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A presença da música e a cultura surda na literatura infantil
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Publicado em 2012
Anais do 5º SLIJ Seminário de Literatura Infantil e Juvenil - Letramento literário e Diversidade, p.164-172
Carolina Hessel Silveira
Cláudio Mourão
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Resumo

O que é a música para surdos? Qual sua representação e significado para os sujeitos e personagens surdos? Podemos ver que vários trabalhos têm sido feitos sobre representações de surdos em livros de literatura infantil, filmes, matérias de jornal etc. Esses artefatos trazem pedagogias culturais, pois eles ensinam sobre os surdos, sobre sua língua, sua cultura. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é fazer uma análise de três livrosrecentes de literatura infantil que apresentam personagens surdos. Trata-se de O canto de Bento e de Família Sol, Lá, Si... ambos da autora Márcia Honora, editora Ciranda Cultural, ano 2008, eO Silêncio de Júlia, dos autores Pierre Coran e MélanieFlorian, editora FTD, ano 2011. Para isso, busca-se base teórica nos Estudos Culturais e nos Estudos Surdos, especialmente nos conceitos de pedagogias culturais, cultura surda, língua de sinais, e nos inspiramos em análise de outros livros sobre surdos (SILVEIRA, 2004). Os livros da autora Márcia Honorautilizam personagens animais e outros autores, Pierre Coran e MélanieFlorian, apresentam personagens humanos. Neles podemos ver o enredo e a forma como os personagens surdos são representados. A análise mostra que, nas histórias trazidas com personagens surdos, existe ênfase na música, com fatos inverossímeis, e um deles mostra uma visão clínica da surdez. Questiona-se a relação entre a música e a cultura surda nesses livros. Conclui-se que há pouco reconhecimento da Cultura Surda nas histórias infantis e a presença de um ponto de vista dos ouvintes para criar histórias infantis com personagens surdos.

Introdução

No campo dos Estudos Surdos, têm sido analisados vários artefatos culturais que apresentam representações de surdos, da cultura ouvinte e da cultura surda, como livros de literatura infantil, filmes, matérias de jornal, comunidades do Orkut, etc. Considera-se que esses artefatos trazem pedagogias culturais, pois eles ensinam sobre os surdos, sobre suas identidades, sobre sua língua, sua cultura, mesmo quando apresentam histórias inventadas, ficcionais.

Dentro desse quadro, o objetivo do presente trabalho é fazer uma análise de três livros de literatura infantil publicados nos últimos anos, ainda não investigados no espaço acadêmico brasileiro. Trata-se de O canto de Bento e de A Família Sol, Lá, Si..., ambos da autora Márcia Honora,editados em São Paulo, pela editora Ciranda Cultural, no ano 2008, e O silêncio de Júlia, autores Pierre Coran e Mélanie Florian, publicado em São Paulo, pela editora FTD, no ano 2011. Para isso, buscamos base teórica nos Estudos Culturais e nos Estudos Surdos, especialmente utilizando os conceitos de pedagogias culturais, cultura surda, identidades surdas, língua de sinais, e nos inspiramos em análise de outros livros sobre surdos, realizada por Silveira (2004).

Os três livros pertencem ao gênero literatura infantil e neles vemos a forma como os personagens animais e humano surdo e deficiente auditivo são identificados e representados, destacando algumas figuras e textos onde a problemática da criança surda é mostrada. Também examinamos os espaços da sociedade e da família em relação ao filho surdo (humano ou simbolizado pelos animais) e vemos qual o papel da cultura surda nas passagens dos livros que abordam a música e o uso de prótese auditiva.

Informações iniciais

Os livros se inserem no que tem sido chamado de Literatura Infantil. Para entendê-la, devemos citar Silveira (2004, p.175), que afirma que:

A literatura infantil, como produto cultural de contornos específicos, se constituiu no mundo ocidental no momento em que o conceito de infância também se consolidou, ou seja, quando a sociedade passou a representar as crianças como seres em perspectiva, a serem formados e educados para uma posterior da vida adulta.

Na verdade, já se sabe há bastante tempo que a literatura tem poder de influenciar o público que lê, fazendo as pessoas viverem suas histórias e acreditarem nas representações que traz, em especial a literatura para crianças. Mesmo que seja difícil comprovar como os livros produzem opiniões e comportamentos, o fato é que isso acontece com frequência.

