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Neiva de Aquino Albres
Neiva de Aquino Albres
Fonoaudióloga
Desculpe, não entendi. Você pode filmar? A atuação de tutores em ambiente virtual de ensino-aprendizagem para formação de professores surdos de Libras
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Publicado em 2010
IV Congresso Brasileiro de Educação Especial - CBEE
Neiva de Aquino Albres
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Resumo

O objetivo do presente trabalho é analisar a atuação de tutores em ambiente virtual de ensino-aprendizagem para formação de professores surdos de libras. O referencial teórico se baseia em alguns fundamentos da perspectiva sociocultural sugeridos por Vygotsky, especialmente as ideias de desenvolvimento e mediação, e por Bakhtin, particularmente as noções de dialogia e polifonia. Faremos uso dos princípios do método de Vygotsky (1998) em que se analisam os processos e não o objeto. A análise consistirá, essencialmente, de uma explicação e não de descrição de objetos, revelando as relações dinâmicas ou causais. Essa abordagem metodológica “articula o nível microgenético das interações sociais com o exame do funcionamento dialógico-discursivo” (GÓES, 2000), ou seja, oferece a possibilidade de se relacionar elementos de episódios específicos a condições macrossociais. Analisamos três episódios onde ocorrem as interações discursivas entre tutores e alunos surdos mediadas por uma plataforma disponível através da internet, chamada de ambiente virtual de ensino aprendizagem – AVEA, no qual os alunos postam dúvidas a respeito do conteúdo das disciplinas do curso para serem respondidas pelo tutor no recurso denominado de fórum. O foco da análise está no modo como os tutores criam estratégias verbais e não verbais de dialogar com os alunos surdos adultos. Considerando as condições dos alunos que tem português como segunda língua, tutores criam novas condições interativas. Constatamos que nessas interações o dialogismo e a polifonia ocupam um lugar de destaque e a aprendizagem é mediada pela palavra, pela imagem e pelo sinal proferido também em enunciados do tutor para o aluno. A construção de significados se deu a partir de uma rede discursiva e hipertextual que permeou a interação.

Introdução

O tema deste trabalho é sobre as interações discursivas em ambiente virtual de aprendizagem, mais precisamente na análise do modo como os tutores criam estratégias verbais e não verbais de dialogar com os alunos surdos adultos.

O titulo do trabalho “Desculpe, não entendi. Você pode filmar?”, foi motivada pelo constante pedido dos alunos para o uso de vídeos na interação via fórum e isso se dá pelo fato de a maioria dos alunos ser formada por surdos usuários da libras (língua de modalidade visual).

Esta pesquisa objetiva estudar interações discursivas em ambientes virtuais de ensino-aprendizagem para formação de professores para o ensino de Libras e os recursos de mediação, proporcionados pelos tutores, usados para o acesso aos bens culturais. A Lei Federal n.o 10.436 de 2002 reconheceu a língua brasileira de sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão, sendo regulamentada pelo Decreto n.o 5.696 (2005) prevendo a formação de profissionais para trabalharem no ensino dessa língua em curso de Letras Libras e em cursos de especialização em Libras.

O primeiro curso de licenciatura em Letras com habilitação em Língua Brasileira de Sinais (libras) foi criando em 2006, na modalidade a distância. Trata-se de uma parceria entre o Ministério da Educação, a Secretaria de Educação a Distância e nove instituições de ensino, entre elas a USP, coordenadas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nessa modalidade de ensino, denomina-se de pólo cada instituição que executa as ações do curso. Embora a prioridade no preenchimento das vagas ofertadas por esse curso tenha sido dada a surdos, em alguns pólos há também alunos ouvintes, o que não é o caso do pólo da USP, onde todos os alunos são surdos.

Estudos sobre interação em atividades educacionais não-presenciais mediadas pela internet têm tido cada vez maior relevância nas pesquisas sobre a inserção de tecnologias de informação e comunicação (TIC) na Educação. O panorama dessas pesquisas é o Ensino a Distância, justificado pelo fato de que é nessa modalidade de educação que emerge a problemática teórica e prática da ação interativa entre tutor-aluno, por exemplo, em fórum, realizado em ambientes virtuais de ensino-aprendizagem - AVEA.

