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Lodenir Becker Karnopp
Lodenir Becker Karnopp
Professora / Investigadora
Produções culturais de surdos: análise da literatura surda
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Publicado em 2010
Cadernos de Educação - FaE/PPGE/UFPel - Pelotas [36]: 15 -174
Lodenir Becker Karnopp
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Resumo

O presente artigo apresenta dados de pesquisa sobre narrativas e histórias publicadas sobre surdos e a língua de sinais. A análise do registro das histórias pretende contribuir com as discussões referentes à literatura surda, potencializando assim a produção de conhecimentos nessa área. A análise de livros impressos teve como critério a seleção de livros cuja temática fosse a surdez, a língua de sinais e/ou surdos, considerando as publicações a partir de 2000, período em que iniciou também uma ampla movimentação em torno da língua de sinais e da cultura surda no Brasil. Nem todos os livros que apresentam personagens surdos ou que tematizam a surdez fazem parte da literatura surda. O trabalho de análise do registro de histórias verificou que alguns dos livros produzidos referem o uso da língua de sinais, mas descontextualizado do pertencimento a uma comunidade de surdos. Representações de surdos ligadas à ideia de superação ou de compensação da surdez estão presentes em alguns dos materiais analisados. No entanto, outros livros focalizam o uso da língua de sinais por pessoas surdas, o pertencimento cultural, a questão da identidade e da cultura surda, presentes nos textos e/ou nas imagens. Dos materiais analisados, percebe-se que surdos contadores de histórias buscam o caminho da auto-representação na luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades, através da legitimidade de sua língua, de suas formas de narrar as histórias, de suas formas de existência, de suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os produtos culturais que consomem e que produzem.

Introdução

Nas últimas décadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comunidades surdas, em diferentes espaços, especialmente, o reconhecimento da cultura surda e a oficialização da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Além disso, investigações nas áreas da educação e da linguística apontaram a importância da língua de sinais na educação do surdo. Tais fatos tornaram fecundas as reflexões sobre a língua na educação de surdos e revelaram também trajetórias de lutas, diferentes concepções sobre surdo, língua de sinais, ensino, cultura e fazer pedagógico.

Estratégias políticas, culturais e artísticas foram utilizadas pelo movimento surdo para denunciar a condição de pacientes da audiologia, deficientes auditivos ou sujeitos com “necessidades especiais”, tendo como meta confrontar o modelo clínico-patológico dominante na educação de surdos. Marcar a diferença linguística e cultural das pessoas surdas significou trazer a discussão para o campo político, por meio de uma afirmação da cultura surda, capaz d congregar pessoas em torno de uma proposta política. Manifestações de movimentos surdos possibilitaram a elaboração de outras representações de experiências linguísticas e culturais de pessoas surdas.

Movimentos surdos podem ser entendidos como movimentos sociais articulados a partir de aspirações, reivindicações, lutas das pessoas surdas no sentido do reconhecimento de sua língua, de sua cultura. Esses movimentos se dão a partir dos espaços articulados pelos surdos, como as associações, as cooperativas, os clubes, onde “jovens e adultos surdos estabelecem o intercâmbio cultural e linguístico e fazem o uso oficial da Língua de Sinais (FENEIS, 1995, p.10).” (KLEIN, 2005, p. 20).

Klein (2005) e Souza (1998) destacam que a língua de sinais é uma das principais razões de encontro entre os surdos, pois é através da experiência de compartilhar uma língua de modalidade gestual-visual que eles têm oportunidades de trocar experiências, conversar, aprender. A pauta de discussão dos movimentos surdos é ampla e diversificada, se considerarmos os diferentes tempos e espaços em que estão inseridos. Algumas propostas políticas são compartilhadas em nível mundial, por exemplo, aquelas que são coordenadas pela Federação Mundial de Surdos (Word Federation of the Deaf—WFD), com sede na Finlândia. Outras propostas são organizadas por movimentos nacionais, por exemplo, pela Federação Nacional de Educação e Integração do Surdo (FENEIS), que tem filiais no Brasil, onde há possibilidades de articulação das discussões locais com as discussões nacionais.

