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Joaquim Melro
Joaquim Melro
Professor Investigador
Educação inclusiva: Do ser ao agir e do dizer ao sentir
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Publicado em 2009
Actas do XVI Colóquio da AFIRSE. Tutoria e mediação em educação: Novos desafios à investigação educacional. Lisboa: Secção Portuguesa da AFIRSE.
Joaquim Melro
Margarida César
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Resumo

A educação inclusiva tem sido debatida em diversos documentos de política educativa, nacionais e internacionais. Assim, à Escola, se colocam novos desafios: Educar na e para a diversidade; Educar na e para a pluriculturalidade. Contudo, passar dos ideais às práticas nem sempre se tem revelado uma tarefa simples. Esta complexidade acentua-se quando a Escola tem de educar alunos em condição de Necessidades Educativas Especiais. Pertencendo a culturas minoritárias, como a cultura surda, apresentam mundivisões diferentes, nem sempre tidas em conta nas práticas educacionais. Falantes de uma língua materna minoritária (LGP) vêem-se confrontados com barreiras linguísticas próprias de quem é ensinado numa segunda língua e, por consequência, com barreiras epistemognoseológicas que pouco parecem favorecer as suas aprendizagens académicas e a sua inclusão na sociedade de que fazem parte, porque maioritariamente ouvinte. Pretendemos discutir os resultados de uma investigação em curso, numa escola secundária de Lisboa, que inclui uma comunidade de alunos adultos surdos, frequentando o ensino recorrente nocturno. Assumindo uma metodologia de estudos de caso, inserida no paradigma interpretativo, apresentaremos dois casos que nos permitem compreender até que ponto, para estes alunos, a mediação da linguagem oral e da cultura de escola se revela constrangedora do seu dizer, do seu agir e do seu sentir, porque feita numa língua que não a sua. Estes resultados levam-nos a questionar em que medida a educação, ao invés de evidenciar a riqueza das diferenças culturais, insiste em adoptar a homogeneidade generalizada e inquestionável de um determinado modelo cultural como único e referência para os demais.

Introdução

“Aquilo que é feito pelas palavras, só por elas
pode ser desfeito.” (Plantin, 1996, pp. 4-5)

A educação tem vindo a ser apontada como um dos pilares sobre os quais deve assentar a construção de sociedades ditas democráticas (Morin, 2004), constituindo a universalização do acesso de todos à Escola (expressa na máxima escola para todos), uma das expressões da necessidade de a todos garantir as condições necessárias ao exercício de uma cidadania activa e participativa. Contudo, garantir uma escola para todos não significa necessariamente garantir uma educação para todos (Ferreira, 2005) uma vez que, um pouco por todo o mundo, milhares de seres humanos continuam a não ver garantido o direito a uma educação de qualidade, isto é, uma educação que satisfaça as necessidades educativas de todos e cada um (César & Ainscow, 2006), contribuindo simultaneamente para um sucesso académico, pessoal e social (Unesco, 2007). Tal implicaria, o que nem sempre acontece, que os sistemas educativos consagrassem “mecanismos de resposta à heterogeneidade social, cultural e linguística que caracteriza a comunidade escolar da nossa sociedade” (M. E., 1998, s/p.). No que a Portugal diz respeito, os números apontam para uma realidade ainda muito marcada pela exclusão escolar, expressa em índices preocupantes de elevadas taxas de retenção e de abandono escolar (Benavente, 2001; Ministério da Educação, 2003), assim como de baixos níveis de literacia (Carneiro, 2000).

A educação inclusiva, uma educação que satisfaça as necessidades educativas de todos os alunos, valorizando as suas características individuais e/ou sociais (César & Ainscow, 2006) tem vindo a ganhar cada vez maior relevância sem que, contudo, seja ainda uma realidade em muitas das escolas, para quem a inevitabilidade da diversidade se constitui uma barreira difícil de transpor e onde a exclusão académica e social continua indelevelmente a imperar (Melro, 2003). Essa exclusão assume outra dimensão nas comunidades de alunos ditos em condição de Necessidades Educativas Especiais (NEE), para quem o acesso a uma educação de qualidade ainda continua a ser uma miragem, porque a Escola se mostra incapaz de dar respostas adequadas às suas necessidades educativas e societais (Freire & César, 2007). É exemplo disso a comunidade de alunos surdos. Falantes de uma língua pouco reconhecida pelas escolas (Língua Gestual Portuguesa - LGP) como o meio “natural” através do qual se estruturam e se relacionam consigo mesmos e com os outros (Gesueli, 2006) e, por conseguinte, o modo através do qual medeiam a sua relação com a realidade e com o conhecimento da mesma, vêem as suas aprendizagens obstruídas (Amaral & Coutinho, 2002; Fernandes, 1990), feitas num processo de mediação ilusório, incapaz de construir o seu logos (Apel, 1994; Vergnaud, 2007) - leia-se o seu gestu.