“Nesses ambientes os protagonistas da comunicação precisam lançar mão de estratégias sígnicas para realizar a interação verbal e superar as coerções de ordem técnica, espácio-temporal e afetiva, o que os leva a produzir novas formas enunciativas” (GIORDAN e DOTTA, 2006).

Com o objetivo de contribuir para o conhecimento sobre o uso de ambientes virtuais para fins educacionais, o objetivo central deste trabalho é desenvolver a análise de um processo de intervenção de tutoria para alunos surdos, por meio da investigação de situações reais de interação entre tutores e alunos. Partimos da hipótese fundamental de que o pensamento se constitui em situações mediadas por linguagens diversificadas (VYGOTSKY, 2000).

Na pesquisa aqui apresentada, o foco será a identificação de recursos usados pelo tutor no fórum, das estratégias discursivas a partir do uso de AVEA.

O artigo está organizado de forma a apresentar o tema, a metodologia e a fundamentação teórica. Na subseção “Curso Letras Libras e a mediação da aprendizagem em fórum”, descrevemos um pouco o formato do curso Letras Libras EaD e apresentamos os episódios selecionados com suas respectivas análises. Em seguida apresentamos as conclusões apreendidas com este trabalho.

Referencial teórico

No quadro teórico, nos fundamentamos na perspectiva sociocultural de Vygotsky, especialmente nas idéias de aprendizagem, desenvolvimento e mediação, e por Bakhtin, particularmente nas noções de dialogia e polifonia.

A relação de aprendizagem se dá entre o eu e o outro, em encontros presenciais ou não. Para Vygotsky (1998) “o signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho” (p.70). Essa analogia é proposta em vista a ação mediadora que caracteriza um instrumento e um signo. Ele considera que “o processo interpessoal é transformado num processo, ou seja, primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual” (p.75). Considera que “a internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo como base as operações com signos” (p. 75)

Segundo Bakhtin (2004) o dialogismo pode ser observado no fato de que um enunciado sempre se relaciona com enunciados anteriormente produzidos. Todo discurso é constituído ou permeado pelo discurso do outro, que não necessariamente seja igual, pois podem ser discursos contrários, conflituosos, portanto, múltiplos. Há uma multiplicidade de vozes presentes no discurso e das relações que entre elas se estabelecem obrigatoriamente.

Outra consideração importante, defendida por Bakhtin (1992, p.41), é que “a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, e complementa esta afirmação ao mencionar que as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”.

Com base nesses conceitos analisamos comparativamente as formas enunciativas presentes em três episódios selecionados do ambiente virtual do curso Letras Libras e exploramos algumas características das interações verbais e não verbais emergentes na comunicação mediada em fórum.

Objetivo e Metodologia

Na investigação sobre a constituição de sujeitos, em especial no que concerne a processos que se apresenta em contextos educativos, o campo da educação pautada na matriz histórico-cultural vêm recorrendo a uma abordagem metodológica referida como “análise microgenética”.

“De um modo geral, trata-se de uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos” (GÓES, 2000, p.9).

A abordagem da pesquisa será qualitativa e os métodos de coleta de dados incluirão análise de corpus de interações virtuais entre alunos e tutores. Trata-se de uma pesquisa participante, uma vez que a autora da pesquisa atua como tutora do curso em análise.

Segundo Góes (2000), a concepção e termo “genética” usado nessa matriz se origina nas proposições de Vygotsky sobre o funcionamento humano, e, a análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua gênese social e as transformações do curso de eventos.

Na análise há uma centralidade do entrelaçamento das dimensões cultural, histórica e semiótica no estudo do funcionamento humano.

Propomos-nos a refletir sobre a seguinte pergunta: quais os recursos interativos usados por tutores em fórum de ambiente virtual de ensino-aprendizagem – AVEA para atender aos alunos surdos usuários de libras como primeira língua e Português como segunda língua?

O curso foi composto de aproximadamente 37 cursos, cada qual com aproximadamente 7 fóruns distribuídos em cada curso. Cada fórum de curso atendia a um capítulo do material escrito pelo professor, material este denominado de texto base da disciplina. As discussões sobre as temáticas eram realizadas presencialmente ou pelo fórum do AVEA e o tutor era a pessoa responsável por esclarecer as dúvidas e promover o aprendizado por meio da discussão coletiva. Selecionamos três fóruns de diferentes disciplinas para analisar as interações entre tutor e alunos surdos.