Embora as línguas de sinais sempre tenham existido em comunidades linguísticas de pessoas surdas, o reconhecimento político das línguas de sinais é, conforme descrito anteriormente, recente.Wrigley (1996) reporta Declarações da UNESCO, da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Federação Mundial dos Surdos (World Federation of the Deaf – WFD) e do Encontro Global dos Especialistas (Global Meeting of Experts) sobre o status linguístico das línguas de sinais. Ele lembra que a UNESCO, apenas em 1984, declarou o seguinte: “(...) a língua de sinais deveria ser reconhecida como um sistema linguístico legítimo e deveria merecer o mesmo status que os outros sistemas linguísticos” (WRIGLEY, 1996, p. xiii).

No Brasil, através da articulação política da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), ocorreu a oficialização da Libras, conforme consta na Lei Federal 10.436 (24/04/2002). Posteriormente, foi publicado, no Diário Oficial, o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei n. 10.436, e o art. 18 da Lei n. 10.098 de 19 de dezembro de 2000. Neste sentido, podemos perceber mudanças significativas nas leis e na visibilidade das articulações do movimento surdo com as instâncias governamentais. O Decreto trata, entre outros temas:

  • da inclusão da LIBRAS como disciplina curricular;
  • da formação do professor de LIBRAS e do instrutor de LIBRAS;
  • do uso e da difusão da LIBRAS e da língua portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação
  • da formação do tradutor e intérprete de LIBRAS-língua portuguesa;
  • da garantia do direito à educação das pessoas surdas ou com deficiência auditiva.

Considerando as declarações descritas nos parágrafos anteriores, o reconhecimento da Libras e as conquistas do movimento surdo, queremos focalizar a análise nas narrativas e histórias contadas por surdos em Libras, identificando marcas 1 de uma diferença nos discursos produzidos.

Apesar de mudanças significativas na legislação e de iniciativas de algumas propostas educacionais em instituições de ensino, o fato é que, há muito tempo, temos, por parte dos surdos, uma luta histórica tentando fazer valer a diferença linguística e cultural que lhes é devida, não somente nos espaços escolares, mas em outros espaços, como na mídia e nos diferentes artefatos culturais. Sabe-se que há a predominância de uma única forma linguística, de uma cultura universal, silenciado as manifestações linguísticas tecidas em outras línguas, como é o caso, inclusive, das narrativas em Libras. Em consequência, circulam representações de surdos atreladas a modelos exóticos, deficientes, “especiais” e, além disso, é “emudecida a trova, são silenciadas as histórias antes contadas nas quermesses, põe-se para adormecer a memória popular, imobilizam-se as mãos e as narrativas que os sinais tecem” (SOUZA, 2000, p. 87).

Miranda (2001) remete-nos à reflexão a partir de narrativas produzidas por surdos, em que eles sinalizam:

– Queremos ter a escola... Mas não como a escola do ouvinte, mas como a escola do adulto surdo (...). Na escola do adulto surdo (...) precisa que se ensine LIBRAS. O português tá bom, professor, mas a LIBRAS é melhor. Na escola do surdo precisa que haja um professor surdo, para que as mulheres aprendam tudo sobre beterraba... Na escola do surdo precisa ter intérprete e curso de LIBRAS para os ouvintes. Queremos também computador, intercâmbio com as comunidades surdas, teatro, arte, jogos, geografia, história, português, festas, churrasco e passeios... E se a escola oferecer tudo isso, nem precisa ter férias no mês de fevereiro, porque ficar em casa sem os amigos surdos é mesmo muito chato, professor. (Fragmentos de relatos dos estudantes surdos. In: KARNOPP, 2001, apresentação oral).

