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Hibridismo e literatura surda: Análise de “Curupira Surdo”
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Publicado em 2019
Revista Espaço - Rio de Janeiro, nº 51, p. 163-177
Bruna da Silva Branco
Cláudio Mourão
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

O artigo analisa o livro “Curupira Surdo” (2016) a partir da abordagem de questões do hibridismo na literatura e, em especial, na literatura surda. A fundamentação teórica do trabalho envolve autores que tratam de Literatura, como Cascudo (2006), Coutinho (1981), Karnopp (2006, 2008), Mourão (2011, 2016) e Sutton-Spence [et al.] (2016), e de Hibridismo, como Burke (2016) e Canclini (2001). O artigo situa a história do conto popular Curupira no Brasil e discute a expansão da literatura surda como produto da cultura surda. Da análise, conclui-se ser a obra tipicamente híbrida, com diferentes misturas entre a literatura brasileira (transposição de conto popular) e a literatura surda. Anteriormente, as histórias do Curupira, originalmente orais, foram registradas por escrito, usando os mesmos personagens em diferentes versões. A diferença trazida pelo livro “Curupira Surdo” vem da adaptação com características da literatura surda, com um protagonista surdo e a valorização da língua de sinais.

Introdução

O presente artigo 3 traz uma análise do livro “Curupira Surdo” (2016), de autoria de Amarildo Espíndola, Elielza Reis da Silva e Larissa Pissinatti, com ilustrações de Leila Sena e Suzana Alcântara, enfatizando questões do hibridismo na literatura e, em especial, na literatura surda. Faz parte de muitos trabalhos que cada vez mais investigam o hibridismo, a mescla e a mistura de culturas nos artefatos culturais. A fundamentação teórica do trabalho envolve autores que tratam da Literatura, como Luís Cascudo (2006),Afrânio Coutinho (1981), Lodenir Karnopp (2006, 2018), Cláudio Mourão (2011, 2016) e Rachel Sutton-Spence [et al.] (2016), e do conceito de hibridismo, a saber, Peter Burke (2016) e Nestor Canclini (2001).

Para contextualizar melhor a análise da obra, é preciso relembrar rapidamente o contexto em que livros de literatura surda, como o que vamos analisar, são publicados e colocados em circulação.
Os surdos passaram por um lutas significativas em defesa de causas pela comunidade surda brasileira, entre elas, a existência de registros da história em várias temáticas e com prevalência da língua de sinais e dos sujeitos surdos. Houve épocas em que os educadores não aceitavam a instrução em língua de sinais na escola de/para surdos ou em classe especial, em decorrência das informações inadequadas e equivocadas do conceito de surdo-mudo, informações que se relacionavam com incapacidade e outros adjetivos depreciativos.

Felizmente, tivemos os pioneiros que iniciaram a defesa por uma concepção que apresentasse de forma diferente à sociedade e à educação a questão da surdez. Este processo foi longo e abrangeu muitas nações.

No Brasil, podemos citar que a oficialização de sua língua no território brasileiro foi um avanço significativo no processo educativo, em relação aos direitos humanos e suas transformações. Isso graças à criação da Lei 10.436 de 2002, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais – Libras, como língua dos sujeitos surdos brasileiros, assim como o Decreto 5.626 de 2005, que regulamenta a Lei de Libras/2002, estabelecendo diretrizes para que esse reconhecimento fosse transformado em

Mais de 90% das pessoas surdas nascem em famílias de ouvintes, que pouco conhecem a respeito da Libras e que, frequentemente, carregam preconceitos e estereótipos sobre o status da Libras, enxergando-a como uma forma inferior e limitada de expressão gestual, e da pessoa surda, como um deficiente incapacitado, que necessita de ajuda. (SUTTON-SPENCE et al., 2016, p. 79).

Neste sentido, muitas foram as mudanças ocorridas, os avanços favorecidos em decorrência da participação da comunidade surda nos espaços sociais, acadêmicos e educacionais. Logo, os sujeitos surdos começaram a participar das escolas, das universidades, adquirindo assim educação, acesso à literatura brasileira, por exemplo. Uma das oportunidades foi trazida pelo curso de licenciatura ou bacharelado em Letras-Libras, iniciativa da Universidade Federal de Santa Catarina, com as aulas na modalidade presencial e ensino a distância (EAD). Destacam-se as licenciaturas que a visam formar professores para atuar na área de Libras e o bacharelado para capacitar profissionais para atuar na área de tradução e interpretação em Libras.