Desenvolvimento - Curso Letras Libras e a mediação da aprendizagem em fórum

Educação a distância - EaD é uma modalidade de ensino que privilegia um processo autônomo de aprendizagem e se diferencia do ensino presencial pelo seu modo de mediação (MEC, Decreto 5.622, 2005). A EaD requer do estudante organização, disciplina e perseverança, e da gestão, uma organização multidisciplinar e cooperativa (CATAPAN, 2003).

A modalidade de Educação a distância não se diferencia da modalidade de ensino presencial em seus elementos fundamentais e, sim, no seu modo de mediação pedagógica. Na modalidade a distância, o tempo didático diferencia-se do tempo de aprendizagem. A organização das situações de aprendizagem requer uma equipe multiprofissional, bem como outros recursos e outros meios de comunicação (CATAPAN, MALLMANN, RONCARELI, 2006).

Desde o início da EaD, ela esteve intimamente relacionada a escrita, no uso da escrita, o conhecimento se torna linear e passível de reprodução e distribuição. A escrita está relacionada diretamente com a evolução da ciência. Todavia, os surdos têm dificuldades em dominar o código escrito, pois a língua portuguesa é uma escrita alfabética e está pautada na oralidade (CAPOVILLA e RAPHAEL, 2000).

Giordan (2006, p. 109) destaca que “hipermídias são novos meios informacionais e comunicacionais que articulam representações visuais animadas, representações sonoras e o próprio texto escrito, que também pode ganhar movimento.” Na construção de uma hipermídia, as cadeias de sentidos de toda a natureza (escrita, imagem, movimento) encontram-se no mesmo espaço a espera de ser acessado permitindo interações. Essa interação ocorre independente do nível de desenvolvimento de cada um, da classe social, da cor, da cultura ou mesmo da ideologia. Há um ideário em Educação a Distância de que em um primeiro momento, o movimento da aprendizagem não depende da interferência imediata do professor, do monitor ou do tutor, mas, essencialmente, de como as situações de ensinoaprendizagem são organizadas, sistematizadas e apresentadas.

Duarte (2001) faz críticas às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana como o lema “aprender a aprender”. Ele considera sempre ser necessário um mediador e o uso de signos em comum para que a aprendizagem ocorra. Defende a necessidade de uma leitura de pedagogia crítica e historicizadora.

O curso Letras Libras UFSC foi criado em 2006 e o término da primeira turma está previsto para 2010. As aulas presenciais acontecem quinzenalmente aos sábados com videoconferências – VCs. As VCs são apresentadas pelos professores das disciplinas e acompanhadas pelos alunos e pelos tutores que têm como tarefa desenvolver reflexões e atividades presencialmente no pólo. Fica disponível para o aluno o AVEA para interação virtual, postagem das dúvidas e envio de atividades acadêmicas.

“O curso de Letras Libras tem como língua de instrução a Língua Brasileira de Sinais, ou seja, todos os conteúdos estão sendo gerados nessa língua. No entanto, os textos originais escritos pelos professores-autores de cada disciplina são apresentados na Língua Portuguesa, na sua versão escrita” (QUADROS, 2008, p. 169).

Constatamos diferentes espaços propícios para que a aprendizagem ocorra nesse curso, entre eles: vídeo-conferência, leitura do hipertexto, fóruns, chats e realização de atividades.