No seu estudo, Silveira analisou livros infantis com personagens surdos, publicados até 1998, e ela concluiu que alguns livros apresentavam ainda o paradigma clínico. Ela afirma (SILVEIRA, 2004, p. 202):

O discurso que representa os surdos como grupo cultural que compartilha, principalmente, uma experiência visual distinta e uma língua particular que se estrutura de forma diversa, e não como uma comunidade de deficientes, não parece ter encontrado ainda, nesse artefato cultural específico [livros de literatura infantil], muito espaço para vir à luz.

Essa situação foi mudando. Lebedeff (2005) faz um estudo mostrando como, depois de 2000, começou a haver a produção de histórias para crianças considerando a cultura surda, tanto em livros impressos quanto em vídeos. Mas, nas livrarias e nas escolas, o que predomina ainda são livros que mostram os surdos de um ponto de vista da normalização ou mostram muita ignorância da cultura surda. Conceitos como de cultura surda, identidade surda, e uma visão adequada da Língua de Sinais ainda aparecem pouco nos livros.

É dentro desse quadro que fazemos a análise dessas obras que foram publicadas bem recentemente e dois deles fazem parte de uma coleção chamada “Ciranda das Diferenças”, todas da mesma autora.

Sinopse dos livros

Apresentamos brevemente os três livros que analisamos: O canto de Bento, A Família Sol, Lá, Si..., ambos da autora Márcia Honora, e O silêncio de Júlia, dos autores Pierre Coran e Mélanie Florian.

Trazemos inicialmente o resumo do enredo do livro O canto de Bento. Sintetizando, trata-se de uma família de Bem-te-vis, em que os personagens são pássaros. O costume deles era se apresentar cantando música no quintal numa árvore. A estação da primavera era a mais importante para os filhotes de pássaros, porque, pela primeira vez, cantavam para o público, várias espécies de pássaros, como tucano, papagaio, urubu, etc. Num dia, o maestro que apresentava show de todos os filhotes da cada família, convidou seu filho, um bem-te-vi chamado Bento, para se apresentar. Mas Bento estava com medo: abriu o bico, mas não soltou nada a voz e não conseguiu cantar. O maestro consolou seu filho, explicou que o problema dele para cantar podia ser resolvido. Foi procurar ajuda e encontrou alguém – era uma borboleta que “sabia uma língua diferente da língua falada pelos bem-te-vis”. Dona Leta, borboleta, explicou para o pai maestro que Bento podia aprender a se comunicar pelas asas e assim poderia apresentar música. O maestro aceitou e deixou Bento nas aulas da Dona Leta. Um dia, após treinamento das aulas, Bento resolveu apresentar música, e se apresentou fazendo música pelas asas. Percebeu, então, que suas asas eram falantes.

O outro livro, A Família Sol, Lá, Si..., mostra personagens que são elefantes roqueiros e o costume deles era apresentar uma banda de rock, chamada Família Sol, Lá Si..., no “Circo Fanfarra”. Era comum que o Circo Fanfarra viajasse pelo país com um caminhão que fazia parte do espetáculo. O mais importante do Circo Fanfarra era a apresentação da família “Sol, Lá, si”, descrita como a “única família de elefantes roqueiros do mundo”. Um dia, fechou o circo, a família “Sol, Lá, Si” precisava trabalhar e encontrou um restaurante em que o dono estava precisando de músicos.Ele se interessou pela família “Sol, Lá, si”, que se apresentou numa noite e fez sucesso! Na família “Sol, Lá, Si”, o pai era cantor, a mãe era guitarrista e filho mais velho era baterista, mas os pais estavam esperando outro filho. Quando nasceu, foi chamado de Nando. Desde bebê acompanhava todos os ensaios em alto som e ficava dormindo. A mãe percebeu algo errado no Nando e resolveram levar o filho ao médico, para fazer alguns exames. O médico descobriu que ele tinha um problema de audição e o narrador escreve: “necessitava de aparelho.

