura é multifacetada, mas apresenta características que são específicas, ela traduz-se de forma visual. As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso têm características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Ela se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir dos próprios surdos que se garantiram através de movimentos de resistência com a fundação de organizações administradas essencialmente por surdos. Em muitas dessas organizações, ouvintes não são permitidos no corpo administrativo. O que acontece aqui é o clamor pela coletividade surda com a constituição de suas regras e de seus princípios e um confronto de poderes. Nesse espaço com fronteiras delimitadas por surdos é que se constitui a cultura surda. Percebe-se aqui também a dimensão política da organização destes grupos.

Perlin (1998) analisa alguns pontos a respeito da identidade surda calcando seus ensaios na questão do ser igual, da proximidade enquanto necessidade da pessoa surda. A autora usa a expressão “óculos surdos”, diga-se de passagem, uma expressão especialmente visual, uma expressão essencialmente surda.

Para além da questão da língua, portanto, o bilingüismo na educação de surdos representa questões políticas, sociais e culturais. Nesse sentido, a educação de surdos em uma perspectiva bilíngüe deve ter um currículo organizado em uma perspectiva visualespacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua da criança, a língua de sinais brasileira. É a proposição da inversão, assim está-se reconhecendo a diferença. A língua passa a ser, então, o instrumento que traduz todas as relações e intenções do processo que se concretiza através das interações sociais. Os discursos em uma determinada língua serão organizados e, também, determinados pela língua utilizada como a língua de instrução. Ao expressar um pensamento em língua de sinais, o discurso utilizado na língua de sinais utiliza uma dimensão visual que não é captada por uma língua oral-auditiva, e, da mesma forma, o oposto é verdadeiro. Além desse nível de representação lingüística, os discursos vão expressar relações de poder. Ao optar-se por manter a língua portuguesa como a língua referencial da educação de surdos, já se tem indício das intenções perpassadas em função dos efeitos sociais que se observam. Assim, prestar atenção nos interlocutores dos alunos surdos, também passa a apresentar papel crucial, pois os discursos reproduzidos nas línguas utilizadas representam as relações existentes na escola.

Segundo Skliar e Quadros (no prelo), a realidade da educação bilíngüe, que vem se constituindo em algumas partes do Brasil, está diretamente relacionada a variáveis ligadas às trajetórias dos próprios surdos que estão sendo marcadas através de diferentes pesquisas (Skliar, 1997a, 1997b, 1997c, 1998, 2000, 2001; Quadros, 1997a, 1997b, 2000; Perlin, 1998, 2000; Perlin e Quadros, 2003; Miranda, 2001). Os autores citam algumas destas variáveis listadas a seguir:

  1. a reconstrução dos problemas que determinam a educação de surdos em uma perspectiva bilíngüe invertendo a lógica das relações partindo da pespectiva surda com análises multi-dimensionais do processo educacional;
  2. a identificação dos significados da surdez e do ser surdo no contexto educacional;
  3. a participação dos surdos no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação das políticas educacionais;
  4. a continuidade do projeto educacional;
  5. a revisão das arquiteturas e ideologias intrínsecas ao projeto político-pedagógico idealizado.

Assim, a educação de surdos na perspectiva bilíngüe toma uma forma que transcende as questões puramente lingüísticas. Para além da língua de sinais e do português, esta educação situa-se dentro do contexto de garantia de acesso e permanência na escola. Essa escola está sendo definida pelos próprios movimentos surdos: marca fundamental da consolidação de uma educação de surdos em um país que se entende equivocadamente monolíngüe. O confronto se faz necessário para que se constitua uma educação verdadeira: multilíngüe e multicultural. Assim, no Brasil, o “bi” do bilingüismo apresenta outras dimensões.

Notas

1 Tradução possível: Mais de 150 pesquisas realizadas nos últimos 35 anos evidenciam o que Goethe, filósofo alemão, disse uma vez: a pessoa que conhece apenas uma língua, não a conhece de fato. As pesquisas sugerem que crianças bilíngües também podem desenvolver mais flexibilidade cognitiva, em função de terem o processamento de informação através de duas diferentes línguas.
2 “Considerando que a cultura surda mostra uma nostalgia curiosa em relação a uma “comunidade imaginária”e que é barbaramente ou profundamente transformada, senão destruída no contato com a cultura hegemônica, ela age como reguladora da formação da identidade surda, que se reaviva novamente no encontro surdo-surdo. Este encontro é um elemento chave para o modo de produção cultural ou de identidade, pois implica num impacto na “vida interior”, e lembra da centralidade da cultura na construção da subjetividade do sujeito surdo e na construção da identidade como pessoa e como agente pessoal”. (Miranda, 2001). Grifo da autora.
3 Vale destacar que “imerso” aqui se refere a estar junto e convivendo com pessoas falantes da língua portuguesa. Isso não significa que no caso desses surdos, eles tenham “acesso” real à língua portuguesa, pois por ser uma língua oral-auditiva, não há imersão no sentido de estar em contato sistemático com a língua. Tanto é verdade que os surdos não adquirem a língua portuguesa espontaneamente simplesmente por conviverem com pessoas falantes de português.
4 Entende-se cultura surda como a identidade cultural de um grupo de surdos que se define enquanto grupo diferente de outros grupos. Como diz Perlin (1998:54), os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva. “Identidade” é mencionada aqui no sentido explicitado por Silva (2000:69): como o conjunto de características que distinguem os diferentes grupos sociais e culturais entre si. No campo dos estudos culturais, a identidade cultural só pode ser entendida como um processo social discursivo.

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