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Surdez: Desafios para o Próximo Milénio
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Publicado em 2000
Anais do Seminário Surdez, desafios para o próximo Milênio – V Seminário Nacional do INES, p. 71-74
Mônica Pereira dos Santos
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Resumo

O presente trabalho objetiva se constituir em um ensaio a respeito das contradições com que o discurso pela igualdade se reflete nos textos e nas práticas sociais, com ênfase particular à questão da surdez. Pretende, ainda, analisar o porque da escolha, por vezes paradoxal, de opções que vão de encontro ao ideário democrático, contradizendo-o ainda mais.

Introdução

O presente trabalho objetiva se constituir em um ensaio a respeito das contradições com que o discurso pela igualdade se reflete nos textos e nas práticas sociais, com ênfase particular à questão da surdez. Pretende, ainda, analisar o porque da escolha, por vezes paradoxal, de opções que vão de encontro ao ideário democrático, contradizendo-o ainda mais.

Iniciarei levantando alguns aspectos que se constituem em argumentos potentes à defesa da separação entre instituições regulares e especiais de ensino. Tentarei ilustrar tais argumentos com alguns exemplos familiares a educadores.

Em seguida, procurarei demonstrar que a questão escola regular versus escola especial constitui apenas a superfície de um movimento que ultrapassa a dimensão organizacional, e que toca a dimensão das atitudes, cujas expressões têm efeitos essencialmente políticos 2.

Terminarei o trabalho defendendo a necessidade de uma aliança entre as comunidades de surdos e ouvintes na luta por um mundo mais justo, em que as oportunidades de convivência e participação se façam presentes a todos, e sem detrimento do respeito às características peculiares de cada grupo e de cada indivíduo dentro dos grupos.

Contradições & Paradoxos

As últimas décadas têm sido caracterizadas por um discurso oficial inegavelmente favorável a um ideário igualitário e democrático, ao mesmo tempo em que sua reflexão na prática nem sempre tem correspondido ao que é veiculado nos documentos que expressam tal discurso.

No campo da educação, pode-se dizer que uma série de Diretrizes, Leis e Orientações, tanto nacionais quanto internacionais, exemplificam esse discurso. A título de exemplo entre os mais conhecidos internacionalmente, podemos destacar a Declaração Mundial sobre Educação para Todos: necessidades básicas de aprendizagem (Jomtiem, 1990) e a Declaração de Salamanca (1994). No contexto nacional, podemos destacar a nossa própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). No entanto, as ações que os mesmos inspiram não são, muitas vezes, visíveis em nosso cotidiano escolar.

A título de ilustração, podemos ressaltar o fato de que os textos dos três documentos supracitados implicam na necessidade de se eliminar atitudes discriminatórias das culturas das escolas. Mas o que ainda se vê com muita freqüência são profissionais da educação desligados desse cuidado e tendo, como resultado, inúmeras situações de atrito ou negação – velados ou explícitos – por parte daqueles a quem educam.
Um exemplo típico está no uso tradicional e rotineiro que fazemos de folhas mimeografadas e o marasmo, também rotineiro, que costumamos ver nos olhos e/ou gestos de nossos alunos quando as recebem. Outro exemplo se encontra nos comentários usuais que muitos educadores fazem quando o/a aluno/a pergunta, pela “enésima” vez, sobre alguma coisa que acabamos de explicar: “Mas fulano/a, eu ACABEI de explicar isso! Você não entendeu porque estava aí conversando, fazendo bagunça, ou no mundo da Lua! Agora “se vira”, porque eu não vou explicar mais nada!”.

Os exemplos acima são inesgotáveis. O que têm em comum é o fato de que o educador acaba perdendo uma grande oportunidade de reavaliar sua prática: será que o/a aluno/a faz “de propósito”? Teriam eles o mero prazer de nos ver zangados? Ou estariam eles querendo dizer algo que não queremos ver? Mas mesmo que nos quisessem ver zangados, será que não deveríamos nos perguntar o porquê? Será que o/a aluno/a já entra na escola com essa “zanga” e quer, em contrapartida que nos zanguemos também?

Estas situações constituem argumentos fortes o suficiente para nos convencermos do quanto a escola exclui, e para não acreditarmos numa possível inversão dessa exclusão – já que tem sido assim há muito tempo. Foi com base em argumentos como esses (e na crença de que a “educabilidade” dos mesmos seria algo limitado) que se constituiu, no caso dos deficientes, todo um sistema paralelo de ensino, através de escolas, classes e outros ambientes “especiais”, em muitos países. A premissa básica era a de que a escola regular não possuía o conhecimento básico e técnico necessário ao ensino de pessoas cujas capacidades de aprender estivessem limitadas, já que mal conseguia atender àqueles que supostamente seriam “normais”.

Desta maneira, já que eram, indiretamente, excluídos de um bom trabalho educativo, paradoxalmente passou-se a aceitar a idéia de que seria melhor que se constituíssem ambientes educacionais específicos (mais equipados tecnicamente, mais protegidos socialmente...) para se trabalhar com essas pessoas. Tais ambientes atenderiam às suas necessidades específicas, respeitariam suas características peculiares, sem, contudo, deixar de atentar para um trabalho educacional de qualidade.

No caso de indivíduos surdos, outros argumentos, além dos apontados acima, têm influenciado a defesa de um ambiente educacional “especializado” como única ou principal alternativa à sua educação. Um deles calca-se na idéia (fundamentada em estudos multiculturalistas) de que os surdos, entre outros aspectos, por terem como língua materna a língua de sinais, possuem uma cultura própria. Assim sendo, e entre outros argumentos levantados, tal como há escolas para pessoas cuja cultura e língua de origem sejam de outra nacionalidade, deveria havê-las, também, para surdos, na medida em que a escola regular se propõe a atender a grupos homogêneos, não dando conta, assim, de sua tarefa de educar essas pessoas sem ferir seus aspectos culturais.

