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A Atuação e Percepção de Intérpretes de Libras sobre o Ensino de Ciências para Surdos
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Publicado em 2014
In: VI Congresso Brasileiro de Educação Especial, São Carlos, São Paulo. Anais do VI Congresso Brasileiro de Educação Especial, v. 1
Mariana Araguaia de Castro Sá Lima
Cléver Gomes Cardoso
Clodoaldo Valverde
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Resumo

A Constituição Federal do Brasil (1988) estatui que a educação é um direito de todos e que o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino, deve ser garantido, em um processo conhecido como inclusão. Há vários avanços neste cenário, sendo os principais o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio oficial de comunicação dos surdos e sua obrigatoriedade como disciplina nos cursos de licenciatura. Entretanto, ainda há entraves para a plena inclusão do aluno surdo no ambiente escolar. No ensino de Ciências, alguns destes estão relacionados à adoção de currículos anuais muito extensos, o uso de termos abstratos e específicos, raramente contemplados em dicionários de Libras, além de pouco planejamento pedagógico e desinteresse dos gestores para promover ações de inclusão. O presente trabalho objetivou investigar os aspectos da realidade inclusiva e do ensino de Ciências voltado aos estudantes surdos, na visão de intérpretes de Libras que trabalham nas escolas municipais de Senador Canedo (Goiás). Para tal, estes profissionais responderam um questionário acerca de sua formação, atribuições, observações e desafios encontrados no ambiente de trabalho. Os resultados apontam que a inclusão não tem ocorrido em concordância com as leis sobre o tema, e que é notória uma melhor comunicação entre os educadores que atuam direta ou indiretamente com estes estudantes.

Introdução

É considerada deficiente a pessoa que possui impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais de longo prazo, dificultando ou inviabilizando sua participação plena e efetiva na sociedade[6]. Dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontam que mais de 25% dos brasileiros são portadores de algum tipo de deficiência[14].

No Brasil, 5% de seus habitantes possui deficiência auditiva[16]. O Decreto n° 5.626/2005[5] a define como a perda de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz[19].

Surdo é aquele cuja audição não é funcional na vida comum, nem mesmo com a ajuda de amplificadores. O Decreto n° 5.626/2005[5], em seu artigo dois, acrescenta que este indivíduo, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura, principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais, Libras[3,11,15,18].

A Libras é uma língua caracterizada por movimentos gestuais e expressões faciais que são percebidos pela visão, tendo também estruturas gramaticais que lhe são peculiares. Reconhecida pela linguística, ela é autônoma, e surgiu espontaneamente da interação entre pessoas surdas, permitindo a expressão de qualquer significado decorrente da necessidade comunicativa e expressiva[22].

Assim, de forma geral, os surdos não vêem sua condição como uma deficiência, percebendo-se como uma comunidade, uma minoria linguística e cultural[15]. São como estrangeiros no próprio país em que vivem, não identificando a língua nacional como natural[23].

Uma conquista desta comunidade, embora tardia, foi o reconhecimento da Libras como meio legal de comunicação e expressão, e língua oficial dos surdos, determinados pela Lei n° 10.436/2002[4]. Esta, juntamente com o Decreto n° 5.626/2005[5], que a regulamenta, afirmam que os sistemas educacionais devem garantir a inclusão da Libras como disciplina curricular nos cursos de formação de Educação Especial, Fonoaudiologia, Magistério, e em todas as licenciaturas, nas diferentes áreas do conhecimento, e como disciplina optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional[1,3,17,18,27,28].

Assim, observa-se que os surdos obtiveram significativos avanços com estas publicações, inclusive no que tange ao seu processo educativo. Isto porque, até a década de 1960, o ensino desenvolvido em muitas escolas do país adotava como filosofia a educação oralista, que visava à integração da criança surda na comunidade de ouvintes, percebendo a surdez como uma deficiência que deveria ser minimizada através do ensino e treino da língua oral, da leitura labial e supressão do uso de sinalizações manuais[1,3,15,25].