Nando já saiu do consultório do dr. Rino com um aparelho e ouvindo bem melhor no colo de Dona Filó”. Continuou fazendo tratamento com a fonoaudióloga, Dra. Zezé, que ensinava muitas coisas a ele e assim, diz o narrador, ele “pode ter uma vida bem próxima de outros elefantes de sua idade”. Mesmo com dificuldade, ele tenta aprender a tocar o instrumento contrabaixo através do aparelho, mas não conseguia ouvir o som. A família “Sol, Lá, si” teve, então, uma idéia e deu a Nando o instrumento bumbo, que ele aprendeu a tocar rapidamente e fizeram muito sucesso. O livro termina dizendo que a família “não só tocava os instrumentos com perfeição, mas também aprendeu a conviver com uma situação difícil com muito amor”.

O livro traz a história de Júlia, uma menina surda, e mostra como, num sábado, ela estava no jardim em sua casa. Os pássaros cantavam sem parar no seu quintal, os cães latiam e existia o ruído dos aviões e outros, mas Júlia não ouvia. Ela estava esperando seu novo vizinho, chamado André, da mesma idade dela. Quando o vizinho chegou, Júlia foi até a casa vizinha, encontrou André, sorriu e gesticulou para André. Percebeu que ele ficou de mau humor, sem sucesso. A mãe da Júlia assistiu todas as cenas e conversou com a filha Júlia através dos sinais e falando ao mesmo tempo nitidamente, provavelmente para a menina entender e explicando a situação do novo vizinho.

A cada dia da semana, Júlia tenta encontrar o André para brincar com ela e para fazer uma nova amizade. Outra ocasião, Júlia trouxe um tambor africano e tocou o tambor para atrair André. Um dia, Júlia estava na janela do seu quarto, triste, lá em cima onde ela podia ver os dois jardins. André, jogando bola, fez um sinal para Júlia e ela sinalizou em resposta. Os dois se encontraram no almoço na casa do André com a família; ele estava alegre e conversou com Júlia olhando diretamente em seus olhos. Outro dia, os dois fizeram instrumentos musicais: Júlia usava tambor e André tocava violoncelo, depois os dois trocam instrumentos até poderem sentir vibrações. Assim, eles continuaram a brincar e sair juntos até a escola.

Algumas análises

Pode-se observar, nos três livros, como sempre importa mais a música ou a normalização dos surdos. Um deles, entretanto, tem uma representação melhor da cultura surda, pois mostra a valorização da sinalização, mas ainda mostra a música. Nos dois livros da autora Márcia Honora, ela enfatiza a falta de audição, e como a surdez pode complicar a vida futura das crianças, etc. Os livros não valorizam a cultura surda ou uso de Língua de Sinais. Como diferença entre eles, vemos que o livro O canto de Bento mostra uso de Língua de Sinais, mas não informa o termo Língua de Sinais; já o outro livro A Família Sol, Lá, Si..., mostra uso de prótese auditiva e o tratamento do elefantinho com a fonoaudióloga. É importante lembrar que a autora dos dois livros é a mesma e tem como profissão, conforme a capa informa, ser fonoaudióloga.

No livro mais recente, O Silêncio da Júlia, do escritor belga Pierre Coran e ilustradora francesa Mélanie Florian, traduzido por Heloisa Prieto, geralmente encontramos uma visão positiva e percebemos que o autor tem conhecimento da comunidade surda e também da cultura surda. Entretanto, alguns termos e s palavras podem ter significado e valor diferente entre os dois países. Na verdade, o enredo ainda mostra valorização da música.

Faremos agora algumas análises do enredo do livro O canto de Bento, principalmente mostrando como vários fatos são inverossímeis. Em relação ao outro livro da mesma autora, este livro está um pouco mais próximo das representações atuais das comunidades de surdos.

Primeiro aspecto que observamos foi na parte em que o pai do Bento descobriu que havia profissional que sabia usar “língua diferente da língua falada”. Nenhuma página traz a expressão Língua de Sinais, nem informa que pássaro era surdo, como se evitasse usar a palavra “surdo”.

Outra página explica que existe o canto dos sinais para “pássaros que não conseguem cantar’. Os personagens surdos são apresentados pela falta, por “não conseguir”. Também a referência só a “sinais” parece falar apenas de sinais, que, sem contexto e soltos, não são comunicação natural.

