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Diléia Aparecida Martins
Diléia Aparecida Martins
Professora de Educação Especial
Formação de professores surdos no curso de Pedagogia: análise da prática docente e do intérprete de Língua Brasileira de Sinais
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Publicado em 2006
Revista Espaço: informativo técnico-científico do INES. nº 25, jan/jun, p.161-168
Diléia Aparecida Martins
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Resumo

O presente trabalho reflete a prática em educação inclusiva para formação de professores surdos no curso de Pedagogia. Apresenta uma reflexão em torno da experiência vivenciada na Faculdade de Educação da PUC-Campinas, enfatizando os efeitos da modalidade visual-espacial da Língua de Sinais Brasileira – LIBRAS e oral-auditiva da Língua Portuguesa, a prática do docente e do intérprete de LIBRAS bem como a formatação curricular, enfatizando possibilidades para a superação de barreiras de acesso ao currículo acadêmico no contexto bilíngüe vivenciado por surdos usuários de Língua de Sinais Brasileira e da Língua Portuguesa.

1. Introdução

A formatação da estrutura curricular do curso de Pedagogia sofreu, nos últimos anos, alterações visando adequação à Lei 9.394/96. Desde a década de 40, esse curso forma educadores através da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em 1971, o curso de pedagogia passa à Faculdade de Educação.

A formação de professores em Educação Especial foi atribuída ao curso de Pedagogia através do Parecer 252/69, do Conselho Federal de Educação (CFE), sendo caracterizada como mais uma habilitação desse curso. Em 1974, é alcançado o reconhecimento do curso de Educação Especial da PUC-Campinas junto ao Ministério de Educação.

Muitos desafios seriam enfrentados. Entretanto um, em especial, seria o ingresso de estudantes com necessidades especiais na própria Faculdade de Educação. Nesse processo, reconhecemos pontos importantes na prática da educação inclusiva. Dentre eles, a instigante chegada de estudantes surdos usuários de LIBRAS - Língua de Sinais Brasileira, reconhecida oficialmente como língua natural dos surdos brasileiros em 24 de abril de 2002 (Lei nº. 10.436), e regulamentada pelo Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005 1.

Conforme relatos de professores, ex-alunos e funcionários da Universidade, muitos acadêmicos surdos já haviam ingressado anteriormente, porém sem poder assumir a sua identidade, uma vez que, para a pessoa surda e/ou deficiente auditiva, existe a possibilidade de desenvolvimento da oralidade e uso de aparelho auditivo visando ao aproveitamento de um suposto resíduo auditivo. Assim, não havia um trabalho intencional que chamasse a atenção para a condição do estudante surdo.

A questão do bilingüismo vivenciado pela pessoa surda tem sido alvo de estudo rigoroso por parte de profissionais intérpretes, lingüistas e pedagogos, uma vez que a LIBRAS, conforme caracteriza Brito (1997) é uma “língua que utiliza um canal visual-espacial e não oral-auditivo como acontece com as línguas orais; articula-se espacialmente e é percebida visualmente” (p. 19).

A grande indagação está relacionada aos impactos dessa forma de representação e apropriação, nas relações de ensino e aprendizagem, na organização curricular e nas medidas utilizadas pelas instituições de ensino para garantir a permanência e o progresso desses estudantes nos níveis de ensino.

A princípio, temos indícios da existência de um ensino incompatível às necessidades do educando, uma vez que não foram considerados os efeitos da modalidade visual-espacial para a organização da estrutura de ensino.

2. A atuação docente e do intérprete de LIBRAS em questão

A experiência da disciplina Ensino e Aprendizagem de Língua Portuguesa e Prática de Ensino em Língua Portuguesa A e B

Entre os fundamentos teórico-práticos que compreendem a formação do pedagogo sistematizados em disciplinas que compõem a grade curricular do curso aloca-se a disciplina Ensino e Aprendizagem de Língua Portuguesa e Prática de Ensino em Língua Portuguesa A e B.

No 3º período 2, a disciplina Ensino e Aprendizagem de Língua Portuguesa A e Prática de Ensino em Língua Portuguesa A tem como proposta estudar a constituição histórica do ensino de língua portuguesa na escola brasileira e os fundamentos epistemológicos da área curricular e discutir relações e práticas do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental.

No 4º período, a disciplina Ensino e Aprendizagem de Língua Portuguesa A e prática de Ensino em Língua Portuguesa A tem como proposta discutir relações de teoria e prática do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental.