Por não dominarem a oralidade, os surdos eram excluídos e considerados incapazes de serem donos de si mesmos[26]. Assim, a ideologia oralista muito contribuiu para que fossem vistos como pessoas menos capazes.

Considerando que tais indivíduos possuem as mesmas potencialidades cognitivas dos ouvintes, o fato de não conseguirem obter os mesmos resultados destes, mostra somente que a educação centrada na oralização limita a possibilidade de aquisição de conhecimentos[16].

No Brasil, temos uma política pública nacional em prol da inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais em classes comuns. Esta parte da ideia de que é necessário que as pessoas com deficiência não sejam excluídas sob a justificativa de terem esta condição, e que possam ter acesso ao ensino fundamental de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem[6].

O pensamento inclusivo considera que todos são capazes de aprender, e que os espaços heterogêneos são os mais propícios e desafiadores para a construção de conhecimentos, pois confronta a prática docente que parte do pressuposto da padronização das práticas pedagógicas, baseadas num modelo “ideal” de aluno[9].

Sobre os estudantes surdos presentes em classes comuns, os conteúdos devem ser ministrados na Língua Portuguesa e na Língua de Sinais, sendo a primeira repassada através dos serviços de tradutor/intérprete de Libras, e considerada na sua modalidade escrita; não sendo descartada a possibilidade de se ensinar Libras aos demais alunos da escola[7]. No entanto, há alguns entraves, como a falta de intérpretes, a não (ou má) alfabetização do estudante na sua língua oficial e a existência de poucos profissionais da educação com conhecimento básico da Libras e da cultura surda[3,5,15,28].

Especificamente sobre o ensino de Ciências (Biologia, Física e Química), há o fato de que esta utiliza conceitos simbólicos e abstratos na tentativa de explicar a natureza[19]. Isso dificulta a compreensão dos surdos, porque os estudantes em questão geralmente apresentam dificuldades naquilo que não se é visualizado, não raras as vezes entendendo um conceito de forma descontextualizada. Exemplo: associar o nutriente “vitamina” à bebida feita com leite e frutas que possui a mesma denominação.

Muitos dos temas utilizados em Ciências estão relacionados a terminologias específicas, sendo seus sinais raramente representados nos dicionários, mesmo em publicações de grande aceitação pela comunidade surda, como o Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilingue, de Capovilla, Raphael e Mauricio[10]. Assim, alguns intérpretes podem omitir palavras importantes; usar sinais correspondentes à palavra utilizada, mas em um contexto diferente (exemplo: o sinal de base de unha para a função química base, ou o referente a progresso quando o assunto é a evolução biológica); ou recorrer à datilologia, que é quando se forma a palavra usando o alfabeto manual/gestual. Esta última estratégia demanda tempo, dificultando a tradução simultânea do que é exposto durante as aulas[3,20,28].

Neste contexto, foi desenvolvido o seguinte problema de pesquisa: como é a realidade do ensino e aprendizagem de estudantes surdos da rede municipal de ensino de uma cidade da região metropolitana de Goiânia, Goiás, considerando, nesta, a existência de um núcleo específico voltado à inclusão de estudantes surdos?

Objectivos do Trabalho

Objectivo Geral

Investigar a realidade da educação inclusiva na Rede Municipal de Ensino de Senador Canedo, Goiás, a partir do perfil e do ponto de vista dos intérpretes de Libras.

Objetivos específicos

  1. Caracterizar o perfil socioeconômico dos intérpretes de Libras do município.
  2. Identificar os principais desafios relacionados ao aprendizado e integração do aluno surdo na escola.
  3. Perceber como os intérpretes lidam com questões relacionadas ao Ensino de Ciências, em especial em relação às terminologias científicas.

Metodologia

Na primeira etapa do trabalho, foi feito um mapeamento das escolas da Rede Municipal de Ensino de Senador Canedo para verificar, dentre as 26 que existem na cidade, quais possuíam alunos surdos matriculados em 2013. Para tal, foi contatada a Diretoria de Educação para Diversidade, da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, que forneceu um documento contendo informações básicas acerca dos alunos surdos no município, e também emitiu um ofício às escolas, informando sobre o projeto.