Vygotsky (1989) considera a linguagem como mediadora entre a realidade e o ser humano, constituindo-se no meio através do qual este estrutura o seu pensamento, traduz o que sente e quer, comunica com os seus semelhantes, produz e constrói significação e sentido. Assim, a nossa posição no e sobre o mundo ao qual pertencemos depende, em grande parte, do modo pelo qual o mundo é estruturado pela e através da linguagem, assumindo esta um papel essencial na formação da consciência de si e do outro (Lammers & Barbour, 2006; Vergnaud, 2007).

A Escola, enquanto mediadora pedagógica, deve assumir uma atitude facilitadora das aprendizagens e da construção de conhecimentos (César, 2007), incentivando e motivando as aprendizagens, criando um ambiente dinamizador de partilha de saberes, estabelecendo pontes entre o aprendente e a aprendizagem, fomentando o diálogo, a partilha de experiências e o debate através de práticas desafiantes para alunos e professores (Fontana, 1996; Masetto, 2000). Neste sentido, e no que aos alunos surdos diz respeito, a Escola deve “fomentar a diversidade linguística - respeitando a língua materna - em todos os níveis da educação, onde quer que seja possível, e estimular a aprendizagem do plurilinguismo desde a mais jovem idade” (Unesco, 2007, p. 6).

Contudo, passar do dever-ser ao ser nem sempre se tem revelado uma tarefa simples, nem linear: A realidade revela-nos que grande parte dos alunos surdos se vê confrontada no seu dia-a-dia escolar com barreiras linguísticas próprias de quem é ensinado numa segunda língua e, por consequência, com barreiras epistemognoseológicas que pouco parecem favorecer as suas aprendizagens académicas e a sua inclusão na sociedade de que fazem parte, porque maioritariamente ouvinte (Botelho, 1999; Giorcelli, 2004). Urge, então, que face ao reconhecimento das dificuldades que estes alunos sentem “no uso da linguagem oral e pela falta de condições que possibilitem o uso da língua gestual de forma eficiente” (M. E. 1998, s/p), a Escola assegure “um processo que, simultaneamente, dê acesso ao domínio da língua gestual portuguesa como forma de comunicação privilegiada e ao domínio do português escrito como forma de alargamento da comunicação e como instrumento de aprendizagem” (M. E. 1998, s/p).

Metodologia

O presente estudo surge na continuação do trabalho desenvolvido num projecto mais abrangente – Interacção e Conhecimento – pluridisciplinar e pluridimensional, cujo objectivo principal consistia na implementação de práticas colaborativas entre professores, investigadores, bem como entre os alunos, de modo a aproximar a teoria da prática, o investigador do objecto investigado (César, 2007; Hamido & César, in press). A problemática que aqui nos (pre)ocupa é essencialmente conhecer e compreender o modo como uma comunidade educativa, de uma escola secundária de Lisboa, vivencia a inclusão de alunos em condição de NEE, neste caso, surdos, no ensino regular nocturno. À exploração desta problemática adequa-se uma abordagem interpretativa, por sublinhar a importância dos contextos e das experiências subjectivas na construção do mundo social, focalizando a realidade de forma complexa e contextualizada (Alvesson & Skoldberg, 2000; Cohen & Manion, 1996). A investigação constitui-se como um estudo de caso intrínseco (Stake, 1995). Os participantes neste estudo são os 9 alunos surdos que frequentam o ensino recorrente nocturno nesta escola, o investigador e outros agentes educativos significativos. Iremos apresentar e discutir exemplos que iluminam como dois desses alunos, que frequentam o 11º ano de escolaridade, percepcionam e vivenciam a sua inclusão no ensino regular nocturno. Para garantirmos o anonimato dos participantes todos os nomes utilizados são fictícios.