Na última página, Bento cantou música, usando asas para um público que desconhece Língua de Sinais e o público já aplaude, como se vê na ilustração. Será que público teria entendido o canto dele? Ou ficou com pena e queria elogiar o esforço dele para cantar? De novo, o narrador afirma: “sua voz estava calada, mas suas asinhas eram falantes”, mostrando o “defeito” de Bento.

Agora analisamos o outro livro que escolhemos: A Família Sol, Lá, Si... A primeira coisa que percebemos no texto é o narrador afirmando: “... necessitava de aparelho”, há a expressão “pássaros que não conseguiam cantar”, assim como a referência de que Nando fazia o tratamento com fonoaudióloga, numa solução mais próxima da visão clinica. O narrador fala da “Fonoaudióloga que ensinava muitas coisas...” Podemos ler esta frase e identificarmos claramente a visão oralizada, que exclui língua de sinais, sem ter conhecimento do que significa ser surdo. Na mesma página, tem explicação de que, assim, o “Nando pode ter uma vida bem próxima de outros elefantes na sua idade”, significando que o surdo é inferior, ou seja, incapaz. O surdo só pode ficar “próximo”, “perto” do ouvinte.

Outra página mostra que o Nando toca instrumento bumbo; isto não é natural para surdo tocar com perfeição, já que apenas acompanha a batida, repetindo sem entender o ritmo. Também a última frase do livro afirma que a família “aprendeu a conviver com uma situação difícil com muito amor”, parecendo mostrar o quanto ser surdo é uma situação difícil de viver e merece piedade, só sendo resolvida com o sentimento de “amor”.

Observamos os animais, também nas ilustrações, que são protagonistas dos dois livros; no primeiro, O canto de Bento, foi escolhido o pássaro bem-te-vi. Pensamos na possibilidade de se escolher outro animal com olhos maiores, já que na cultura surda, sabe-se que os surdos têm ótimo visual e trabalham muito mais a dimensão visual. O bem-te-vi é conhecido justamente por seu canto, o que não o aproxima do sujeito surdo.

Já o segundo livro, A Família Sol, Lá, Si..., escolheu o animal elefante; dentro de uma visão clínica, os surdos têm problema de audição que é simbolizado pelas orelhas. E o elefante parece ter sido escolhido por ter grandes orelhas (e a prótese auditiva ficar mais clara na gravura).

Por último, analisamos o livro “O silêncio da Júlia”. Já no início da história, Júlia sempre tenta se comunicar através dos sinais e alguns gestos, à distância, com André, tentando estabelecer uma comunicação. Isso mostra algo que a comunidade surda e quem vive nela valoriza: a sinalização. Uma página diz: [...] Ele conversa com Júlia olhando diretamente em seus olhos. Ele sabe que não adianta gritar: Júlia é surda. Realmente, essa parte da história mostra um entendimento da cultura surda, onde foram construídas as representações e significados da forma de ser surdo. Essa forma pode ser mostrada aos ouvintes de forma que os sujeitos ouvintes entendam o nosso significado de ser surdo. Citamos, sobre um conceito de cultura de acordo com os Estudos Culturais, os autores Padden e Humphries (2000, p. 5):

[...] uma cultura é um conjunto de comportamentos apreendidos de um grupo de pessoas que possuem sua própria língua, valores, regras de comportamento e tradições; uma comunidade é um sistema social geral, no qual um grupo de pessoas vivem juntas, compartilham metas comuns e partilham certas responsabilidades umas com as outras.

Para nós, membros das comunidades surdas, existem sujeitos ouvintes que fazem parte da comunidade surda, partilham diferenças e significados, entendem as várias identidades surdas e suas ricas representações. Nesse sentido, podemos relembrar o que afirma Karin Strobel (2008) a respeito da comunidade surda: Entendemos que a comunidade surda de fato não é só de sujeitos surdos; há também sujeitos ouvintes – membros de família, intérpretes, professores, amigos e outros – que participam e compartilham interesses comuns em uma determinada localização.