Entre o primeiro e o segundo semestre do ano letivo, alguns alunos mudaram de escola ou mesmo de cidade, e outros se matricularam em instituições municipais que não foram citadas na lista. Para sanar esta questão, algumas escolas foram visitadas, e outras receberam telefonemas, verificando se havia um ou mais estudantes surdos ali. Nos casos em que estes não estavam mais presentes, os telefones dos intérpretes que atuaram em tais espaços foram solicitados.

A escolha pelos intérpretes se deu considerando que eles acompanham os estudantes surdos na maior parte do tempo em que estão na escola. Assim, têm condições de avaliarem de uma forma mais ampla como eles se portam, e são tratados, em sala de aula.

Para proteção legal e moral do pesquisador e dos pesquisados, foi solicitada leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Este documento informava que a pesquisa não possuía objetivos financeiros, e que seria garantida a privacidade de cada colaborador, pois as informações fornecidas não seriam associadas a alguém e tampouco a uma das instituições de ensino visitadas para a execução deste projeto.

Foram feitas entrevistas estruturadas com os intérpretes, a partir do preenchimento de um questionário. Didaticamente, este instrumento de pesquisa pode ser dividido em três partes: dados socioeconômicos, respondidos livremente pelo entrevistado; dez questões objetivas sobre a estrutura e procedimentos que ocorrem no ambiente escolar (para tal, o intérprete deveria marcar um número, de um a quatro, de acordo com uma escala progressiva de intensidade ou frequência – muito, bastante, um pouco, nenhum/nunca); e cinco questões discursivas, que abordavam aspectos inerentes às relações pessoais que ocorrem em sala de aula e em relação ao ensino de Ciências.

Durante o preenchimento das respostas, não houve interferência da pesquisadora. Outros dados relevantes foram obtidos a partir de entrevista feita com a coordenadora do departamento responsável pelo curso de Libras fornecido pelo município.

Resultados e Discussão

Dentre as 26 instituições da Rede Municipal de Ensino de Senador Canedo, sete continham um ou mais alunos surdos matriculados, totalizando 15 estudantes, cada um acompanhado por um intérprete. Após esta identificação, foi aplicado a estes profissionais os questionários. Participaram da pesquisa 12 intérpretes.

Para a análise das informações, foi adotado um estudo exploratório-descritivo com abordagem quali-quantitativa. Na metodologia quantitativa, os dados foram tratados por meio de porcentagens e cálculo de médias. Os dados qualitativos, das perguntas abertas, foram analisados pela técnica de análise de conteúdo de Bardin[2], onde foi feito um agrupamento das respostas de acordo com elementos e respostas com características semelhantes.

A seguir, são disponibilizados elementos visuais contendo as informações cedidas por estes profissionais.

Quadro 1. Perfil socioeconômico dos intérpretes de Libras da Rede Municipal de Ensino de Senador Canedo, Goiás.

Quadro 2. Tempo de atuação, dos entrevistados, na docência escolar.

Gráfico 1. Nível de conhecimento que os intérpretes entrevistados têm sobre a deficiência auditiva/surdez.

Gráfico 2. Frequência em que os intérpretes recebem assessoramento para o desenvolvimento de suas atividades pedagógicas.

Gráfico 3. Frequência em que os intérpretes reformulam o currículo e a metodologia para trabalharem com os alunos com deficiência auditiva/surdez.

Gráfico 4. Percepção dos intérpretes acerca da adequação das escolas para receberem alunos com deficiência auditiva/surdez.

Gráfico 5. Percepção dos intérpretes acerca do preparo dos professores da escola para receberem alunos com deficiência auditiva/surdez.

Gráfico 6. Quando o inérprete sente que sua atuação contribui para a formação de alunos com deficiência auditiva/surdez.