Os instrumentos de recolha de dados utilizados neste estudo foram: as tarefas de inspiração projectiva (TIP); o questionário (Q); a observação no formato de observador participante (O); e a recolha documental (D). Através da recolha documental procurou-se obter informação relevante para a elaboração e realização das TIP e do questionário, bem como para a focalização da observação participante. As tarefas projectivas proporcionam “uma oportunidade relativamente ilimitada para o exercício e expressão das diferenças individuais” (Freeman, 1976, p. 669), assim como obter respostas diversas e flexíveis (Anzieu, 1981).

Elas provocam “respostas que não são correctas nem incorrectas, são as próprias interpretações e criações do indivíduo” (Freeman, 1976, p. 69). Neste sentido, solicitámos aos alunos que escrevessem ou desenhassem o que é para si a escola, o que se constituiu como uma TIP. Os alunos levaram cerca de 10 minutos a executar esta tarefa, embora soubessem que não havia tempo limite. A tarefa foi realizada individualmente e por escrito, sendo recolhida pelo investigador, quando terminada. Um dos objectivos desta tarefa era conhecer as representações sociais que estes estudantes construíram sobre a escola.

Dadas as características destes alunos, a aplicação da TIP e do questionário foi realizada com a presença de um intérprete de LGP, para ultrapassarmos possíveis obstáculos linguísticos e comunicacionais que pudessem por em causa uma recolha fidedigna dos dados. A realização do questionário revelou-se um processo moroso e enriquecedor. Moroso, porque os alunos levaram em média 3 a 4 horas para lhe responder. Enriquecedor porque, por um lado, nos permitiu compreender como é, ainda, complexo e perplexo, para estes alunos, responderem a um questionário numa língua que não dominam suficientemente e, por outro lado, porque revelaram o desfasamento que persiste nestes alunos entre o sentir, o ser e o dizer, quando esta tríade é mediada por uma língua que não a sua – a LGP. Gostaríamos de realçar que a realização do questionário foi, individual, faseada e sempre na presença do intérprete de LGP. Quando os alunos manifestavam cansaço, interrompíamos o processo e a ele regressávamos numa outra reunião, até à sua conclusão.

A partir da análise de conteúdo das TIP e do questionário emergiram categorias indutivas sobre as quais urge reflectir para compreendermos a problemática em estudo. Seleccionámos para esta apresentação as seguintes categorias: (1) Percepções e consciencialização da inclusão destes alunos surdos, no ensino regular nocturno; (2) Obstáculos a uma inclusão efectiva destes alunos.

Resultados

A Cláudia

Depois de frequentar o ensino diurno até ao 10º ano de escolaridade, numa escola dos arredores de Lisboa, até aos 19 anos, a Cláudia decidiu, quatro anos mais tarde, voltar à (a esta) escola para “completar o 12º ano” (Q, Cláudia). Surda profunda, assumindo-se como bilingue, a sua história escolar é marcada, como ela refere, “por muitas dificuldades” (Q, Cláudia), mas também por uma grande persistência pessoal já que, como ela relata, “eu sou surda, mas sou esperta e hei-de conseguir o que quero” (Q, Cláudia).

A Cláudia escolheu o texto para expressar as suas representações sociais da escola. Eis o que a Cláudia diz ser a escola:

Das palavras da Cláudia podemos depreender, de entre outros aspectos, que, apesar de referir não gostar de estudar, tem uma representação social positiva da escola ao afirmar que “é bom aprender” (TIP, Cláudia), ao mesmo tempo que vê na escola a possibilidade de lhe proporcionar um futuro melhor, nomeadamente, uma melhor posição profissional. A ideia de que a escola pode proporcionar um futuro profissional mais promissor é reafirmada pela Cláudia no questionário ao responder que:

É precisamente para ter um futuro profissional melhor que a Cláudia justifica o seu regresso
à escola:

Esta é também a razão principal da sua motivação e ambição para completar o ensino secundário

É esta esperança que a escola lhe poderá garantir um futuro profissional melhor que a leva a não desistir e a estar convicta que vai conseguir completar o 12º ano ao afirmar que:

A Cláudia tem uma concepção dita tradicional da escola ao enfatizar a escola como uma organização centrada em disciplinas que é preciso aprender e “compreender”, ao afimar:

A composição (curta) lexical e sintáctica presente no seu texto (discurso), parecem ser reveladoras do pouco à vontade que a Cláudia sente relativamente à língua portuguesa, na sua vertente escrita. Talvez por isso tivesse optado por escrever frases relativamente curtas e objectivas. Esta opção é assumida pela Cláudia ao perguntar se tinha de responder com “muitas palavras” (O, investigador) revelando um certo receio em - como ela diz - “errar, porque não sei muito de português e escrevo mal e o professor pode não compreender o que respondo” (O, investigador).