As narrativas produzidas por surdos, como a que vimos no parágrafo anterior, põem sob suspeição os saberes impostos e que são considerados “como sendo os mais importantes, os que necessitam ser assimilados por muitos outros grupos, sem consultá-los, sem ouvir-lhes os anseios”. Neste sentido, é preciso acatar seus desejos, escutar suas opiniões, acolher os seus votos. Permitir-lhes que participem dos destinos da comunidade escolar. Faz-se necessário franquear-lhes a palavra em sinais, e suas narrativas precisam ser acolhidas por uma escuta também em sinais (SOUZA, 2000, p. 90).

Considerando a relevância educacional e social das produções culturais de surdos (em especial, as literárias), procederemos à análise de materiais impressos e publicados que apresentam aspectos da cultura surda e que servem como registro das histórias contadas em Libras, da literatura surda.

O estado atual de conhecimento sobre o registro das produções culturais

No panorama da educação de surdos, é possível constatar que, para muitas pessoas, torna-se irrelevante e, para outras, decididamente incômoda, a referência a uma cultura surda. Em menor grau ainda, se discute a situação bilíngue de surdos. Em geral, em um contexto escolar ou clínico onde não se tolera a língua de sinais e/ou a cultura surda, há um completo desconhecimento dos processos e dos produtos que determinados grupos de surdos geram em relação ao teatro, ao brinquedo, à poesia visual, à literatura em língua de sinais etc...

A ênfase na dimensão centralizadora de uma cultura universal tem impossibilitado que crianças surdas possam ter uma inserção em processos culturais existentes em comunidades de surdos. Por outro lado, são escassos, nos contextos escolares, materiais que tematizem a diversidade cultural, tendo em vista a possibilidade de leitura de outros textos, de outras imagens e de outras histórias do que significa ser diferente. Enfim, uma abordagem que possibilite outras representações sobre os surdos.

Karnopp (2006) afirma que pesquisas que objetivam registrar, escrever, filmar e divulgar a produção literária de surdos, encontram, em geral, os seguintes dilemas: as dificuldades da tradução da experiência visual ou, talvez, o desconhecimento da língua de sinais e das situações cotidianas dos narradores, do significado de suas lutas, de sua língua, dos costumes e das situações bilíngues. É possível, no entanto, encontrar formas de registrar as histórias que traduzam a modalidade visual que os surdos utilizam para narrar suas histórias de vida, piadas, mitos, lendas..., sem perder o movimento que as mãos produzem, as expressões corporais e faciais que vão construindo e desvendando o enredo, as personagens, o cenário. Interessa-nos, portanto, analisar os registros do mundo surdo – de suas diferenças linguísticas e culturais – e trazer à tona os textos produzidos por/para surdos.

É fato que, em geral, as produções culturais têm diferenças entre si, segundo a criatividade dos compiladores, sua compreensão do grupo estudado, dos costumes, da língua. É raro, por inúmeros motivos, que as obras registrem e resgatem o cotidiano de pessoas surdas. Cabe considerar que inúmeras histórias são contadas em línguas de sinais pelos surdos, mas poucas são registradas em livros para divulgação e leitura em escolas de surdos e na comunidade em geral.

A expressão “literatura surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que entende a surdez como presença de algo e não como falta, que possibilita outras representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente (KARNOPP, 2006).

De todo modo, a língua de sinais, a leitura, a escrita e a tradução fazem parte do mundo surdo, indispensável para a defesa dos seus interesses e cidadania. Há quem pense que a escrita pode contribuir para a destruição da riqueza em sinais; mas a escrita, por si só, não é necessariamente um fator contrário, já que se pode pensar na escrita como a busca por raízes culturais, associada a formas de arte, como teatro e vídeo.

Além da escrita, outras formas de documentação, como filmagens, são fundamentais para o registro de formas linguísticas que vão se perdendo ou se transformando. Para uma comunidade de surdos manter o leque de possibilidades artísticas e expressões da língua de sinais, os registros visuais são indispensáveis na criação de bibliotecas visuais e podem contribuir para uma escrita posterior, com traduções apropriadas.

