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Carlos Afonso
Carlos Afonso
Investigador
Uma escola "surda congénita" ?
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Publicado em 2005
Encontro Internacional educação Especial. Diferenciação do conceito à prática. Porto: Gailivro, pp. 61-72
Carlos Afonso
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Resumo

Esta comunicação centrou-se na problemática da educação de Surdos pretendendo discutir, em especial, as consequências, no terreno curricular, de um novo paradigma emergente, de cariz sócio-antropológico, que olha para a surdez não como uma deficiência, mas como característica definidora de uma minoria cultural e linguística. Nesse sentido, importa entender os desafios para uma Escola que, de forma geral, está pouco desperta a valorizar, positivamente, a(s) diferença(s) e que, portanto, pode assumir-se quase como “surda congénita” perante esta realidade. Visando ultrapassar esta situação serão apontadas algumas propostas no sentido das possibilidades de construção de um currículo contra-hegemónico na educação de Surdos.

1. Emergência do paradigma sócio-antropológico na educação de Surdos

Comecemos por situar este paradigma como ruptura a uma visão dominante da surdez, durante vários séculos, em que esta era concebida no contexto de um paradigma médico que salientava, essencialmente, a perda auditiva como uma deficiência, que precisava de ser reparada, do ponto de vista audiológico, através da colocação de próteses auditivas e, do ponto de vista (re)educativo, com procedimentos centrados na aquisição da linguagem oral. Pretendia-se, assim, desenvolver o Surdo de modo a que este se tornasse o mais possível semelhante ao ouvinte. Dessa maneira, rejeitava-se tudo aquilo que pudesse constituir um “desvio”, ou seja, entre outros aspectos, a Língua Gestual considerada como uma linguagem menor, rudimentar, icónica e incapaz de permitir o acesso ao pensamento simbólico e a uma construção conceptual mais elaborada.

Contudo, estudos realizados por linguistas como William Stokoe (1960) e Bellugi e Klima (1977) concluíram que nessa linguagem gestual existiam regras para a construção de palavras e frases, que obedeciam a uma gramática própria e que, para além disso, as suas características permitiam que lhe fosse atribuído o estatuto de Língua. Essa “descoberta” foi extremamente importante apesar do seu limitado impacto na época, mesmo entre a comunidade Surda que assumiu alguma hostilidade justificada, em parte, porque “os Surdos consideram a Língua de sinais uma parte imensamente íntima, indissociável de seu ser, algo de que eles dependem, e também, assustadoramente, algo que lhes pode ser tirado a qualquer momento” (Sacks, 1998: 157). Nessa medida, desconfiam de quem pretenda interferir na sua Língua. Por outro lado, pode ter representado uma “surpresa”, pois não tinham consciência de que se tratava, efectivamente, de uma Língua o que não é de estranhar atendendo a que foram, durante muitos anos, impedidos de gestualizar.

O conhecimento desta Língua e o que ela permitiu em termos da possibilidade dos Surdos se narrarem, de uma forma mais eficaz, foi conduzindo a um novo olhar sobre a sua problemática que concebe as diferenças entre Surdos e ouvintes não apenas, ou sobretudo, em função de um desvio da norma auditiva, mas como diferenças culturais.

Daqui emerge um paradigma sócio-antropológico da surdez proposto, entre outros, por Skliar (2001), que tem por base diversos movimentos sociais, liderados pela comunidade Surda, com a ajuda de vários teóricos. Concebe-se que “ser Surdo” é, actualmente, “uma construção socialmente determinada e os critérios (ou condições) para um indivíduo ser considerado como ‘Surdo’ são radicalmente diferentes para o mundo ouvinte ou Surdo” (Reagan, 1990: 74). Daqui deriva a ideia de que não é Surdo quem não ouve, mas quem quer ser Surdo, ou seja, quem se identifica com essa postura.