  1. Videoconferências - VCs: Permite a comunicação entre os pólos.É o momento da aula presencial, com os aparelhos dos pólos conectados ao pólo da UFSC. Nas VCs é permitido o contacto visual e sonoro entre professor e alunos que estão em lugares diferentes. O particular do curso Letras Libras é o uso da língua de sinais nas VCs, quando os professores eram ouvintes tinham a presença de intérprete de Libras ao lado (figura 1).
  2. Hipertexto: O curso é construído a partir a elaboração de um material para cada curso, disponibilizado em pdf. e denominado e “texto base”. Pelas necessidades educacionais dos alunos surdos os conteúdos didáticos, como: “texto base” e enunciados das atividades são disponibilizados no AVEA traduzidos para a libras por uma equipe de designers instrucionais formada por surdos e ouvintes (figura 2).
  3. Fóruns de discussão: Esse espaço virtual tem como objetivo propor Discussões temáticas que estejam envolvidas como as respectivas disciplinas. A necessidade de esclarecimento é fundamental e, para isso, os professores sugerem a utilização de fóruns de discussão no AVEA. Cada pólo cria os seus fóruns e as discussões são mediadas por seus respectivos. No fórum é possível a introdução de imagens, texto e vídeos em libras para interação (figura 3).
  4. Chat: Interação por meio de texto, um espaço síncrono. Quando tutores e alunos marcam uma discussão ao mesmo tempo. O chat exige que seus participantes sejam leitores rápidos, que escrevam textos concisos e curtos. As dificuldades com a leitura do português levou os alguns alunos a ficarem desestimulados com essa ferramenta (figura 4).
  5. Realização de atividades e feedback do tutor. Cada disciplina tem atividades obrigatórias e de apoio a aprendizagem que fazem parte da somatória para avaliação do aluno. Os enunciados aparecem em português e em libras e as respostas podem ser dadas em português e em libras. O tutor avalia a atividade e posta um comentário para o aluno com a respectiva nota (figura 5).

Fonte: Ambiente Virtual de Aprendizagem - AVEA do curso Letras/libras In:
http://www.ead.ufsc.br/~hiperlab/avalibras/moodle/prelogin

Em todos estes espaços virtuais é pela mediação do outro, revestida de gestos, atos e palavras que o aluno vai se apropriando (das) e elaborando as formas de atividade prática e mental consolidadas (emergentes) do que vem a ser a cultura escolar, num processo em que pensamento e linguagem articulamse dinamicamente (VYGOTSKY, 1998). A palavra, com suas funções designativa, analítica e generalizadora (LURIA, 2001) mediatiza todo o processo de elaboração do aprendiz.

O AVEA e o Letras Libras foram pensados para alunos surdos usuários de libras, logo, ele oferece os recursos necessários para que os alunos se expressem e sejam instruídos na língua que lhe é natural, a libras. Todavia, há problemas estruturais pela dificuldade com o português escrito, com a tradução dos materiais para a libras e pela falta de conhecimento de cultura escolar para participar de um curso superior. Nesse espaço EaD os alunos precisavam problematizar suas duvidas, expor isso para o grupo e a partir das interações e contato com os materiais didáticos desenvolver a aprendizagem de forma autônoma.

Apesar do curso ser em Libras há alunos surdos usuários de libras que preferem fazer uso do português para interação em fórum e para envio das atividades.

Tutores e alunos passam a redimensionar as interações e a se apropriar de recursos como o uso de Movie Maker e apresentação multimídia. No caso desta realidade de participantes, o perfil é predominantemente voltado para a língua em comum entre alunos e tutor, a Libras. Há também, tutores que, por uma razão ou outra, preferem fazer uso do português escrito nas suas intervenções nos fóruns.

Para a análise da interação entre tutor e alunos surdos delimitamos os fóruns como espaço privilegiado. Com o objetivo de compreender o papel do tutor, frente aos seus diferentes interlocutores em fórum de curso EaD e buscando caracterizar sua participação na perspectiva do ensino e avaliar seus desdobramento, selecionamos três episódios a serem analisados.

O episódio 1 foi selecionado pois evidencia o uso do vídeo no fórum. Os episódios 2 e 3 revelam como recurso do tutor o uso de imagens, esquemas e fotos de sinais da libras para contribuir com o processo-ensino aprendizagem.

Episódio 1:

Esse episódio foi extraído do fórum da unidade 2 da disciplina Lingüística aplicada ao ensino de línguas que aconteceu em 2007, o tema em questão era sobre o que é a linguagem e o seu papel na constituição do sujeito e do conhecimento, conceitos estes defendidos por Vygotsky e Bakhtin, fórum com 79 mensagens. Tinha acesso a ele uma professora – autora do material, uma monitora, dois tutores e 50 alunos surdos adultos. Participaram efetivamente com mensagens – um tutor e alunos.

A discussão estava direcionada para os gêneros textuais e sua utilização no processo de ensino da Libras. Anteriormente a essa mensagem selecionada a discussão já se desenvolvia e um grupo de alunas mencionou usar tais gêneros em suas aulas de Libras. O tutor lança um questionamento, problematizando o uso de gêneros usados em línguas orais para sua aplicação em língua de sinais. (turno 5)

Bakthin (1992) nos leva a refletir como o pensamento interior se altera ao termos que expressa-lo para o outro e com um determinado código de signos exteriores.