Para Kyle & Allsop (1982), a comunidade surda é diferente de outras comunidades linguísticas em muitos aspectos, já que os surdos não estão geograficamente em uma mesma localidade, mas estão espalhados em várias partes do mundo. Pessoas surdas não trabalham em um mesmo local. Em alguns centros urbanos, eles encontram seus pares surdos somente duas ou três vezes por semana e passam a maior parte de seu tempo em um mundo ouvinte. Esse fato produz um padrão de comunidade em que o tempo que os surdos permanecem juntos é fragmentado; por outro lado, são extremamente próximos uns dos outros. Essa característica social faz com que pessoas surdas mantenham suas vidas na comunidade surda, participando da associação de surdos, realizando atividades conjuntas, estudando em uma mesma escola, empreendendo lutas e reivindicações conjuntas.

Considerando a descrição do parágrafo anterior, as comunidades surdas têm como principal marcador identitário o uso da língua de sinais. Compartilhar a língua de sinais possibilita também a produção de narrativas e poemas que vão passando de geração a geração. Essas considerações são importantes para entendermos a produção literária em sinais.

A participação em associações, federações, clubes de surdos e a interação com pares surdos, mesmo que seja eventual – duas ou três vezes por semana – evidencia, nos termos de Baker & Cokely (1980), uma atitude e expressão de escolha por uma comunidade, ou necessidade de compartilhar informação e comunicação. Não significa “Eu quero ser surdo”, mas antes: “Eu sou uma pessoa surda e desejo estar em contato com outras pessoas que compartilhem minha língua” (KYLE; WOLL, 1985, p. 21).

No estudo realizado por Kyle & Allsop (1982), os autores concluíram que não é somente o domínio da língua de sinais ou a surdez que constituem os elementos principais em relação ao pertencimento à comunidade surda, mas também uma atitude surda, ou seja, a participação, o estar junto compartilhando informações e ideias. A língua de sinais mostra-se fundamental na identificação da comunidade surda, embora outros aspectos sejam também importantes, como a convergência de aspectos políticos, sociais e linguísticos entre os membros dessa comunidade. Há considerável evidência para se afirmar que pessoas surdas desejam estar juntas e formar uma comunidade. O entendimento proporcionado pelo compartilhamento de uma língua e uma cultura, neste texto, vincula-se a uma abordagem de que:

o entendimento ao estilo comunitário, casual [...] não precisa ser procurado, e muito menos construído: esse entendimento já “está lá” completo e pronto para ser usado – de tal modo que nos entendemos “sem palavras” e nunca precisamos perguntar com apreensão, “o que você quer dizer?” O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união. É um “sentimento recíproco e vinculante” – “a vontade real e própria daqueles que se unem”; e é graças a esse entendimento, e somente a esse entendimento, que na comunidade as pessoas “permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam” (BAUMAN, 2003, p. 15-16).

Tal entendimento, analisado aqui entre os membros da comunidade surda, torna-se possível pelo fato de compartilharem uma língua, a língua de sinais, em uma sociedade em que a língua majoritária é uma língua oral. Nesse contexto frágil e vulnerável, utilizamos a advertência de Bauman (2003, p. 19):

A comunidade de entendimento comum, mesmo se alcançada, permanecerá portanto frágil e vulnerável, precisando para sempre de vigilância, reforço e defesa. Pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta lhes faz em suas atividades cotidianas, e de libertar-se da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e arriscadas, serão desapontadas. A paz de espírito, se alcançada, será do tipo “até segunda ordem”. Mais do que com uma ilha de “entendimento natural”, ou um “círculo aconchegante” onde se pode depor as armas e parar de lutar, a comunidade realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e frequentemente assolada pela discórdia interna; rincheiras e baluartes são os lugares onde os que procuram o aconchego, a simplicidade e a tranquilidade comunitárias terão que passar a maior parte de seu tempo.