Do ponto de vista de que todos devem ter oportunidades justas, inclusive a de ter um ambiente educacional que melhor atenda aos variados interesses, tal argumento é irrefutável. Por outro lado, essa postura marca e justifica a segregação – ainda que por motivos concretos e aparentemente justos – o que se constitui num paradoxo. Afinal, estamos numa época em que a união, e não a separação, são preconizados... O que fazer, então?

Contradições e Paradoxos: Indo Além

Sabemos que um ambiente especializado não favorece a troca nem corresponde ao mundo real, cheio de diferenças e dificuldades. Além disso, sabemos que a exclusão à qual nos referimos anteriormente não constitui “privilégio” de poucos, nem tampouco está associada apenas ao fato de uma escola ser “regular” ou “especial”.

A exclusão constitui um fenômeno social, especialmente presente em nossos dias, na maioria das relações sociais e, portanto, passível de acontecer em qualquer instituição e/ou organização social, inclusive a escola, seja ela qual for. Não constitui surpresa ouvirmos falar de guetos e gangues que se instalam nas escolas (regulares e especiais), e que levam à separação de sub-grupos de alunos dentro da instituição, por vezes acompanhado, mesmo, de práticas violentas.

Da mesma maneira, sabemos que há professores, senão escolas como um todo, que trabalham na tentativa de não praticar a exclusão, ou mesmo de praticar a não-exclusão 3, esforçando-se para que a escola atenda, de fato, a todo o alunado, da forma mais justa e respeitosa possível. Como também há escolas especiais que têm procurado reformular seu papel à luz das orientações (nacionais e internacionais) recentes, transformando-se em centros poderosos de recurso e atualização e/ou capacitação profissional, e produtores de conhecimento.

E seria esse mesmo, o caminho a seguir. Não cabe mais limitarmos a luta pela inclusão a uma questão de colocação da pessoa com deficiência nesta escola ou em outra. A inclusão nunca se referiu apenas a “aonde ser colocado”, mas sim a “como mudar o mundo”. Neste sentido, ela é muito mais ampla do que a dimensão educacional, que constitui apenas uma de suas facetas. Até porque, partindo da idéia de que inclusão é um processo, não existe uma escola inclusiva, mas sempre escolas em luta pela inclusão.

Booth & Ainscow (1998, p. 194) colocam isso muito claramente:

Algumas pessoas falam como se pudéssemos identificar escolas que sejam ou não sejam “inclusivas” (...) Uma escola inclusiva pode ser considerada como aquela que inclui, que valoriza igualmente todos os alunos das comunidades locais ou da vizinhança, e que desenvolve abordagens de ensino e aprendizagem que minimizam agrupamentos com base no rendimento ou nas deficiências (...) Tal escola inclusiva é um ideal alusivo, que só existiria quando nenhuma diferença fosse desvalorizada na sociedade.

Em outras palavras, não existem modelos prévios que servirão, com certeza, a muitos. É preciso entender que a inclusão se refere à luta contra a desigualdade e as diferentes formas de exclusão. Uma instituição especializada de ensino (ou de qualquer outro serviço) é, em princípio, excludente porque não permite a convivência. Mas a inclusão vai além deste aspecto físico. Ela toca o político.

E aqui - cabe dizer - se as chances de uma participação social crítica, que nos faça, mais do que saber que as diferenças existem, vivê-las, já são pequenas numa escola comum, imaginemos numa escola especial. É preciso ao ouvinte ter a referência da convivência com o surdo para que ele entenda a dificuldade e se alie a eles. Da mesma maneira, é preciso ao surdo conviver com os ouvintes, nem que seja para constatar incapacidade destes de descentrar de seu mundo ouvinte. Mas aí, caberia ao surdo fazer, como melhor ninguém faria, um trabalho político, de sensibilização deste mundo ouvinte. O que não poderia ser feito se o surdo estivesse preso às suas instituições especializadas...

Permito-me encerrar com a seguinte consideração: acusa-se a escola regular de querer homogeneizar o alunado, esperando que todos sejam – ou se comportem – iguais. Cabe pensarmos o que é mais homogêneo? Meninos e meninas, negros e brancos, católicos e judeus, altos e baixos, gordos e magros, deficientes e não deficientes, de uma turma de segunda série da escola, ou uma turma de meninos e meninas, negros e brancos, católicos e judeus, altos e baixos, gordos e magros e surdos numa escola para surdos?

Notas

2 O termo “político” é aqui utilizado no sentido cotidiano da palavra, e não em seu sentido partidário. Toda prática social, toda forma de existência é inerentemente política ao nosso ver, mesmo quando nos omitimos.
3 Pensamos que “praticar a não-exclusão” é significativamente diferente de “não praticar a exclusão”. A primeira contém um componente intencional e político mais presente. Pretende-se, deliberadamente, lutar contra todas as manifestações de exclusão numa dada situação. A segunda reconhece a existência de práticas de exclusão, mas as ações limitam-se a evitá-las, sem necessariamente investigá-las a fundo, confrontá-las e contra propô-las.

Bibliografia

BOOTH, T. & AINSCOW, M. (1998) From Them to Us: an International Study of Inclusion in Education. London, Routledge.

UNESCO/Ministry of Education and Science of Spain (1994) Final Report – World Conference on Special Needs Education: Access and Quality. Salamanca, Spain, 7-10 de junho de 1994.

UNESCO (1990) Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Necessidades Básicas de Aprendizagem. Jomtiem, Tailândia.

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