“É verdade que, exteriorizando-se, o conteúdo interior muda de aspecto, pois é obrigado a apropriar-se do material exterior, que dispõe de duas próprias regras, estranhas ao pensamento interior. No curso do processo de dominar o material, de submetê-lo, de transformá-lo em meio obediente, da expressão, o conteúdo da atividade verbal a exprimir muda de natureza e é forçado a um certo compromisso (BAKTHIN, 1992, p.111).

O curso Letras Libras com foco na formação de professores de libras, composta em sua maioria por surdos adultos, promove a necessidade de interação por meio de vídeos com discursos expressados em libras.

Um conteúdo escrito em português no texto-base é reelaborado em português por tutores ouvintes e transformá-lo para expressá-lo em libras (figura 6).

O grupo de alunos, prefere fazer uso da libras para discutir tal assunto e anexa à mensagem um vídeo com vários exemplos de diálogos em libras, fazendo uso do espaço mental subrogado, ou seja, movimento de corpo para indicar que nesse momento se faz uso da voz de algum personagem, assim como é usado o travessão na escrita de um diálogo.

A expressão em libras revela outra forma de expressar e pensar como ensinar recursos lingüísticos a aprendizes de libras como segunda língua.

É transparente a existência de outras vozes no discurso do tutor. Além do turno 8 quando alunos referem à pergunta feita, a referência à resposta no turno 9, do turno 13 com referência ao texto-base da disciplina, e no turno 15 concordando com a fala anterior das alunas e ao próprio vídeo produzido pelo tutor, permite verificar como um enunciado é construído a partir do encadeamento de múltiplos discursos, remetendo-nos à idéia de Bakhtin (1992) de que um enunciado sempre se relaciona com enunciados anteriormente produzidos. Todo discurso é constituído ou permeado pelo discurso do outro

A forma como o tutor leva os alunos à reflexão, levantando um problema, questionando, a partir de uma afirmação dos próprios alunos de que a história em quadrinho é especificamente do gênero artístico. Pela questão: “Até que ponto a história em quadrinho é do gênero artístico? [...] conforme os gêneros apresentados no pdf. de LA que ela seja mais próxima do gênero cotidiano.” (turno 13). A significação construída pelo tutor se dá a partir do destaque em negrito à pergunta feita e da demarcação do tema, proferida no turno 13.

Episódio 2:

Esse episódio foi extraído do fórum da unidade 3 da disciplina “Metodologia de Ensino de Libras como segunda língua”, que aconteceu em 2010 e tinha como tema “O que é aprender línguas?”. Ao final da disciplina, o número de postagens deste fórum chegou a 32. Tinha acesso a ele a professora – autora do material, a monitora da disciplina, dois tutores e 45 alunos surdos adultos. Participaram efetivamente com mensagens somente um dos tutores responsáveis pela disciplina no pólo e alunos.

Na segunda interação selecionada, um aluno inicia um diálogo com colegas e tutores e faz referência ao texto-base da disciplina e a uma citação do autor Brown (1994), que consta nesse material. Constatamos que mesmo que o aluno apresente sua dúvida em português escrito ele anexa um vídeo para tentar explicar melhor qual é sua dúvida. O aluno quer entender o que o autor quer dizer por “visão idealizada” no ensino de língua (figura 7).

Considerando o perfil desse aluno: não oralizado, e com dificuldades de compreensão e expressão em língua portuguesa, pode-se entender porque prefere em suas interações no fórum fazer uso de vídeo 1 e expressar-se em libras. Entretanto, apesar dessas características, notamos que o mesmo aluno não prescinde da escrita para expor sua dúvida. Provavelmente, o uso dos dois recursos – português e libras se deveu ao fato de o seu interlocutor (tutor) ser ouvinte e, talvez, também, em decorrência de ele ter colegas com bom domínio de português e de essa língua ser em grande medida utilizada nas interações nos fóruns. A resposta dada pelo tutor foi a seguinte (figura 8).

Nesta resposta, o tutor tenta explicar ao aluno que visões mais contemporâneas sobre ensino de línguas têm focalizado sobretudo as variáveis relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem e deixado de lado questões mais relacionadas com métodos. e nessa direção, o tutor fez uso de vários recursos: imagens, esquemas visuais em que sinais da libras são utilizados e mesmo o português, escrito de uma forma mais acessível para o aluno.