Do ponto de vista deste paradigma são feitas enormes críticas (algumas que aceitamos e outras não) às atitudes dos ouvintes, no passado, considerando-as como opressoras do processo de construção de uma identidade cultural da comunidade Surda obrigada a interiorizar uma imagem de deficiente. Há, inclusivamente, referência a um “colonialismo ouvinte” que visaria o assimilacionismo à cultura maioritária. Para ultrapassar esta situação, alguns autores parecem defender, mesmo, uma oposição entre mundo ouvinte e mundo dos Surdos, postura da qual discordamos.

Secundamos, porém, Skliar (2001a: 144) segundo o qual “existe um projecto Surdo da surdez” que se traduziria pelos sentimentos de identificação pessoal e grupal, enquanto Surdo, pelos casamentos endogâmicos e pela utilização comum de uma Língua. E acrescenta (idem) que “a Língua de Sinais anula a deficiência e permite que os Surdos constituam, então, uma comunidade linguística minoritária diferente e não um desvio da normalidade”.

Este novo paradigma, ao conceber uma identidade Surda, retira-a das conotações deficitárias, ou seja, aquilo que permite encontrar semelhanças entre os sujeitos não é o facto de não ouvirem, mas sim o de terem uma forma diferente de ver o mundo. Isto potencia a construção de uma afirmação positiva da diferença (“Deaf Pride”), dentro de uma cultura visual e não recorrendo à ideia de surdez como uma deficiência a eliminar. Esta ruptura epistemológica implica aceitar, tal como refere Sacks (1998: 171) que “os Surdos podem fazer tudo o que os ouvintes fazem, excepto ouvir”.

Há, contudo, que estar atento, segundo Kauchakje (2003: 71), aos riscos da “guetização fomentada e incentivada pelas próprias minorias, mediante a busca de construção e de reconhecimento de identidades singulares (e do ‘orgulho’ dessas identidades)”. Essa postura conduz, frequentemente, a um radicalismo de valores e atitudes que parecem toldar uma análise mais adequada da realidade.

Um outro aspecto importante a ter em conta é que, apesar de várias referências encontradas na literatura (Moores e Meadow-Orlans, 1990; Góes, 1996, Lane, 1997; Quadros, 1997; Sacks, 1998; Silva e Kauchakje, 2003, entre outros), ainda se mantêm muitas dúvidas sobre a verdadeira natureza da cultura dos Surdos. Este fenómeno é complexo, na medida em que, de acordo com as estatísticas internacionais, igualmente comprovadas, em Portugal, pelos estudos realizados pelo Observatório dos Apoios Educativos do Ministério da Educação (Reis e Oliveira, 2000), cerca de 95% dos Surdos são filhos de pais ouvintes. Assumindo-se que os Surdos têm uma outra cultura, eles tornam-se, de alguma forma, “estrangeiros” em casa, conduzindo-os, e à família, a um processo que nos atrevemos a designar como de um certo tipo de “orfandade cultural”. Nesse sentido, Sacks (1998: 132) refere que um grande número de pais de crianças Surdas expressa “esse temor de que o filho Surdo venha a tornar-se um estranho para eles, de que lhes será arrebatado pela comunidade dos Surdos (...) e é um temor que pode levá-los a prender a criança a si mesmos e a negar-lhe o acesso, enquanto é bem nova, à Língua de sinais e a outras pessoas Surdas”.Ora, isto traz grandes consequências se pensarmos que esses Surdos só podem assumir a sua pertença a uma outra cultura através da interacção com pares ou adultos Surdos externos ao seu núcleo familiar ouvinte o que levaria a uma vinculação que, como assinala Skliar (2001: 144), é mais interpessoal do que “filiação vertical institucional” e ultrapassa as barreiras familiares e/ou geográficas já que se constitui, exclusivamente, de Surdos. Há, assim, uma clara separação entre o mundo dos Surdos e o mundo dos ouvintes o que podemos compreender, até certo ponto, como uma necessidade de reivindicação autonómica mas não como um princípio básico a manter. Temos de ter em conta, por exemplo, que esta cultura Surda, que é património de uma comunidade específica, é minoritária na sociedade ouvinte, pelo que vai estar envolvida pela cultura dominante através de vários fenómenos de interacção cultural.