Voltando ao livro infantil que estamos analisando, vemos que todas as páginas mostram ilustrações próximas ao texto escrito em língua portuguesa; essas histórias falam sobre os sinais e valorizam os sinais, mas nem todas as ilustrações mostram sinalizações, já que apenas uma única página mostrou que Júlia sinalizava com os dois braços. Em outra página, o narrador escreve sobre Júlia: Mas ela pode ler seus lábios perfeitamente. E então Júlia responde fazendo sinais com as mãos, movendo os lábios e os olhos também.

Falar em “ler os seus lábios perfeitamente” pode representar que todos os surdos podem ler os lábios “com perfeição”. Efetivamente, os surdos nem sempre podem ler os lábios, pois muitos sons são diferentes mas essa diferença não é visível nos lábios das pessoas. Pouquíssimos são os sujeitos surdos que entendem e fazem uma eficiente leitura labial. Essa representação de leitura labial trazida no livro não é, assim, verossímil.

Em nenhuma passagem do livro há o termo Língua de Sinais, em vez de “sinais’ ou “sinalizando”, que seria uma possibilidade de mostrar a riqueza da nossa realidade linguística. Talvez possa ser falha de tradução entre a língua original do livro e o português; a referência de uma página mostra “Linguagem de Sinais”, entretanto, no original está escrito “Langue des Signes”, conforme se pode consultar no site dos autores (ver referência ao final do presente texto). No Brasil, assim como em outros países, através de estudos e pesquisas, artigos e obras de linguistas e estudiosos das áreas de estudos surdos e culturais mostram que linguagem e língua são diferentes conceitos, sendo que língua se aproxima de idioma, e a Língua de Sinais é uma língua estruturada e rica, própria da comunidade surda.

Nas últimas páginas do livro, uma mostra que Júlia ganha de presente um instrumento musical – tambor; outra página mostra que Júlia com tambor e André com violoncelo tocando juntos. Essas representações dão uma ênfase à questão da música para uma personagem surda como Júlia e cabe perguntar por que seriam tão importantes as músicas, que não fazem parte da comunidade surda? A respeito dessa relação entre surdos e atividades musicais, podemos citar Sá, (2012, p. 244):

É muito importante que sejam questionados os objetivos pedagógicos a serem perseguidos com as atividades musicais para surdos: o que se pretende é oferecer aos surdos o direito de conhecer este elemento cultural humano tão importante, ou, o que se pretende é obrigar os surdos a participaram de algo que não faz sentido para eles? Estamos tratando de uma oferta ou de uma obrigatoriedade? De uma troca ou de um pacote depositado?

O questionamento de Sá é muito atual e importante. Atualmente a Comunidade Surda e vários artigos que falam sobre Educação de Surdos informam que não se trabalha mais o símbolo “orelha” cortada por uma tarja, como era costume, mas se dá preferência à simbolização em que os surdos usem a dimensão gestual-visual. Entretanto, o esforço em aproximar os surdos da música parece mostrar ainda a importância da “orelha” e da audição.

Podemos refletir sobre as palavras de Sá, (2012, p. 245):

É necessário, então, entender que ser surdo é muito mais que não ouvir, que não falar, que não cantar, que não tocar instrumento: essa perspectiva da “negatividade” embaça a perspectiva da potencialidade. Ser surdo é experimentar uma forma diferenciada de ser, a qual se baseia primordialmente nas experiências visuais para a leitura do mundo. Em verdade, surdez é muito mais que privação sensorial, muito mais que a experiência de uma falta.

De certa forma, esses livros nos lembram o filme “Mr. Holland, adorável professor”, ano 1995, EUA, cujo enredo mostra que um professor de música descobre que seu filho é surdo. Mas o desenvolvimento da história é diferente. O professor aprendeu Língua de Sinais, tentando fazer seu filho escutar sua música em Língua de Sinais.

Observem a citação da Strobel (2008, p. 70) sobre a relação entre a música e os surdos:

A música, por exemplo, não faz parte de cultura surda, os sujeitos surdos podem e têm o direito de conhecê-la como informação e como relação intercultural. São raros os sujeitos surdos que entendem e gostam de música e isto também deve ser respeitado. Respeitando a cultura surda, substituindo as músicas ouvintizadas, surgem artistas surdos em diferentes contextos como: músicas-sem-som, dançarinos, atores, poetas, pintores, mágicos, escultores, contadores de histórias e outros.