O modelo do curso de Letras-Libras da UFSC transitou por diferentes instituições no Brasil, tanto nas universidades públicas quantos nas universidades privadas. Segundo Rachel Sutton-Spence et al. (2016), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) se tornou uma referência nacional, liderando várias frentes que têm possibilitado às pessoas surdas integrar os mais diversos espaços sociais. O curso continha em sua grade curricular, disciplinas como Literatura Surda, precursora para a compreensão linguística, de tradução e das pesquisas no campo da Literatura Surda. As significações da Literatura Surda tornaram as práticas discursivas, tanto na educação quanto no meio social, exemplos de eventos e publicações culturais.

As práticas discursivas das mãos literárias, em todos os territórios, onde são absorvidas as significações de identidades culturais, têm acontecido com frequência, o que promove a Literatura Surda. Isso envolve o entrelaçamento das mãos entre os sujeitos surdos, tanto das crianças surdas quantos dos adultos surdos, as mãos dos contadores das histórias, que transmitem as heranças das comunidades surdas. (MOURÃO, 2016, p. 63).

Fica evidente, pelos fatos trazidos, o quanto a Literatura Surda, graças às leis relacionadas à Libras e ao oferecimento de cursos como os inspirados em Letras-Libras da UFSC, encontrou possibilidade de crescer e se tornar significativa para os sujeitos surdos. Neste contexto, é necessário que se envolvam os sujeitos surdos nos meios sociais e culturais, possibilitando então, que circulem e produzam as mãos literárias (MOURÃO, 2016) com culturas transmitidas de geração em geração pela comunidade surda. E a cultura surda presente na literatura não ficou isolada como uma ilha, mas também se misturou, mesclou-se com histórias buscadas em outras culturas, como veremos a seguir.

Contos populares no Brasil: a lenda do Curupira

Segundo Afrânio Coutinho (1981), a partir do ano de 1500, durante a colonização portuguesa no Brasil, o povo português e os povos indígenas se conheceram e criaram muitos estranhamentos, porque suas línguas eram diferentes e suas culturas totalmente diversas. Coutinho descreveu este contato como uma revolução:

Revolução tão importante que, desde o primeiro momento, havia transformado a mentalidade dos habitantes, através de mudança da sensibilidade, das motivações, interesses, reações, maneiras de ser, agir novas, tudo provocado pela nova situação histórica e geográfica. (COUTINHO, 1981, p. 10)

É fácil imaginar que, não tendo uma língua comum, a comunicação entre portugueses e indígenas acontecia por meio de gestos, apontamento de objetos, desenhos em papel, areia etc. Naquela época, muitos artistas usavam imagens para a comunicação, considerando a temporária falta de uma língua comum.

O folclorista, historiador e professor brasileiro Luís da Câmara Cascudo (2006) realizou estudos sobre o período colonial e o papel das línguas portuguesa e das várias línguas indígenas. O autor cita Sampaio (1901, p. 12, grifos do autor), o qual sustenta o seguinte:“Ao europeu, porém, ou aos seus descendentes cruzados, que realizaram as conquistas dos sertões, é que se deve a maior expansão do tupi, como língua geral, dentro das raias actuaes do Brasil.”.Tanto Cascudo (2006) como Sampaio (1901) apontam que o padre jesuíta espanhol José de Anchieta foi uma figura importante nesse período, pois começou a trabalhar com os índios e estudar sua língua 4, sendo o autor da primeira gramática da língua Tupi que se tem registro. A partir da narrativa destes, escreveu a história de Curupira, conhecido como “demônio da floresta” ou “protetor das florestas”.

O personagem de nome Curupira – que significa “corpo de menino” – é anão, tem cabelo ruivo e pés virados para trás (CASCUDO, 2006). Constitui-se como uma lenda do folclore tupi, assim como a mula-sem-cabeça, o bicho-papão, o saci-pererê, a Iara etc. O primeiro registro até o momento sobre o Curupira foi redigido pelo Padre José de Anchieta, que narra o seguinte:

É cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos demônios, a que os Brasis chamam corupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras cousas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal [...] (ANCHIETA, 1933, p. 128).