A este propósito, registe-se que a Cláudia apresenta algumas dificuldades em compreender o sentido de quase todas as questões, recorrendo quase sempre à ajuda do intérprete de LGP para compreender o que se pretendia. Estas dificuldades surgem ou porque a Cláudia diz não “conhecer as palavras” (O, investigador), ou porque, reconhecendo-as, não compreende o sentido das frases apresentadas. É o caso das afirmações “regime presencial” e “regime não presencial” (Q), que diz não saber o que são aquelas palavras e, consequentemente, o que se pretende com elas.

Apesar de numa primeira fase evitar recorrer com muita frequência à ajuda da intérprete para elaborar as suas respostas, poderemos considerar que entre o que a Cláudia diz no texto escrito em língua portuguesa e o seu discurso em LGP sobre estas mesmas questões há diferenças significativas. Veja-se a título de exemplo a sua resposta dada à afirmação

Pela resposta dada, parece que a Cláudia não gosta da escola porque tem um certo receio em conhecer novas pessoas e que se sente pouco à vontade perante o “outro diferente” (Q, Cláudia). Estranhando esta resposta, uma vez que a Cláudia nos pareceu ser bastante sociável, o investigador, com a ajuda do intérprete de LGP, perguntou-lhe se, de facto, ela não gostava de conhecer novas pessoas na escola, ao que ela respondeu: “adoro conviver e conhecer outras pessoas” (O, investigador). Esse era um dos aspectos que mais gostava na escola, ao relatar: “gosto muito de conhecer pessoas diferentes, e esta escola tem pessoas muito diferentes, com estilos diferentes e isso é muito bom” (O, investigador).

Este episódio é revelador dos constrangimentos que estes alunos sentem e vivenciam no seu dia-a-dia escolar, já que este continua a ser marcado largamente por uma língua que não dominam suficientemente para que as suas aprendizagens sejam efectivadas e, sobretudo, para que consigam comunicar, de forma clara, com os professores. Não será por acaso ela preferir as aulas com intérprete de LGP e uma das disciplinas que menos gosta ser aquela em que, pela sua especificidade, é exigido um elevado domínio da língua portuguesa: Filosofia.

O Raul

O Raul é escriturário e sempre desejou, como refere “tirar mais estudos” (Q, Raul). Aos 39 anos, depois de um longo interregno e de, na Associação Portuguesa de Surdos (APS) – que ele frequenta com alguma regularidade, para “conviver com os amigos” (O, investigador) - o terem convencido que “esta escola era especial para surdos” (Q, Raul), decidiu voltar à (esta) escola. Como ele refere

Surdo severo, assumindo-se como bilingue, o Raul completou o 10º ano do Curso de Auxiliar Administrativo numa escola dos arredores de Lisboa e, tal como a Cláudia, também o seu passado escolar é marcado por dificuldades pois, como ele diz, “para os surdos a escola é sempre muito difícil” (Q, Raul), muita “” mas, apesar das adversidades “lá consegui fazer o 9º ano” (Q, Raul).

Também o Raul, tal como a Cláudia, elegeu o texto para exprimir o que pensa ser a escola para si e, tal como a Cláudia, tem uma representação positiva da escola:

A escola é vista pelo Raul como um locus de “conhecimento” e de aprendizagem, que proporciona a construção de um mundo melhor, dando “orientação” e outro “comportamento” fundamentais para a vida. Esta posição é reforçada nas respostas ao questionário, ao afirmar que:

Nesta sua reposta o Raul realça, por um lado, que a escola lhe possibilita o acesso de ferramentas culturais (ler e escrever) essenciais para um melhor domínio do mundo de que faz parte e, por outro, que a escola lhe proporciona a obtenção de conhecimentos possibilitadores de uma melhor inserção na vida, nomeadamente, no mundo do trabalho.

Apesar de ter referido não estar a pensar mudar de profissão diz ter escolhido

pois,

vendo, deste modo, na escola uma fonte de novas (outras) oportunidades para o seu futuro.

O Raul, tal como a Cláudia, considera-se “um aluno médio” (Q, Raul) e

Não deixa de ser significante esta preferência do Raul, uma vez que põe em relevo a necessidade de a Escola se adaptar às características destes alunos, nomeadamente a utilização de uma língua (LGP) facilitadora do processo de comunicação entre professores e alunos, que possa ser uma ferramenta mediadora adequada, contribuindo para a satisfação das suas necessidades educativas.