Ambas as disciplinas têm como objetivos principais possibilitar aos alunos:

  • Reconhecer a linguagem como representação simbólica e sua relação com a prática pedagógica, compreendendo a linguagem como fator de formação da consciência e da cidadania;
  • Analisar o processo de Alfabetização Escolar à luz de concepções teóricas recentes: Psicogênese da linguagem escrita – Ferreiro e Teberosky e Teoria histórico-cultural de Vygotsky (tendo como base os experimentos de Luria);
  • Analisar e discutir criticamente o fazer pedagógico observado no cotidiano do trabalho docente do Ensino Fundamental e suas implicações no processo de aprendizagem da Língua Portuguesa;
  • Listar alternativas para práticas pedagógicas na produção e leitura de textos construindo e discutindo metodologias para aquisição e aprimoramento da língua escrita, aplicáveis aos anos iniciais do Ensino Fundamental;
  • Analisar concepções de linguagem e suas implicações para a prática pedagógica nos anos iniciais do Ensino Fundamental com o conteúdo a ser trabalhado, ressignificando seus métodos de ensino e de produção de conhecimentos de forma a subsidiá-los na construção da ação educativa escolar em sua totalidade.
  • Conhecer a constituição histórica da Língua Portuguesa na educação brasileira.
  • Analisar a relação entre saber docente e produção de linguagem na escola.

Deparamos-nos com duas questões a serem consideradas para o desenvolvimento da proposta da disciplina, a primeira referente à metodologia e a prática do docente e do intérprete partindo da condição lingüística da acadêmica, a segunda referente à assimilação do conteúdo em questões relativas a aquisição da linguagem, letramento e construção da escrita.

Uma nova tensão se instalava: como interpretar aulas possibilitando à acadêmica assimilar toda aquela estrutura oral da língua portuguesa, barreira que ela já vivenciava cotidianamente?

Dessa forma, enfatizamos que a língua de sinais deva ser considerada desenvolvida como a primeira língua dos surdos e que práticas educacionais para o ensino de segunda língua ou estrangeira sejam conhecidas, estudadas e aplicadas pelos educadores para o ensino do português escrito. Centrar o ensino apenas no aspecto gramatical não basta para formação de sujeitos letrados, pois o acesso à escrita só será pleno quando ela for tratada e concebida como prática social de linguagem, cultural, social, histórica e ideologicamente determinada. (Lodi; Harrison; Campos in Lodi; Harrison; Teske, 2003: 44).

Nesse sentido, o entrosamento do docente e do intérprete foi fundamental, garantindo o progresso da acadêmica. Desenvolvemos cada passo da pesquisa apontada nos objetivos da disciplina, considerando a LIBRAS de fato como primeira língua da acadêmica. Listamos, então, passos que vieram a compor uma metodologia de trabalho.

O primeiro passo

Estudo da Aquisição da Linguagem; Língua de Sinais Brasileira; Língua Portuguesa; Lingüística.

O segundo passo

Análise de aspectos apresentados pela bibliografia-base da disciplina: reflexões sobre alfabetização - Emília Ferreiro; Ana Teberosky; Alfabetização e Letramento - Sérgio Leite e PCN Parâmetros Curriculares Nacionais Língua Portuguesa 1ª à 4ª Série nos forneciam respaldo para a discussão de uma possível aquisição da linguagem da pessoa surda numa perspectiva construtivista.

Partindo dessa análise, levantamos junto à acadêmica algumas hipóteses quanto aos níveis de alfabetização vivenciados pela pessoa surda. Baseado em Ferreiro, 1990: se Olga Letícia fosse surda, como desenvolveríamos tal experimento? Como ela perceberia as letras (grafema) e associaria ao som? Se a aquisição da linguagem por surdos usuários de libras é visual-gestual, como seria então a representação escrita de uma criança surda numa perspectiva construtivista? Em que símbolos se pautariam? Como escrever uma língua visual-espacial? Qual a importância desse desenvolvimento comunicativo no letramento da pessoa surda?

O terceiro passo

Concretizou-se no estudo das possíveis relações entre o processo de construção da língua escrita e o processo de construção da língua de sinais. Docente, intérprete e acadêmica, juntas, fomos buscando similaridades entre os dois processos, sem perder de vista os aspectos importantes relacionados a uma ação construtiva.