A história do personagem Curupira pode ser entendida como lenda ou mito, mas é importante considerar o que Luís Cascudo (2006) escreveu sobre as lendas indígenas:

confundidas entre mitos e tradições, as lendas indígenas são a mais delicada confidência, uma comunicação fraternal, apelo à sinceridade da compreensão por um complexo de mistério e evidência, ritos, tabus, heroísmos, bestialidades, criações, divindades, confusas, radiosas, sugestivas, como um dia na floresta tropical, onde há luz e sombra, ao mesmo tempo e em toda parte. (CASCUDO, 2006, p. 111).

Para além da discussão sobre mitos e tradições, vale ressaltar também a importância do registro da carta do padre jesuíta José de Anchieta, muito conhecido na literatura brasileira, um personagem interessante da cultura nacional. Como na época não se tinha tecnologias e meios de comunicação mais avançados para registro, pode ser que haja algum equívoco na interpretação da história, mas isso não lhe tira o valor.

O livro a ser analisado neste trabalho,“Curupira surdo”, trata dessa mesma história, porém com algumas adaptações culturais concernentes aos sujeitos surdos. A publicação pode ser classificada como uma obra da Literatura Surda, campo de estudos contemporâneo voltado para as produções e gêneros literários que envolvem artefatos culturais surdos (MOURÃO, 2011). Esse campo merge a partir da década de 1990, conforme referências de Lodenir Karnopp (2006) que traz informações sobre Literatura Surda no Brasil e descreve o que é a Literatura Surda:

[...] utilizamos a expressão “literatura surda” para histórias que têm a língua de sinais, a questão da identidade e da cultura surda presentes na narrativa. Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que entende a surdez como presença de algo e não como falta, possibilitando outras representações de surdos, considerando-os como um grupo linguístico e cultural diferente. (KARNOPP, 2006, p. 102).

Segundo Karin Strobel (2013, p. 68), a literatura surda é artefato cultural que a comunidade surda pode utilizar no dia a dia: “Ela traduz a memória das vivências surdas através das várias gerações dos povos surdos.”. E descreve também que a literatura surda se “multiplica em diferentes gêneros: poesia, histórias de surdos, piadas, literatura infantil, clássicos, fábulas, contos, romances, lendas e outras manifestações culturais.” Três tipos recorrentes de produção da literatura surda, conforme Lodenir Karnopp (2006) e a dissertação do Cláudio Mourão (2011), são a tradução, a adaptação e a criação de histórias. Cláudio Mourão (2011) descreve cada um: tradução de livros é, por exemplo, Iracema e As aventuras de Pinóquio na língua de sinais/português, em que “os intérpretes podem pesquisar, ler, saber aspectos da cultura [...]” (p. 66); adaptação de livros é, por exemplo, Cinderela Surda; Rapunzel Surda, Patinho Surdo e Adão e Eva, que são adaptação de histórias ou de contos de fadas que existem há anos.” (p. 54); criação de história é, por exemplo, Tibi e Joca; Casal feliz, ou seja, “relato e criação de uma história contada por um surdo, uma realidade na comunidade surda (p. 55).

Assim, a partir desses conceitos, entende-se que o livro “Curupira Surdo” é uma adaptação, ou seja, uma história já conhecida, antiga, mas com algumas modificações. São estas modificações que vão tornar a obra um artefato cultural híbrido.

Metodologia

A estratégia analítica posta em operação sobre os materiais está alinhada com as abordagens qualitativas, sem estar classificada em um agrupamento específico. Inspirada pelas ideias de Marli André (2013), entendemos que a escolha de alguma categoria não se constitui como algo necessário em uma pesquisa.

Com isso, em função da liberdade conferida ao conceito de metodologia aqui adotado, surge a necessidade da elaboração de uma série de descrições que abarquem cada etapa realizada. Esses processos serão brevemente relatados nos parágrafos seguintes, e detalhados na seção que trata das análises e discussões.