Esta ideia é reforçada pelo Raul ao afirmar que

Também o Raul opta por repostas curtas e objectivas. Tal deve-se ao facto de, como ele refere, “o português não é o meu forte. Até tenho vergonha de escrever assim e de responder mal. Mas, que hei-de fazer? Eu sou surdo e o meu português é diferente … é outro” (O, investigador).

E de facto, o seu português é “outro”! A composição (curta) lexical e sintáctica presente no seu texto (discurso) – tal como o da Cláudia -, parecem ser reveladoras deste “outro” português, próprio, diríamos nos, de quem escreve numa segunda língua e, sobretudo, numa língua que não consegue ouvir. Uma língua que não se ouve é uma língua onde as terminações verbais, os femininos e masculinos, plurais e singulares, diferenciação lexical de palavras com sons/escrita semelhante, se tornam muito complicados. Este “outro” português é, por isso mesmo, uma língua em que se sentem desconfortáveis, que não lhes permite expressar a riqueza do que pensam e sentem, nem do que vivenciam. Talvez, por esta razão, o Raul tenha recorrido frequentemente à ajuda do intérprete de LGP, quer para perceber o sentido das questões quer para elaborar as suas respostas. Várias vezes usou como recurso a dactilogia, porque não compreendia o significado das palavras – “conseguir”, por exemplo -, ou porque não (se) encontrava um gesto que lhe correspondesse. - “Regime”, por exemplo.

À semelhança da Cláudia, notamos diferenças significativas entre o que o Raul (não) relata no texto escrito em língua portuguesa e o seu discurso em LGP, sobre as mesmas questões. Os relatos em LGP eram mais vivos, mais ricos, mais completos e complexos. Assim, e a título de exemplo, veja-se a resposta dada à afirmação

Pela resposta dada, poderíamos concluir que o Raul não quis ou não soube justificar a sua resposta. Mas assim não aconteceu. Este espaço em branco significa que o Raul não escreveu a sua justificação porque, como ele diz, “o meu português não chega para escrever o que eu quero dizer, mas eu explico em LGP ” (O, Investigador). E a resposta foi: “Sabe, para os surdos a escola é sempre muito mais difícil do que para os ouvintes. Pensam que nós somos burros só porque somos surdos e temos sempre o dobro do esforço dos ouvintes. É sempre tudo mais difícil, sentimos mais pressão porque não ouvimos o que os professores dizem, nem eles sabem o que nós queremos. Isso eu não gosto na Escola. Acho que a Escola não nos facilita, não tem professores que falem a nossa língua. Eles esforçam-se, é verdade. Mas, é muito difícil” (O, investigador).

Estes dois exemplos iluminam, de forma nítida, como muito do que se toma por ignorância, falta de desenvolvimento cognitivo, desinteresse, falta de empenhamento e tantas outras possíveis explicações para o insucesso académico dos estudantes surdos esquecem o essencial: são (quase sempre) eles que têm de fazer o esforço de falar e ser avaliados numa língua que não dominam e à qual, pela sua surdez, não podem ter um acesso completo. Mas a língua em que eles se sentem confortáveis, em que conseguem expressar o que pensam e sentem, é a LGP. Por isso, se fossem ensinados e avaliados nessa língua teriam, provavelmente, desempenhos académicos bem diferentes. O que remete para a questão da equidade de oportunidades, do respeito pela diversidade e dos ambientes de educação formal serem mais, ou menos inclusivos.

Considerações Finais

A educação inclusiva, enquanto ideal educativo, aponta para a construção de um amanhã educacional mais promissor. No entanto, esta investigação mostra-nos que, para que esse amanhã aconteça, será necessário derrubar barreiras, permitindo ter acesso a uma educação que desenvolva as potencialidades de todos os alunos, respeitando as suas especificidades, satisfazendo as suas necessidades educativas. No que aos alunos surdos diz respeito, é necessário respeitar as suas especificidades e necessidades linguísticas, criando ambientes educacionais propícios ao seu desenvolvimento linguístico e, por consequência, educacional e pessoal. Por isso, urge ultrapassar obstáculos que dificultam o desenvolvimento das suas competências de leitura e de escrita e o seu acesso ao currículo do ensino regular. Tal significa que a Escola fomente a equidade de oportunidades e de acesso, semelhantes às dos seus pares ouvintes, evitando clivagens que se traduzem em situações de exclusão académica e social.

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