Mais do que aconchego, tensão; mais do que conforto, vigilância. A comunidade de pessoas surdas, usuária de uma língua de sinais, enfrenta esses desafios e outros desafios. Neste sentido é que as mudanças e o reconhecimento legal da língua de sinais não são suficientes. A cultura surda, a experiência visual e o uso da língua de sinais sustentam o encontro e a vida da comunidade surda.

Para escaparem da ridicularização da língua de sinais e de seus bens culturais, de ações intolerantes e até proibitivas, os surdos se organizam em comunidades, buscando o fortalecimento da língua de sinais, da identidade e da cultura surda. Nesta perspectiva, a literatura surda adquire também o papel de difusão da cultura surda, dando visibilidade às expressões linguísticas e artísticas advindas da experiência visual.

Caminhos da Pesquisa

A ênfase na análise dos discursos, adotada para a análise dos materiais coletados, está vinculada a uma dimensão produtiva do discursos, alinhada a uma abordagem que inspirou os Estudos Culturais – a chamada “virada linguística”, cuja ênfase está no papel mais central conferido à linguagem nos fenômenos sociais. A linguagem passou a ser considerada como constituidora da realidade e não como simple reflexo, sendo que uma das funções da análise do discurso, na vertente da análise crítica de inspiração foucaultiana, passou a ser a análise da forma de regular socialmente a produção discursiva em nossa sociedade (LUKE, 2000; FAIRCLOUGH, 2001; GILL, 2002). Entendemos, a partir dessa perspectiva, que os discursos produzem e reproduzem representações que interferem diretamente nas práticas educacionais e sociais. “Nenhuma linguagem é neutra, nenhuma linguagem ‘brota da natureza’... Ela é marcada pelas contingências pragmáticas, pelas práticas dos sujeitos que a criam e recriam continuamente” (SILVEIRA, 2002, p. 20).

Para a realização da pesquisa, foram selecionadas narrativas e histórias publicadas, considerando aspectos da literatura surda: o recorte e a escolha dos títulos que se identificam com os objetivos da pesquisa. Em seguida, procedemos à análise dos discursos materializados nos textos produzidos em sinais. A análise do registro das histórias sinalizadas e a análise dos discursos produzidos pretendem contribuir com as discussões referentes à literatura surda, potencializando assim a produção de conhecimento que subsidiem programas de formação docente na área de educação de surdos.

Cabe salientar que tais procedimentos objetivam oferecer o desenho metodológico da pesquisa, mas como nota final à abordagem metodológica utilizada durante a pesquisa, deve-se considerar:

a total impossibilidade do distanciamento e da assepsia metodológica ao lançar nossos olhares sobre o mundo. Isso não significa falta de rigor mas significa que devemos ter sempre presente que somos irremediavelmente parte daquilo que analisamos e que, tantas vezes, queremos modificar (VEIGA-NETO 2002, p. 36).

Tal alerta nos desafia a considerar nossa relação com o trabalho que realizamos e com o grupo ao qual dirigimos nossos olhares, nossas análises, nossas discussões, nossas pesquisas.

Possibilidades encontradas

Alguns dos materiais existentes são os que traduzem os textos clássicos da literatura universal e/ou brasileira para a Libras. A editora “Arara Azul” disponibiliza a coleção “Clássicos da Literatura em CD-R em Libras/Português”, em que uma equipe de tradutores faz a tradução da língua portuguesa para a Libras. Os clássicos traduzidos são de fundamental importância para a leitura de obras e textos que circulam na literatura brasileira ou na literatura mundial, mas não são objetos de análise nesta investigação, já que o objetivo foi analisar livros cuja temática seja a surdez ou a língua de sinais.