Inicialmente coletamos alguns livros com o mesmo tema: “Curupira”, dos autores Espíndola, Silva e Pissinatti (2016); Luís Cascudo (2006); Mario Bag (2013), Mauricio de Sousa (2009); Silvana Salerno (2006) e Theobaldo Santos (2004).Alguns livros se destinam mais ao leitor infantil, outros têm um destinatário que pode ser de qualquer idade. O livro “Curupira Surdo” foi escolhido como material de análise por inspiração dos estudos atuais sobre hibridismo - como a obra Hibridismo Cultural (BURKE, 2016) -, já que se trata de material que apresenta um processo claro de hibridização entre literatura brasileira de origem popular e literatura surda.

Como já relatamos, a primeira menção à história do Curupira, na literatura brasileira, foi produzida inicialmente por Anchieta (COUTINHO, 1981, p. 7); ele também escreveu sobre “Curupira” em uma carta, pois Luís Cascudo (2006, p. 118) citou que a lenda foi mencionada em uma carta do Anchieta.

A maior parte da nossa pesquisa sobre a lenda foi feita em sítios e blogs da internet, usamos poucos materiais físicos para a exploração analítica que nos propusemos a fazer.

Análise: o personagem Curupira em obras escritas variadas

Há várias descrições de diferentes autores sobre o que é “hibridismo”; um dos mais importantes é Néstor Garcia Canclini, que afirma que “os estudos sobre hibridação modificaram o modo de falar sobre identidade, cultura, diferença, desigualdade, multiculturalismo [...], (CANCLINI, 2001, p. XVII). Segundo Peter Burke (2016), o resultado das hibridações de culturas pode ser observado na variedade de objetos, de terminologias, de situações, reações e de resultados. O autor exemplifica a variedade de objetos, com artefatos híbridos (como textos) e com práticas híbridas. Nosso caso é do livro como artefato híbrido.

Identificando histórias sobre o personagem Curupira, que temos presente na literatura brasileira e na literatura surda, percebe-se que a história contada em várias obras apresenta detalhes e alterações em relação ao conteúdo da carta escrita por Anchieta. Para a análise do “Curupira surdo”, serão utilizados alguns elementos das variedades apresentadas pelo Peter Burke (2016), a começar da variedade de “objeto” como carta, livro, gravura. É interessante refletir sobre o que o autor escreve sobre ‘traduções’ de textos.

As traduções são os casos mais óbvios de textos híbridos, já que a procura por aquilo que é chamado de “efeito equivalente’ necessariamente envolve a introdução de palavras e ideias que são familiares aos novos leitores mas que poderiam não inteligíveis na cultura na qual o livro foi originalmente escrito.” (BURKE, 2016, p. 27).

É interessante observar a descrição de Curupira pela carta de Anchieta, “[...] um menino de cabelos vermelhos, muito peludo por todo o corpo e com a particularidade de ter os pés virados para trás [...]” (CASCUDO, 2006, p. 122); a carta, obviamente, não apresentava imagem, o que dificulta pensar como era imaginado.

A seguir, trazemos relatos de outros autores que descrevem o personagem Curupira com características do corpo, e vemos diferenças das versões.

Assim, analisamos os livros quanto às características do corpo e vimos que a principal marca física do Curupira são os seus pés, “os pés virados para trás”, uma característica comum em todas as versões, ou seja, imutável. O que destacamos referente às versões dos livros analisados são as diferentes expressões para se referir a esta característica:“os pés virados pra trás”;“os pés invertidos”; “os pés voltados para trás”;“seus pés virados para trás”.

Outro livro, Mitos e lendas do folclore do Brasil, de Mario Bag (2013), não comenta no texto a descrição do corpo, apenas referindo-se referindo à “criatura selvagem”.Vamos citar o primeiro parágrafo da história (2013, p. 10):

Quem maltratar a natureza
Vai despertar toda a ira
Da criatura selvagem
Que se chama Curupira,
E se perderá na mata
Quem acha que isso é mentira!
(...)

Seria possível imaginarmos como seria essa criatura, sua apresentação? Nesse livro usado como referência (BAG, 2013), encontramos o texto numa página e na seguinte a ilustração do corpo do personagem Curupira; aos nossos olhos ele se apresenta na cor alaranjada escura com dentes brancos e verdes.