Gráfico 7. Percepção dos intérpretes acerca da quantidade de recursos e materiais didáticos específicos para a educação de alunos com deficiência auditiva/surdez das escolas.

Gráfico 8. Frequência em que acontecem momentos para que sejam discutidos, conjuntamente, o desenvolvimento dos alunos com deficiência auditiva/surdez.

Gráfico 9. Percepção dos intérpretes acerca da avaliação dos alunos com deficiência auditiva/surdez: eles são avaliados de forma diferenciada, em relação aos outros alunos da inclusão ?

Gráfico 10. Percepção dos intérpretes acerca da avaliação dos alunos com deficiência auditiva/surdez: eles são avaliados de forma diferenciada, em relação alunos que não são da inclusão ?

Quadro 3. Como é o relacionamento entre estudante surdo, estudante ouvinte, intérprete e professor regente.

Quadro 4. O ensino de Ciências e terminologias científicas.

O recrutamento do intérprete de Libras se dá, na maioria das vezes, por meio de contrato, no momento em que surge a necessidade da presença deste em alguma escola. Neste contexto, todos entrevistados percebem que contribuem para o processo educacional dos alunos surdos, fato este confirmado por Guarinello et al.[13], que afirmam que apesar da falta de conhecimento prévio das disciplinas e dificuldades individuais que muitos intérpretes têm, a presença destes fornece um aumento considerável da inteligibilidade do conteúdo pelo surdo.

Desde setembro de 2013, a coordenadora da Formação Continuada passou a assumir a responsabilidade de entrevistar o possível contratado, como uma forma de avaliar se este está apto ou não a assumir o ofício. Esta decisão é positiva, haja vista que é bem heterogênea a formação em Libras desta classe; e que somente a partir de 2015 é que será obrigatório o exame nacional de proficiência em tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, conforme determina o Decreto n° 5.626/2005[5].

Outra forma das escolas contarem com este profissional é por meio de concursos. No ano passado, foi publicado o edital nº 002/2013[24], em que foram fornecidas cinco vagas para intérpretes.

Lembrando que, no ano de 2013, dos 12 entrevistados, somente três eram servidores efetivos, este fato pode influenciar na qualidade do ensino dos estudantes surdos. Um maior número de intérpretes concursados diminuiria a rotatividade desses profissionais nas escolas nas quais sua presença é necessária.

Quanto à qualificação em trabalhar na educação inclusiva, percebe-se que esta é significativa, visto que metade atua na área em um período compreendido entre três e cinco anos; e os que têm menor experiência atuam há pelo menos dois anos. Com exceção de três profissionais, todos atuaram na educação básica, permitindo com que tenham uma visão mais ampla do processo educacional. Outra questão é o fato de 11 reconhecerem que possuem bom conhecimento sobre a surdez, embora a pesquisa não tenha permitido uma forma eficiente de quantificar este aspecto.

Também é importante ressaltar que a maioria dos entrevistados tem curso superior e, no entanto, são remunerados como profissionais de nível médio. Embora este nível de escolaridade seja aceito no Decreto n° 5.626/2005[5], foi bastante nítida que uma melhor formação profissional propiciou aos entrevistados argumentos mais elaborados e uma menor presença de erros na escrita.

Comparando os editais dos concursos para professor (profissional da educação I) e intérprete (assistente educacional), cumprindo a mesma carga horária, este recebe o equivalente a 72,3% da remuneração do professor. Assim, pela ausência de um plano de vencimentos e carreira compatível com a formação, pode haver pessoas bem qualificadas para atuarem juntamente ao aluno surdo, mas que optam pela regência educacional devido às melhores perspectivas que a ocupação oferece. Assim, esperar melhor atuação e formação do intérprete exigiria também melhores condições salariais e de trabalho.

A Diretoria de Formação Continuada afirmou que é esperado que os intérpretes de Libras das escolas repassem, fielmente, os conteúdos ministrados pelos professores. Também é esperado que eles considerem seus direitos e deveres, como o direito de serem auxiliados pelos professores, e o dever de agirem com postura ética[21].