Os trechos selecionados para essa análise demonstram a receptividade do tutor (turnos 1 e 2), o uso da hipertextualidade (turno 4 e 5), a demarcação temática (turno 4), a convocação ao diálogo (turnos 6). Nesse texto escrito apreendemos movimento dialógico da enunciação, a qual constitui o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 1992).

A aparência do uso das imagens se dá pelo fato de ser mais pedagógico e ilustrativo, mas os processos da dinâmica subjacente revelam que tutor ao pensar que o aluno surdo não tem o conhecimento de todos os usos da palavra em português, o faz para auxiliar na aprendizagem. A causa (alunos não dominam o português) e efeito (uso de imagens) não são entidades de posição imutável. A causa pode transformar-se em efeito e este em causa, dinamicamente. Visto que os alunos por usarem cada vez mais a lingua escrita no fórum e associando suas significações aos contextos, também mediados pelas imagens e exemplos fornecidos pelo tutor passam a cada vez mais aprender português e aos conceitos do curso em questão.

No espaço, mesmo que virtual, todas as condições de mediação são permitidas ao surdo. Concordamos que “à medida que a condição lingüística especial do surdo é respeitada, aumentam as chances de ele desenvolver-se e construir novos conhecimentos de maneira satisfatória, em contraposição a uma “integração escolar” sem qualquer cuidado especial” (LACERDA, 2000, p. 57).

No episódio analisado transpareceu a existência de outras vozes além das do tutor e do aluno, revela o dialogismo e a polifonia (BAKHTIN, 1992).

Episódio 3:

Esse episódio foi extraído do fórum da unidade 2 da disciplina ”Didática e educação de surdos” que aconteceu no ano de 2008 e tinha como tema "transitando as teorias que movimentam diferentes concepções da didática", fórum com 102 mensagens. Tinha acesso a ele a professora – autora do material, a monitora da disciplina, dois tutores e 45 alunos surdos adultos. Participaram efetivamente com mensagens – um tutor e alunos.

O aluno A expõe sua dúvida fazendo referência à página 16 do texto-base (turno 1), o tutor para responder à dúvida recorre ao material e se depara com os termos em português não tão usuais, como: intercalados e entremeados. Para ilustrar a tríade didática, pedagogia e currículo o tutor busca formas de exemplificar (figura 9).

O tutor tem uma concepção ideológica do que é ser professor e do que significa preparar uma aula, essa concepção é externalizada em sua explicação. Para Bakthin (1992, p.114) “a simples tomada de consciência, mesmo confusa, de uma sensação qualquer não dispensa uma expressão ideológica”. A expressão desse tutor revela, mesmo que parcialmente, sua concepção de educação.

“Em todos os casos, a situação social determina que modelo, que metáfora, que forma de enunciação servirá para exprimir (...)” (BAKTHIN, 1992, p.116). O tutor refere que procurou uma imagem para explicar o conceito de entremear (turno 3), a partir de diversas imagens foi tentando elaborar uma analogia favorável à aprendizagem e ao conceito relacionado à educação, ao ensino. Essa atividade mental distingue-se da atividade mental do eu, passando para uma atividade mental do nós, professores; como uma orientação social. Constatamos nesse episódio, como afirma Bakthin: “Não é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior, mas o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão, aos seus caminhos e orientações possíveis”. (BAKTHIN, 1992, p.118)

O tutor teve que se adaptar às palavras, às imagens que encontrou e a sua concepção de ser professor e de aula para organizar sua expressão a fim de responder à dúvida do aluno A (turno 3). O próprio aluno A, tentando entender a passagem do texto, fez uso de uma analogia, ao dizer que entendia essas áreas do conhecimento como se fossem uma “família”.

Diferentemente do episódio 2, o episódio 3 apresenta a polifonia, onde diferentes vozes sociais se defrontam, se chocam, manifestando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto; portanto, é gênero polifônico por natureza (BAKTHIN, 1992).

Logo em seguida outro aluno, denominado de aluno B em resposta à conversa do tutor com aluno A, posta a seguinte mensagem (figura 10).