Existem outros livros com ilustrações, alguns com ou sem cor, variando o modo do cabelo e caraterísticas do corpo. Em alguns textos vemos a descrição de características de corpo, cabelo, dentes, cor e tamanho, em outros somente se encontra a imagem, sem nenhum detalhamento. A autora Silvana Salerno (2006, p. 17), no livro intitulado Viagem pelo Brasil em 52 histórias, conta a história denominada "O Curupira e o caçador" e coloca uma observação sobre a característica do corpo do personagem nas diferentes regiões do Brasil: "Sua figura varia muito: no rio Negro, tem o corpo coberto de pelos; no Tapajós, um olho só; e no Solimões, seus dentes são verde-azulados. No Sudeste e no Sul, tem cabelo vermelho. Em Tupi, curupira significa ‘corpo de menino".

Outro material, de autoria do reconhecido autor Luís Cascudo (2006), em suas pesquisas sobre Literatura Oral do Brasil, mostra, em um dos capítulos,

também informações sobre o Curupira, comentando características do corpo, o que os autores/pesquisadores descrevem como “variantes” nas regiões do Brasil. Coletamos algumas frases a serem destacadas, entre elas, (p. 119):

(...) tem cabelos bonitos, umas sobrancelhas no meio da testa e mamas nas axilas.; (...) dentes azuis ou verdes e orelhas grandes no Solimões.; (...) Cabeleira hirta, dentes afilados, olhos brilhantes, (...); Na Bahia é uma cabocla, quase negra, (...).

Portanto, é possível identificar várias versões do personagem Curupira de uma mesma história, , indicando-o como um deus protetor das florestas, razão pela qual protege os animais contra os caçadores e contra o desmatamento da floresta. Esta variedade é motivada principalmente por se basearem em narrativas orais, do povo, passadas de gerações para gerações, antes de serem escritas.

Análise: hibridismo cultural em “Curupira Surdo”

A seguir, damos início à análise sobre o livro “Curupira Surdo”, mas primeiramente apresentamos uma breve caracterização de seus autores e suas versões.

Quanto aos autores, inicialmente a questão que surge é quanto a serem surdos ou ouvintes, os autores e os ilustradores: temos aqui três surdos e duas ouvintes. Um dos autores surdos é Amarildo Espindola; já os ouvintes são Elielza Reis da Silva e Larissa Pissinatti; já as ilustradoras são também surdas, Leila Sena e Suzana Alcântara. Essas pessoas fazem parte de uma equipe que produziu o livro.

A capa e contracapa são coloridas e nas demais páginas as ilustrações estão em preto e branco, junto ao texto que narra a história. Segue um breve resumo do enredo do livro.

O personagem principal, Curupira, era oriundo de uma família ouvinte que teve um filho surdo. Desde pequeno, Curupira aprendeu a língua de sinais da floresta com os animais surdos mais velhos. Um dia Curupira avistou dois caçadores e, em tempo, conseguiu avisar todos os animais, evitando que corressem risco de vida e assim impedindo a destruição da floresta. Um dos caçadores atirou numa onça, que ficou ferida no chão. Então, Curupira, furioso, foi na direção dos caçadores e com a presença da arara-intérprete, começou a sinalizar, avisando, enquanto a arara interpretava: “se destruírem a floresta e os animais,

vocês, caçadores, se transformarão no animal que mataram.” Os caçadores se desculparam e aprenderam alguns sinais da língua de sinais de floresta; depois, foram embora e o povo da floresta ficou feliz.

Passamos agora à análise do livro, em que são exploradas as citações de algumas passagens que podem nos ajudar a mostrar as significações do contexto do povo surdo e de sua língua como minoria linguística.
Os autores, ao escreveram essa outra versão, indicam no texto que ali se apresenta uma família ouvinte com filho surdo. O filho chama-se Curupira e, portanto, durante as narrativas se faz referência a Curupira e não a “Curupira Surdo”.Apenas o título do livro traz a expressão “Curupira Surdo”. Observe-se que outros livros de literatura surda já usaram esta fórmula, como “Cinderela Surda”,“Rapunzel Surda”,“Adão e Eva” e outros.