Algumas destas atribuições são reforçadas no edital do concurso[24], que afirma que este profissional “interpreta o conteúdo curricular desenvolvido em sala de aula, sem intervenção direta no processo de ensino-aprendizagem”. O Artigo seis, item dois, da Lei nº 12.319/2010[8], acrescenta que sua função é interpretar, em Libras - Português, as atividades didático-pedagógicas e culturais desenvolvidas nas instituições de ensino, viabilizando o acesso aos conteúdos curriculares”.

As informações pontuadas acima revelam uma contradição e também falta de clareza no que tange à atuação do intérprete. Primeiramente porque, cumprindo somente o que foi citado, e considerando como as escolas estão estruturadas, não será garantida a inclusão dos estudantes surdos. Por outro lado, apesar de não ser determinado, a maioria desses educadores reformula os currículos. Sobre isso, Sousa e Silveira[28] afirmam que, em muitos casos, diante da dificuldade em lidar com o aluno surdo, o professor entrega para os intérpretes a responsabilidade de repassar os conceitos e, ainda, acompanhar a aprendizagem do estudante.

Assim, é grande a necessidade de que o intérprete tenha um acompanhamento especializado em suas atividades, fato este confirmado pelo fato de que dez afirmam que recebem pouco ou nenhum apoio pedagógico. Os momentos de planejamento geralmente são realizados com o professor de recursos da instituição de ensino que atuam, responsável pelo AEE. Entretanto, não são todas as escolas que são contempladas com este serviço. Além disso, alguns destes professores não têm conhecimentos relevantes acerca da surdez e da Libras, tal como a coordenadora também frisou.

Afirmar que planejamentos junto aos professores regentes raramente acontecem, ou não ocorrem, indica que estes momentos não fazem parte das diretrizes internas das escolas já que se fizessem, todas se incumbiriam de realizar. Em pesquisa realizada em Curitiba (PR), Guarinello[13] registrou diferenças:

[...] outro papel exercido pelo intérprete que atua em sala de aula é participar do planejamento das aulas e integração junto com o professor, para que o conteúdo seja ministrado da melhor forma possível para os surdos. Pg. 4.

Caso cumpridos no município, os papéis frisados pela autora poderiam propiciar uma melhor convivência entre os envolvidos, e um melhor trabalho em equipe. A frase “não há muita participação dos professores, muitos ignoram este aluno, poucos se importam se ele está ou não aprendendo” pode refletir uma dificuldade do professor em lidar com o aluno surdo, que poderia ser sanada se houvesse momentos que propiciassem o diálogo. “Olhar para o surdo quando estiver falando, e não para o intérprete; evitar atividades como ditar para os alunos copiarem, e não fazerem ruídos estridentes tais como arrastar cadeiras e mesas, pois isso afeta os surdos, etc” foram procedimentos citados por outro intérprete, e que talvez muitos professores desconheçam.

As afirmações acima reforçam um dos resultados da pesquisa: com apenas uma exceção, os intérpretes entrevistados acreditam que os professores das escolas que trabalham não estão preparados para atender os alunos surdos. Este resultado condiz com o que foi retratado por Sousa e Silveira[28], Almeida e Teixeira Junior[1] e Bonavigo e Santos[3]. Infelizmente, o pouco conhecimento da língua e cultura dos surdos dificulta relacionar os conteúdos à vivência dos alunos, interferindo no seu interesse pela disciplina, ou pela escola[28].

Este problema poderia ser minimizado se fossem ofertadas, nas licenciaturas, uma ou mais disciplinas que contemplassem os aspectos da inclusão, em especial a Libras[16]. Entretanto, ao analisar a grade curricular dos cursos de Ciências Biológicas desta habilitação das três maiores instituições de ensino superior do Estado (Universidade Federal de Goiás, Universidade Estadual de Goiás e Pontifícia Universidade Católica de Goiás), é observado que tais aspectos não são ainda contemplados em uma delas (Universidade Federal de Goiás), contrariando, dentre outros, o Decreto n° 5.626/2005[5]. Neste cenário, o desenvolvimento de projetos que visassem às demandas especiais dos surdos nas disciplinas científicas, conforme sugerido por Sousa e Silveira[28], dependeria da decisão pessoal dos docentes universitários.