Comentários finais

Podemos fazer uma comparação final entre os livros infantis que foram criados sobre os surdos, usando ou não personagens animais. Devemos relembrar que os livros contêm pedagogias culturais, ensinam aos ouvintes e aos surdos o que é ser surdo, quais são suas capacidades e habilidades. Além disso, esses livros têm sido muito procurados pelas escolas que querem literatura infantil sobre “diferenças”, para atender às recomendações pedagógicas de trabalho com a diversidade.

Em especial, os livros de literatura infantil sobre surdos poderiam propor um modelo para que surdos vejam que existem pessoas como eles e que existe uma cultura surda e uma identidade surda. Embora O canto de Bento e O silêncio de Júlia deem mais espaço para a Língua de Sinais do que Família Sol, Lá, Si..., em que a valorização é toda do oralismo, o primeiro ainda fica valorizando as questões relativas a notas musicais (nas figuras), a cantar, a som, etc., e apresentando, como analisamos, várias cenas inverossímeis. No final, no desfecho, nos três livros, os personagens surdos conseguem se incluir, de alguma forma, no mundo da música, e podemos nos perguntar qual é o alcance pedagógico desses livros ao mostrarem música. Afinal, a cultura surda abrange Língua de Sinais, Poesia e muitas outras manifestações, que são valorizadas no cotidiano dos surdos, mas não a questão do som, que faz parte da cultura dos ouvintes.

Lebedeff (2005, p. 179) nos relembra a adaptação que um professor surdo fez do Conto de Fadas Chapeuzinho Vermelho, em que todos os personagens são surdos.

Ao ser questionado sobre o porquê de tal adaptação, o professor iniciou uma explicação muito interessante. Ele defendia o fato de que nunca os personagens das histórias eram surdos; assim, aos alunos surdos eram oferecidas apenas histórias que refletiam a cultura e os modos de se comportar e agir dos ouvintes. Os ouvintes gritam, falam, ouvem, entretanto como agiriam os personagens se fossem surdos? Ou melhor, com quais personagens as crianças surdas se identificariam se eles sempre falassem e ouvissem? Dessa forma, o professor sempre contava as histórias com algumas adaptações, algum personagem sempre era surdo e, desse modo, passava importantes elementos da cultura surda para seus alunos.

Aproveitando o que a autora explicou sobre importância da cultura surda nos livros para crianças surdas, podemos nos perguntar como livros que valorizam música podem influenciar na identidade dos surdos e na representação dos surdos pelos ouvintes. Note-se que os três livros, no final, são semelhantes, com os três personagens surdos participando de uma apresentação de “música”, como se esta fosse a melhor cena ou espetáculo, como se fosse a experiência que faz as pessoas ficarem emocionadas.

Será que esses livros não estão colocando como ideal de sucesso das pessoas surdas a participação no mundo musical dos ouvintes?

Bibliografia

LEBEDEFF, Tatiana Bolívar. Reflexões sobre adaptações culturais em histórias infantis produzidas para a comunidade surda. In: Graciela Ormezzano; Márcia Helena S. Barbosa. (Org.). Questões de Intertextualidade. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo, 2005.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Contando histórias sobre surdos(as) e surdez. In: Marisa Vorraber Costa. (Org.). Estudos culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema.... 2a ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

PADDEN, Carol; HUMPHRIES, Tom. Deaf in américa: voices from a culture. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

SÁ, Nídia de. Aulas de músicas em classes de/com surdos?. In: Nídia Regina L. de Sá (Org.) Surdos: qual escola?. Manaus: Editora Valer e Edua, 2011.

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.

Site

http://www.alice-editions.be/catalogue.php?secteur_id=2&action=210&livre_id=415&PHPSESSID=8585818373f383f40d118dfa6a80e61e#top Acesso em 30 de abril de 2012.

Livros analisados

CORAN, Pierre; FLORIAN, Mélanie. O silêncio de Júlia. São Paulo: editora FTD, 2011.

HONORA, Márcia. O canto de Bento. 1. ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008.

HONORA, Márcia. A família Sol, Lá, Si.... 1. ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008.

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