“Assim, descobriram que o bebê curupira era surdo” (ESPÍNDOLA, SILVA E PISSINATTI, 2016). Esta descoberta do enredo nos lembra as considerações de Lodenir Karnopp (2008, p. 5) sobre os contatos entre sujeitos surdos e ouvintes e sobre o hibridismo cultural. Karnopp cita os autores Peter Burke e Edward Said ao afirmar que “[...] a cultura surda tem apontado para o hibridismo cultural, no sentido de que ‘todas as culturas estão envolvidas entre si’ e ‘nenhuma delas é única e pura, todas são híbridas, heterogêneas’”.
Como citamos acima, mais de 90% das pessoas surdas nascem em famílias ouvintes, segundo Rachel Sutton-Spence et al. (2016), e essas frequentemente as enxergam como pessoas deficientes e incapacitadas, apesar de as pesquisas científicas terem demostrado que as línguas de sinais são línguas naturais com a mesma sofisticação lexical e gramatical das línguas orais.

Vejamos como o texto de “Curupira Surdo” focaliza a questão da língua de sinais dentro do enredo:

"o bebê curupira passa seus dias brincando com seus amigos surdos e aprendendo a língua de sinais da floresta com os animais surdos mais velhos."

"Curupira também ajudava no ensino da língua de sinais da floresta aos animais ouvintes e surdos mais jovens."

É comum encontrarmos nas comunidades surdas pessoas surdas mais velhas conversando com jovens surdos. Essas manifestações do povo surdo, passadas de geração em geração, transmitem as significações e discursos que se tornam parte importante da identificação da comunidade surda. Com este processo podemos relacionar temas articulados com sociedade, educação, identidade e literatura. E, ainda, é importante relembrar as escolas de/para surdos/bilíngues/classe especial, e a convivência entre colegas surdos, todos eles produzindo significações da língua e da cultura.

Na comunicação entre surdo e ouvinte, há casos em que a aprendizagem da língua de sinais ocorre com amigos, colegas, vizinhos ou até com surdos que trabalham juntos. Pode ser que se encontrem nos cursos de Libras, nas associações de surdos e em outras instituições, nas disciplinas de Libras nas escolas e universidades públicas e privadas, neste caso com professor(a) surdo(a), ou estejam incluídos nos cursos de Letras/Libras Licenciatura ou bacharelado. Mas também devemos citar a presença, no enredo do livro que estamos analisando, de personagens intérpretes.

(...) Araras-intérpretes encarregavam-se de avisar os animais ouvintes

Os autores transpuseram para a história, dentro do espaço da floresta, cenário da história, a existência de profissionais tradutores e intérpretes de língua de sinais. Sabemos que estes profissionais trabalham no mercado público e privado, em eventos sociais e culturais e na mídia.Voltando à história, vemos que o texto afirma que Curupira sinalizou aos caçadores:

vocês não podem caçar”. Os caçadores não entenderam nada, (...). Os caçadores ficaram com medo e assustados. Pediram ajuda à arara-intérprete para ensinar-lhes alguns sinais, a fim de se comunicarem com o curupira. (...) os caçadores sinalizaram: “desculpa, curupira, não vamos fazer isso. De agora em diante, vamos cuidar da floresta.

Assim é o desfecho da história. Os autores inseriram, em um enredo tradicional, inspirado no folclore – de confronto entre o Curupira e os caçadores – elementos importantes da literatura surda e da comunidade surda brasileira.

Peter Burke (2016) usa o exemplo do Padre José Anchieta como hibridismo cultural, pois ele era espanhol e, ao chegar no Brasil, precisou aprender Tupi para evangelizar os índios. Burke cita Malinowski que afirma que “aprender uma cultura estrangeira é como aprender uma língua estrangeira” (p. 56). Podemos aproximar esta interpretação do encontro entre surdos e ouvintes e aos processos de hibridação cultural.