O fato do município fornecer um curso de Libras, gratuito, com turmas em dois períodos, é uma forma de oportunizar uma melhor adequação dos professores às necessidades especiais dos alunos surdos. Todavia, a participação efetiva depende de fatores como disponibilidade de tempo e dedicação aos estudos. Visto que, raramente, um professor trabalha somente em um período, possivelmente este é um motivo que interfere na alta taxa de desistência deste profissional ao longo dos módulos.

Os planejamentos em conjunto facilitariam também para os intérpretes no que tange ao ensino de Ciências. Mais da metade considera esta disciplina difícil de ser interpretada, já que “quanto maior o grau de abstração, maior a dificuldade de apreensão e entendimento pelos surdos”[28]. Vídeos, esquemas, fotos, moldes, espécimes in vivo e conservados, microscópios, desenhos, atividades lúdicas, experimentos, redução de conectivos na escrita, situações de redundância (cujo objetivo é aumentar a probabilidade de sucesso da comunicação pretendida) e comunicação através da Libras, bastante pontuados na literatura[11,15,22], também foram considerados pelos participantes da pesquisa como facilitadores da aprendizagem nesta disciplina.

Considerando o processo de identificação de terminologias muito específicas, seria necessário que o intérprete soubesse com antecedência acerca das expressões adotadas para aquela aula. Este aspecto facilitador poderia evitar a supressão de termos imprescindíveis, como alguns intérpretes afirmaram fazer. Mais importante seria a ocorrência de negociação, entre os educadores que lidam com o estudante surdo, dos sentidos conceituais, o que poderia auxiliar no repasse dos conteúdos de forma mais fidedigna[1,28].

Em relação ao uso da datilologia para representação das terminologias, Correia et. al [12] aponta que ela leva o surdo a uma situação de desvantagem no acesso à informação, por condicionar sua compreensão ao conhecimento da língua oral e, caso não tenha conhecimentos nas duas línguas, provavelmente não terá a compreensão total do enunciado.

Assim, seria relevante que primeiro fosse feita uma busca pelo sinal e, identificado, fossem associados a ele a palavra correspondente e o significado (para que o surdo saiba entender a expressão em outros contextos). Assim, a datilologia ou criação de sinal junto ao aluno seriam recursos posteriores, minimizando os riscos desta palavra ser retratada com outro sinal, ou significado, causando confusão ao interlocutor.

Quanto à avaliação do aluno, mais da metade dos questionários informou que ela é realizada de maneira diferente da dos outros inclusos, podendo apontar para o reconhecimento dos professores de que os surdos têm capacidade de aprender satisfatoriaamente quando dadas condições propícias para o aprendizado[16]. No caso dos outros alunos especiais das escolas do município, estes são avaliados geralmente pelo professor de recursos, que acompanha mais de perto seu desenvolvimento; ou estes recebem automaticamente a média (6,0) em todas as disciplinas.

O fato de metade dos intérpretes afirmar que a avaliação dos surdos em relação aos estudantes não inclusos não é diferenciada pode apontar, mais uma vez, que o professor percebe que esse aluno tem capacidade de acompanhar os demais colegas, e de ser avaliado tal como eles. Por outro lado, afirmar que há uma diferenciação pode indicar uma atenção para as particularidades do estudante não ouvinte.

Quanto à convivência dos surdos com os demais colegas, foi interessante constatar que os intérpretes afirmam ques eles têm uma boa relação. Assim, pode-se concluir que um dos objetivos da inclusão, que é a socialização, parece que está sendo cumprido, em detrimento de uma possibilidade apontada por Souza e Silveira[28]: de que a presença dos surdos na escola pode reforçar processos excludentes.