Quanto à análise de livros impressos, é possível encontrar alguns livros cuja temática é a surdez, a língua de sinais e/ou surdos. Os livros publicados a partir de 2000 que foram analisados são os seguintes: “Tibi e Joca” (BISOL, 2001), “A cigarra e as formigas” (OLIVEIRA; BOLDO, 2003), “Kit Libras é Legal” (2003), “O Som do Silêncio” (COTES, 2004), “Cinderela Surda” (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003), “Rapunzel Surda” (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003), “Adão e Eva” (ROSA; KARNOPP, 2005), “Patinho Surdo” (ROSA; KARNOPP, 2005).

O livro “Tibi e Joca – uma história de dois mundos” (BISOL, 2001) conta com a participação especial de um surdo, Tibiriçá Maineri. Na apresentação lemos:

Esta história de um menino surdo é parecida com a de muitas outras crianças que nasceram ou ficaram surdas. Dúvidas, desespero, culpa, acusações, sofrem os pais. Solidão, um imenso sem-sentido, um mundo que teima em não se organizar, sobre a criança. O que fazer? (BISOL, 2001, apresentação).

No desenvolvimento da história, observamos que o personagem é um menino surdo que nasceu em uma família com pais ouvintes. Todos passaram por momentos difíceis até que começam a usar a língua de sinais.

O texto é rico em ilustrações e, além da história registrada na língua portuguesa, há um boneco-tradutor que sinaliza as palavras-chave de cada página, que permitem ao usuário da Libras acompanhar a história.

Outro conjunto de livros impressos de literatura infantil é possível encontrar no “KIT LIBRAS É LEGAL”. Há cinco livros que cumprem uma função prioritariamente didática. Os livros são ilustrados, apresentam a sinalização da Libras em desenhos, a escrita da língua de sinais e o português. Observe a descrição de cada um dos livros:

“VIVA AS DIFERENÇAS” é um livrinho que fala, de forma simples, sobre a diversidade do ser humano. Discutir as diferenças em sala de aula é uma oportunidade de semear valores como o respeito e a solidariedade entre as crianças, indispensáveis a sua convivência em grupo.

“CACHOS DOURADOS” é um clássico da literatura infantil que faz parte do universo de muitas crianças ouvintes. Agora as crianças surdas podem conhecer essas histórias contadas por seus pais e professores através do registro em Libras.

“IVO” é uma oportunidade de trabalhar algumas noções de cidadania com os alunos, pois os documentos pessoais são uma maneira de nos inserirmos à sociedade atual e dela participar. A história infantil oferece inúmeras possibilidades de trabalhar diversos conceitos a ela relacionados, tais como família, saúde, trabalho, educação, política entre outros.

“HISTÓRIA DA ÁRVORE” é uma piada muito conhecida na comunidade surda, que vem sendo contada e recontada. Com humor ela traz uma mensagem muito interessante de respeito às diferenças individuais (retirado de http://www.libraselegal.com.br/index1.php).

A história “A cigarra surda e as formigas”, escrita por duas professoras de surdos, uma ouvinte e a outra surda, apresenta como tema a importância da amizade entre surdos e ouvintes e faz um apelo ao final da história “Amiguinhos precisamos respeitar as diferenças” (OLIVEIRA; BOLDO, s.d.).

Na apresentação do livro, uma das autoras enfatiza que essa história foi fruto do trabalho realizado em sala de aula, onde houve uma apresentação teatral por crianças surdas, em Libras, e também a produção do texto em escrita de sinais (sign writing) e na língua portuguesa. O livro foi produzido manualmente e as ilustrações foram realizadas por um aluno. Apresenta – nas páginas em terminação numérica par – três possibilidades de leitura: a) através da língua portuguesa, b) através do desenho do sinal c) através da escrita do sinal. Percebemos que, no livro, não está totalmente legível a escrita dos sinais, provavelmente por ter sido produzido manualmente. Além disso, nas páginas ímpares, há ilustrações que remetem ao desenvolvimento da história.

O livro “O som do silêncio” (COTES, 2004) conta a história de uma menina surda que não tem medo do barulho.