O aluno B refere-se à pergunta do aluno A e à resposta do tutor e expõe seus conflitos por não ter antes a esse curso uma formação em pedagogia. O tutor precisa proporcionar um espaço aberto à discussão e aprendizagem, mesmo que haja tensões entre pedagogos e instrutores (sem formação), entre alunos com experiência e outros sem experiência no ensino.

Em muitas oportunidades, o tutor mantém uma interação bem sucedida somada a atitudes de abertura à aprendizagem, expressões que revelam que não sabemos tudo, mesmo quem já tem alguma formação; suficientes para que os alunos percebam que independente da idade, do nível de escolaridade ou das experiências já vividas estavam todos ali para aprender juntos, para compartilhar e para formar-se professores de libras.

Constatamos que no episódio 1 há o uso da libras no diálogo virtual. Esse fato acontece principalmente quando se fez necessário exemplificar elementos, formas e características da libras ou estratégias de ensino da língua. A transcrição de uma língua espaço-visual não obteria o detalhamento de tal modalidade. Já, na passagem da discussão do episodio 2 e 3, apesar de o curso e o AVEA terem sido pensados para atender alunos surdos usuários de libras, na prática, o português bem como o uso de outros recursos visuais parecem predominar tanto nas postagens dos tutores quanto nas dos alunos. Sendo suficiente mesmo quando a interação não é feita em libras, confirmação esta dada pelos alunos no episódio 3.

O trabalho do tutor em ambiente virtual com alunos surdos precisa ser pensado, não como mero repetidor de um texto-base. A relação professor da disciplina e tutor não pode resumir-se a transmissão do pensamento/texto do primeiro, precisa ser resultado de uma construção conjunta, reconhecendo o tutor como um educador.

Conclusões

Os episódios analisados permitiram explorar algumas das características das interações verbais e não verbais mediadas pelo fórum no papel dos tutores, nas quais ocupam lugar de destaque o dialogismo e a polifonia. (BAKTHIN, 1992) A construção de significados se deu a partir de uma rede discursiva e hipertextual que permeou a interação, fizeram uso de palavras em português, de imagens para construção de analogias, de imagens dos sinais da libras e de vídeos.

Consideramos que o processo de tutoria usando o fórum de discussão do Moodle no curso Letras Libras está fundado na dialogia, dá a oportunidade para expansão da qualidade e da quantidade dos enunciados de tutores e alunos, na medida em que as atividades de ensino sejam estruturadas com o propósito de problematizar as dúvidas suscitadas pelos alunos, como no episódio 1. Se a interpretação de acontecimentos sociais é construída por meio de reflexão, a reelaboração das dúvidas na forma de perguntas estruturadas pelo tutor ou pelo próprio aluno, a partir de problemas relacionados ao tema estudado, promoverá o domínio dessa forma reflexiva de pensamento, almejada para/pelos alunos.

Constatamos duas relações importantes no uso do fórum pelo tutor e pelos alunos. A primeira refere-se à forma de organização das mensagens no fórum, a opção de mensagem alinhada onde as mensagens entre tutor-aluno ficam acessíveis em uma única página, sendo possível baixar a barra de rolagem e visualizar todas as interações transcorridas; a segunda refere-se à possibilidade de anexar vídeo à mensagem e apresentação de imagens dentro da mensagem para ilustrar e exemplificar os argumentos propostos pelos interlocutores do fórum.

Podemos inferir, dessa forma, que a manifestação de signos, tanto na linguagem falada (libras por meio de vídeo) como na escrita (português), revela o surgimento de novas formas discursivas nas interações virtuais, para se referir a algo lido, dito, pensado ou experienciado. A situação social imediata era de ensinoaprendizagem em espaço virtual, um novo contexto para educação de surdos.

De que maneira essas formas discursivas afetam o processo de construção de significados pelos alunos e tutores? Estudos devem ser incentivados, no sentido de descrever e analisar as interações virtuais desenvolvidas na educação de surdos, a fim de que se proponham melhores formas de interação em espaço virtual para aprendizagem de alunos surdos e para melhor orientar a formação de novos tutores que assumirão o desafio de mediar a aprendizagem desses sujeitos.

Notas

1 Com o objetivo de manter em sigilo a identidade dos participantes em vídeo, optamos por alterar a imagem dos vídeos com auxílio do programa PhotoPlus, recurso Artistic - Sprayed Strokes. Da mesma forma, os nomes foram cobertos com tarja preta.

Bibliografia

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