Mediante a interação com a escrita construindo hipóteses e estabelecendo relações de significação que parecem ser comuns a todas as crianças... Esse mesmo processo deve acontecer com as crianças surdas. Entretanto, as crianças surdas devem estabelecer visualmente relações de significação com a escrita (Quadros, 2004).

Dentro dessa realidade, estudamos criteriosamente as formas de representação escrita da língua de sinais, nesta pesquisa bibliográfica nos deparamos com a literatura produzida por Marianne Rossi Stumpf, surda Pedagoga Mestre em Informática, que define bem a importância da escrita de sinais conhecida como SignWriting:

Nós surdos precisamos de uma escrita que represente os sinais visuais-espaciais com os quais nos comunicamos, não podemos aprender bem uma escrita que reproduz os sons que não conseguimos ouvir. A escrita de sinais está para nós, surdos, como uma habilidade que pode nos dar muito poder de construção e desenvolvimento de nossa cultura. Pode nos permitir, também, muitas escolhas e participação no mundo civilizado do qual também somos herdeiros, mas do qual até agora temos ficado à margem, sem poder nos apropriar dessa representação. Durante todos os séculos da civilização ocidental, uma escrita própria fez sempre falta para os surdos, sempre dependentes de escrever e ler em outra língua, que não podem compreender bem, vivendo com isso uma grande limitação. (Stumpf, 2003: 63).

A partir dessas reflexões, houve toda uma reestruturação didática e metodológica através da utilização de práticas visuais: uso de retroprojetor e multimídia para exposição dos textos e dos materiais coletados nas pesquisas.

Pensar a construção da escrita de sinais foi uma possibilidade de trazer maior significado para a própria escrita. Assim, pudemos discutir que se apropriar da linguagem é produzir sentidos, portanto não se constitui numa prática mecânica. A escrita da língua portuguesa virá como uma atividade mnemônica relacionada a uma notação impregnada de significado e sentidos, que é a escrita do sinal (SignWriting).

Deparamos-nos com algo ainda novo no ensino em geral, e mais novo ainda no que diz respeito à Educação Superior. A proposta de educação inclusiva intensificou-se a partir da Conferência Mundial de Jomtien (Tailândia, 1990), que apontou para a Educação para Todos e foi aprofundada na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais (Espanha, 1994). Essa conferência culminou na Declaração de Salamanca, que propôs princípios de uma educação globalizada, resultado de acordos internacionais fortemente desvinculados dos fenômenos sociais produzidos pela educação de massas.

Desde então, os sistemas de ensino vêm se organizando para atender a essa realidade e a Educação Superior no Brasil conta, desde 2000, com orientações específicas da Secretaria de Educação Especial / MEC.

Somente aprofundados nesses conceitos, experimentamos mudanças propiciando à pessoa com necessidades especiais a possibilidade de encontrar um sistema de ensino verdadeiramente acessível. No que diz respeito à pessoa surda, somente livres de um olhar culturalmente dominante – no caso, o olhar oral-auditivo – poderemos alcançar um ensino de qualidade.

3. Conclusões

Para atingir determinada maturidade na forma de representação simbólica, nos submetemos a processos de desenvolvimento, conforme nos aponta Vygotsky (1994), etapas que estão fortemente relacionadas à vivência de práticas sociais em que assimilamos elementos que atuam diretamente na construção de uma identidade cultural, permitindo a interação com a realidade.

No contexto educacional, o professor apresenta-se como um mediador. Em sala de aula com alunos surdos, nos deparamos ainda com diversos elementos transformadores da prática docente.

O Intérprete de Língua de Sinais Brasileira apresenta-se como parceiro nessa mediação e colaborador no processo de desenvolvimento e assimilação vivenciado pelo acadêmico, no contexto do Ensino Superior – Curso de Pedagogia. O intérprete torna-se referência em aspectos relacionados ao ser surdo, age como disseminador das práticas culturais que envolvem a comunidade surda, fatores que modificam a estrutura de ensino.

Tal experiência de entrosamento entre o docente e o intérprete garante o desenvolvimento com sucesso de propostas relacionadas às disciplinas do currículo acadêmico, considerando a necessidade de reorganização do currículo e de adaptação de elementos constitutivos dos conteúdos da disciplina Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa.

Notas

1 BRASIL, Ministério da Educação. (2005) Decreto Nº 5.626, de 22 de Dezembro de 2005. Brasília: MEC.
2 Os períodos descritos referem-se à distribuição das disciplinas em semestres – quatro anos, totalizando oito semestres ou oito períodos.

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