Inspirada em uma história real, a fonoaudióloga e escritora criou a personagem Amanda, uma menininha surda que ensina aos colegas de escola a importância do som do silêncio. O enredo gira em torno de um passeio ao fundo do mar. Acostumadas com barulhos, as crianças se assustam com o silêncio das águas, menos Amanda, que, maravilhada com cores e peixes, brinca à vontade. "É nesse momento que crianças e adultos percebem o quão maravilhoso pode ser o mundo das Amandas, das crianças que não ouvem e que, nem por isso, deixam de sonhar", conta Cláudia (retirado de http://www.vezdavoz.com.br/).

O tema explorado no livro é “o som do silêncio”, ou seja, a questão musical, dos sons e dos ritmos, conforme evidencia a imagem da capa que apresenta uma pessoa com instrumento de sopro. O livro é ilustrado e na forma de apresentação do texto, em português, a rima e o ritmo nos versos escritos são explorados, por exemplo: “Na casa do Reinaldo, nasceu a Amanda, que já era amada muito antes de ser gerada” (COTES, 2004). Traz a ideia de superação no mundo das crianças que não ouvem. Mostra uma visão compensatória da surdez, evidenciando que não há dificuldades que não possam ser superadas! Além disso, o desfecho da história revela o segredo de Amanda: “É que ela era uma sereia, do fundo do mar!!!”.

Não há tradução para a Libras, apenas na capa aparece a soletração manual do título da história. O livro faz parte do kit que objetiva tratar da inclusão de crianças deficientes. Nesse kit, os livros infantis têm como personagens crianças surdas (através da história “O som do silêncio”) e cegas (através da história “Parque quebrado, olho fechado” – um livro escrito em Braille 2). Além desses dois livros, encontramos ainda um CD, com músicas, e um livro de atividades intitulado “A vez da voz”, com o seguinte comentário: “Um livro de atividades promovendo a interação entre crianças ouvintes e não ouvintes. Acompanha um CD com músicas e histórias”. Tal material, vinculado a uma proposta de inclusão e de compensação da surdez, apresenta uma criança “plenamente” inserida no mundo dos ouvintes, sendo considerada, ao final da história, a heroína.

Outros livros analisados foram “Cinderela Surda” (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003), “Rapunzel Surda” (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003), “Adão e Eva” (ROSA; KARNOPP, 2005) e “Patinho Surdo” (ROSA; KARNOPP, 2005), que registram histórias dos clássicos da literatura, com uma aproximação com as histórias de vida e as identidades surdas. Traduzir as histórias que são contadas em língua de sinais na comunidade de surdos foi o objetivo inicial dos autores desses livros. Para isso, foram filmadas algumas histórias contadas em língua de sinais, que foram posteriormente registradas na escrita da língua de sinais e traduzidas para a língua portuguesa.

No livro “Adão e Eva”, os autores contam a origem da língua de sinais e salientam que versões dessa história são recorrentes nas comunidades de surdos. Na história, após comer a maçã, o casal percebe sua nudez e começa a usar a fala, já que as mãos estão ocupadas em esconder os corpos desnudos. Não se sabe se Adão e Eva eram surdos ou ouvintes, pois o livro não pontua isso. O objetivo é refletir sobre a possibilidade de as línguas de sinais serem utilizadas por diferentes comunidades, sejam elas ouvintes ou surdas. As ilustrações são em preto e branco e há um glossário ao final do livro.

O livro “Patinho Surdo” (ROSA; KARNOPP, 2005) conta a história de um patinho surdo que nasceu em um ninho de ouvintes. Quando encontra patos surdos, aprende com eles a Língua de Sinais da Lagoa e descobre sua história de vida. O texto aborda as diferenças linguísticas na família e na sociedade, além de apresentar a importância do intérprete na comunicação entre surdos e ouvintes. As ilustrações são em preto e branco e há um glossário ao final do livro. “Cinderela Surda” faz uma releitura do clássico “Cinderela” e apresenta aspectos da cultura e identidade surda. O texto está numa versão bilíngue, ou seja, as histórias estão escritas em português e também na escrita da língua de sinais (sign writing). As ilustrações acentuam as expressões faciais e os sinais, destacando elementos que traduzem aspectos da experiência visual. Nesse livro, as ilustrações ocupam uma página e a outra registra a história em escrita de sinais (sign writing) e na língua portuguesa.