Por outro lado, devemos questionar a ideia, frequentemente presente, de cultura como sinónimo de comunidade recordando que Touraine (1998: 223) considera que "nenhuma sociedade moderna, aberta às trocas e às mudanças, tem uma unidade cultural total e porque as culturas são construções que se transformam constantemente reinterpretando novas experiências, o que torna artificial a procura de uma essência ou de uma alma nacional, ou ainda a redução de uma cultura a um código de condutas”. No caso em análise, esta reflexão adquire mais valor na medida em que, muitas vezes, a identidade com a comunidade aparece como sinónimo de sócio de uma Associação de Surdos.

Secundando alguns autores, defendemos a importância de não se desligar a Língua da cultura e, por conseguinte, a construção do Surdo como um sujeito bilingue e bicultural no âmbito de uma concepção intercultural que não trata “só do reconhecimento de modos de vida e valores diferenciados, mas também da existência de um diálogo onde cada sujeito portador de uma dada cultura se valoriza através de um conhecimento e reconhecimento cada vez maior de si e dos outros, que ajuda a construir uma articulação entre os próprios” (Leite, 2002:147).

2. Consequências para a escola: um currículo contra-hegemónico na educação de Surdos?

Neste contexto, a escola pode assumir um papel relevante já que é vista, essencialmente, como um espaço de construção de comunidades de experiência pela partilha possibilitada entre os Surdos o que leva Góes (1996: 20), a dizer que “para os jovens Surdos, a escola é menos um local de actividades para a incorporação de conhecimentos académicos e mais um ponto de encontro, uma oportunidade de contacto com outros Surdos”.

Contudo, apesar da importância indiscutível da escola no desenvolvimento da socialização, consideramos extremamente pobre reduzi-la somente a esta dimensão, ignorando o seu valor enquanto espaço do saber e de construção de ferramentas que permitam analisar o mundo. Este é, contudo, um dos argumentos que permite que alguns defendam o “regresso” às escolas especiais o que pode ser interpretado como uma aproximação ao discurso dos adeptos de um relativismo puro que “propõem a criação de escolas ou grupos específicos de alunos pertencentes a cada uma das culturas, admitindo que a coexistência no mesmo espaço de crianças pertencentes a culturas completamente distintas gera a perda das especificidades ou o triunfo do trivial e do insignificante” (Leite, 2002: 168). Podemos encontrar, neste discurso, marcas do que Connell (1999: 75) considera ser uma lógica do “currículo oposicionista” ao “currículo hegemónico” que, ao criar uma área separada de prática educativa, pode encaminhar-se, perigosamente, para um currículo de gueto que, contrariamente a certas ilusões, agrava mais as desigualdades.

Estas concepções são, aparentemente, contraditórias, com o percurso de construção da escola inclusiva. A justificação para esta postura parece advir de que o novo paradigma deslocaliza a surdez do âmbito da Educação Especial para o domínio das especificidades linguístico-culturais. Assim, não se concebendo o Surdo como um deficiente, parece evidente, a priori, que não lhe deveriam ser aplicadas medidas educativas idênticas às preconizadas para a população com deficiência. Aliás, a própria Declaração de Salamanca (1994) abre esta excepção ao considerar que, “devido às necessidades particulares dos Surdos e dos Surdos/cegos, é possível que a sua educação possa ser ministrada de forma mais adequada em escolas especiais ou unidades ou classes especiais nas escolas regulares” (n.º 21 das Directrizes de acção a nível nacional).

Nesta matéria, assumimos, como princípio, a importância fundamental da escola regular para os Surdos, embora concebendo diferentes modalidades de inserção, desde a “integração” individual até às Unidades de Apoio a Surdos. No entanto, consideramos a urgência de mudanças significativas na própria escola regular através de processos que podíamos denominar de “implosão controlada”. Com efeito, não acreditamos em modelos de “escolas especiais” construídas “ao lado de”, mas também não aceitamos estratégias de mera alteração superficial na estrutura da escola. Geralmente, a inserção escolar do Surdo é feita por referência a um currículo hegemónico, considerado pretensamente imutável pelo que, muitas vezes, as alterações propostas se situam basicamente nas condições de acesso ao currículo e não na efectiva construção de um novo currículo. Este, a ser equacionado é, dentro desta lógica, um “currículo de segunda” com características de “alternativa”, feito só para Surdos o que nos parece poder instituir uma exclusão social com um discurso de suposta diferenciação positiva.