Considerações finais

Ao encerrar a análise da obra “Curupira Surdo”, concluímos ser uma obra tipicamente híbrida. Diante das consultas realizadas e da análise da obra, vimos a existência de diferentes misturas entre a literatura brasileira (transposição de conto e lenda folclórica) e a literatura surda. Na literatura brasileira, também já acontecera um processo de hibridismo: as histórias do Curupira, originalmente orais, foram registradas em diferentes textos escritos, usando os mesmos personagens em diferentes versões. A diferença de “Curupira Surdo” vem apenas da adaptação utilizada, que provém das características da literatura surda, conforme mencionamos anteriormente. O principal personagem Curupira é surdo, sua comunicação se dá em língua de sinais, ele ensina aos outros e há personagens intérpretes, dada a convivência entre surdo e ouvintes. A obra mostra valores culturais do povo surdo, a identificação que existe entre a comunidade surda no nosso território nacional; afinal, a comunidade surda é bilíngue e mora neste território nacional.

Em territórios bilíngues [os surdos] convivem em meio à massa cultural da comunidade estrangeira, ou seja, a comunidade ouvinte, onde os sujeitos surdos penetram. E com sua língua, na terra pátria, buscam narrativas bilíngues e produções literárias para a manifestação cultural de surdos, para o consumo e a circulação dessas produções. (MOURÃO, 2016, p. 64).

Observamos que existem livros de literatura surda para crianças ou adultos, sejam produções inéditas ou adaptadas, escritas e/ou em língua de sinais, isso por autores brasileiros tais como Tibi e Joca: uma história de dois mundos (BISOL, 2001); Cinderela Surda,(HESSEL, ROSA, KARNOPP, 2003); Rapunzel Surda, (HESSEL, ROSA, KARNOPP, 2003); Adão e Eva, (ROSA, KARNOPP, 2005); Patinho Surdo, (ROSA, KARNOPP, 2005); As luvas mágicas do Papai Noel, (KLEIN, MOURÃO, 2012); A fábula da Arca de Noé, (MOURÃO, 2014); também livros estrangeiros como Léo, o puto surdo, (LAPALU, 2006); Mamadu, o herói surdo, (MORGADO, 2007), entre outros.

Relembramos que existem obras em língua de sinais em DVD, como: Contando histórias em Libras: lendas brasileiras e clássicos da literatura mundial - Fábulas 5, no qual consta um capítulo intitulado “O Curupira”, o qual, entretanto, não apresenta um personagem surdo, e sim apenas uma outra versão e tradução cultural em língua de sinais. São atores surdos que incorporam os personagens como o Curupira e os caçadores.

Cada vez mais vemos aumentando as publicações de livros de literatura surda, nas redes sociais circulando em línguas de sinais, histórias narradas e produzidas por talentos surdos. Observe-se que em todos estes casos, também estamos lidando com processos de hibridação e mesclas de diferentes culturas. É importante pensarmos sobre o que Peter Burke (2016, p. 31) afirma ao analisar exemplos de músicas, mas que também se aplica a livros literários: “[...] devemos ver as formas híbridas como o resultado de encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro [...]”.

Em suma, a coleta das histórias nos livros e sítios da internet e, por conseguinte, sua análise, foi bastante desafiadora para a realização deste artigo, no sentido de identificar as variadas mesclas e hibridações das versões da história do personagem Curupira.

Notas

3 Versão revista e ampliada de trabalho final apresentado no Seminário Avançado HIBRIDISMO, APROPRIAÇÃO E OUTROS PROCESSOS CULTURAIS, ministrado pelas profas. Maria Lúcia Wortmann e Rosa Hessel Silveira, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, em 2017-02.
4 Certamente tal aproximação não se deu em função de um sentimento de solidariedade em relação aos povos indígenas, mas de uma intencionalidade do clero europeu. Isso pode ser constatado a partir do relato de Cascudo (2006, p. 89, grifo nosso), ”Falavam os Padres a língua dos aborígines, escreviam-lhe a gramática e o vocabulário, e ensinavam e pregavam nesse idioma.”.
5 Filme infantil com atores surdos (adultos) que apresentam personagens como o Curupira e os caçadores no trajeto das trilhas, do acampamento e do mato.Vídeo no acervo INES – TV INES, disponível em: <http://tvines.org.br/?p=5759>. Acesso em: 12 nov 2018.

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