No que tange à estrutura da escola e a presença de recursos e materiais didáticos voltados aos surdos, houve três afirmações de que a instituição está bastante adequada, e duas respostas que informam que ela está inadequada. Estes resultados podem apontar o desconhecimento do intérprete acerca do que seria seria necessário para o aluno surdo, ou a heterogeneidade estrutural das escolas. Monteiro[15] observa que falar em escolas inclusivas, por estas se proporem a acolher todos os estudantes, pressupõe-se uma estrutura física adequadamente preparada, além da disponibilidade de recursos materiais que facilitem o desenvolvimento do trabalho de sala de aula.

Conclusão

A educação inclusiva na rede de ensino pesquisada, levando-se em consideração os estudantes surdos, tem muitos desafios pela frente. Estruturar um plano de carreira, e fornecer uma maior quantidade de vagas para os intérpretes, nos concursos, influenciariam diretamente em maior qualidade dos serviços prestados por esses profissionais.

Propiciar planejamento do intérprete com equipe especializada, e dele com professores, para que suas funções sejam devidamente cumpridas, também seriam decisões importantes.

Interessante que fosse criado um manual de estratégias de atuação do intérprete de Libras e dos professores, buscando atender melhor os estudantes surdos, e também uniformizando os procedimentos direcionados a eles. A criação de um dicionário contendo as principais terminologias científicas adotadas no ensino de Ciências também seria relevante, sendo importante contar com o auxílio dos funcionários surdos do departamento de Libras para a realização deste.

Considerando as modificações que têm ocorrido no município em 2014 e, dentre elas, o fornecimento de computadores aos professores; intérpretes (e, quem sabe, os estudantes surdos) poderiam receber este equipamento como um recurso educativo, permitindo o acesso instantâneo a imagens, e também a consulta, em tempo real de sinais.

Finalmente, como a identidade surda se constrói através do convívio entre semelhantes, e sabendo que no município há um número muito pequeno de surdos; poderia ser analisada a viabilidade de matricular todos eles em uma única escola, bilíngue. Isso permitiria uma estrutura diferenciada, e maior interação entre alunos surdos e ouvintes. Não sendo possível realizar esta sugestão, toda unidade escolar, pelo menos aquelas com alunos surdos, deveria possuir estrutura e um acervo de recursos básicos para o atendimento a estes estudantes.

Considerando que o estudo se pautou, principalmente, em opiniões pessoais, é relevante que, em um segundo momento, seja contemplada a observação de algumas aulas nas quais estivessem presentes um ou mais alunos surdos, intérprete e professor de Ciências; identificando contradições entre o discurso e a prática profissional. Também é importante que os professores desta disciplina, que lidam ou lidaram com estudantes surdos, também participem da pesquisa, para que aspectos mais pormenorizados relativos ao Ensino de Ciências sejam conhecidos.

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[24] SENADOR CANEDO. Edital nº 2 (2013). Edital nº 2, de 11 de Novembro de 2013. Senador Canedo, 2013. Disponível em <http://tinyurl.com/lkwr56r>. Acesso em janeiro, 2014.

[25] SILVA, A. C. Karytu: Um Software para o Letramento da Criança Surda sob a Ótica Bilingue. Disponível em <http://tinyurl.com/lwgt2h7>. Acesso em novembro, 2013.

[26] SILVA, M. S. E. Um Olhar Sobre a Identidade Surda. Disponível em <http://tinyurl.com/mom92ha>. Acesso em janeiro, 2014.

[27] SOARES, Carlos Henrique Ramos. Inclusão, surdez e ensino médio: perspectivas e possibilidades para o atendimento educacional especializado. Disponível em <http://tinyurl.com/koq86eq>. Acesso em maio, 2013.

[28] SOUSA, S. F.; SILVEIRA, H. E. Terminologias químicas em libras: a utilização de sinais na aprendizagem de alunos surdos. Química Nova na Escola, v.33, n.1, p.37-46, 2011.

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