“Rapunzel Surda” tematiza a aquisição da linguagem e a variação linguística nas línguas de sinais. Quando nasceu, a menina foi raptada pela bruxa e viveu muitos anos escondida e isolada em uma torre. Diz o texto:

Passaram-se os anos, Rapunzel cresceu e a bruxa percebeu que a menina não falava, mas tinha uma grande atenção visual. Rapunzel começou a apontar para o que queria e a fazer gestos para muitas coisas. A bruxa então descobriu que a menina era surda e começou a usar alguns gestos com ela (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 12).

Isolada em uma torre, longe dos pais e do convívio com outras pessoas, Rapunzel tinha contato somente com a bruxa, que a raptara. Na istória de Rapunzel, não há um ambiente linguístico para a aquisição e o desenvolvimento da linguagem, não há usuários da língua até que ela felizmente encontra o príncipe. A partir disso, começa a se apropriar dos sinais. Diz o texto “A bruxa começou a desconfiar que alguma coisa estava acontecendo, pois Rapunzel de repente estava usando muitos sinais” (p. 24).

As histórias “Cinderela Surda”, “Rapunzel Surda” e “Patinho Surdo” tematizam a importância da língua de sinais, da cultura e identidade surda.

Para finalizar

A literatura surda está relacionada com a cultura surda. A literatura da cultura surda, contada na língua de sinais de determinada comunidade linguística, é constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas, jogos de linguagem e muito mais. O material, em geral, reconta a experiência das pessoas surdas, no que diz respeito, direta ou indiretamente, à relação entre as pessoas surdas e ouvintes, que são narradas como relações conflituosas, benevolentes, de aceitação ou de opressão do surdo.

As publicações sobre os surdos e a língua de sinais são raras. No entanto, as histórias são contadas e circulam na língua de sinais, que repassa, de uma geração para outra, os valores, o orgulho de ser surdo, os feitos dos líderes surdos, as histórias de vida e as dificuldades de participação em uma sociedade ouvinte. Desse modo, a literatura surda é, num certo sentido, uma tradição “em sinais” e é, eventualmente, registrada em filmes ou vídeos. Outras formas de registro são as traduções das histórias para a língua escrita do país, por exemplo, as histórias que são contadas na língua de sinais brasileira e que são, posteriormente, traduzidas para a escrita da língua portuguesa.

Nem todos os livros que apresentam personagens surdos ou que tematizam a surdez fazem parte da literatura surda. O trabalho de análise do registro de histórias verificou que alguns dos livros produzidos referem o uso da língua de sinais, mas descontextualizado do pertencimento a uma comunidade de surdos. Representações de surdos ligadas à ideia de superação ou de compensação da surdez estão presentes em alguns dos materiais analisados. No entanto, outros livros focalizam o uso da língua de sinais por pessoas surdas, o pertencimento cultural, a questão da identidade e da cultura surda, presentes nos textos e/ou nas imagens.

Dos materiais analisados, percebe-se que surdos contadores de histórias buscam o caminho da auto-representação na luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades, através da legitimidade de sua língua, de suas formas de narrar as histórias, de suas formas de existência, de suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os produtos culturais que consomem e que produzem.

Notas

1 Utilizo a expressão “marcas surdas” no sentido concebido por Lopes (2006).
2 Na capa do kit “Vez da Voz”, aparece o seguinte comentário para o livro “Parque quebrado, olho fechado”: “Um livro escrito em Braille, mostrando que uma criança com os olhos fechados pode sonhar, sonhar...”. Os autores pretendem mostrar o mundo de quem é cego.

Bibliografia

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