Ora, a nossa proposta pretende ser diferente, pois recusamos que a “solução” dos “problemas” que a surdez transporta para a educação escolar passe pela sua passagem a “currículos adaptados” ou com a introdução da Língua Gestual como mera ferramenta de ensino. Há que criar rupturas com lógicas instaladas a diferentes níveis de modo a construir-se um espaço de educação escolar onde a heterogeneidade não seja vista como um problema mas como um recurso e, nesse sentido, defendemos a possibilidade de um currículo contra-hegemónico que responda aos desafios do paradigma sócio-antropológico da surdez (Skliar, 2001) nomeadamente ao facto dos Surdos serem entendidos como membros de uma minoria cultural e linguística.

Este currículo visa, assim, contribuir para a construção do Surdo como um sujeito bilingue e bicultural, na difícil relação entre a manutenção de uma identidade própria e a imersão na cultura dominante, o que implica repensar a aquisição de ferramentas essenciais. Desse modo, assumimos uma postura de “bilinguismo cultural” que, segundo Cortesão (2003: 62), pode ser entendido como “a capacidade de se mover na cultura dominante e utilizar os mesmos instrumentos, facto que poderá contribuir para que a pessoa em formação possa (sobre)viver nessa sociedade, sem que isso implique o esmagamento e/ou desvalorização e esquecimento da sua cultura de origem”.

A proposta educacional deve, portanto, inserir-se no âmbito de um inter/multiculturalismo crítico em que a criança Surda tem de sentir-se parte de uma comunidade própria e, simultaneamente, conhecer a cultura da comunidade ouvinte. A sua identidade vai-se construindo a partir desta relação, numa vertente dialógica sobretudo através do espaço de comunidade, mas também no espaço escolar o que aumenta a sua importância enquanto local de cruzamento de culturas o que releva a necessidade de se assumir uma postura de educação inter/multicultural crítica.

Esta educação, de cariz emancipatório, assume simultaneamente a igualdade como direito e o direito à diferença. No primeiro caso, não se trata de um mascaramento das diferenças nem a sua justaposição num “melting pot” cultural, mas supõe-se uma conflitualidade entre “indivíduos e grupos sociais diferentes, que podem se expressar, participar e trazer novas configurações na vida social” (Kauchakje, 2003: 70). Nessa medida, há que desenvolver nos Surdos competências que lhes permitam lutar pelo direito de exercício de uma cidadania plena, nomeadamente no acesso a equipamentos sociais, educativos e culturais, actividade política e cívica. Por outro lado, a igualdade como direito articula-se com o direito à diferença assumido na construção de uma alteridade relativamente ao ouvinte, marcada por uma Língua e cultura próprias.

Não é nossa pretensão, neste texto, apresentar uma proposta concreta de um currículo com estas características que possa ser utilizada pelos docentes, no terreno, porque pensamos que isso tem de ser definido em função da especificidade de cada realidade. Contudo, parece-nos ser importante apresentar algumas linhas de força para a sua construção de acordo com a problematização que fomos fazendo.

Assim, julgamos que tem de ser um currículo com uma forte adequação aos contextos locais, logo às características da população que abrange. Nesse sentido, ele deve articular-se com a reflexão sobre a escola no campo da sua relação com o saber e com a comunidade educativa inserindo-se, por conseguinte, no processo de construção de um Projecto Educativo de Escola e de Projectos Curriculares de Escola e de Turma. Tal como defendemos, a educação de Surdos deve ser parte integrante da educação escolar regular pelo que tem de atravessar os seus movimentos e momentos constitutivos e assentar num poder de decisão curricular local.

É necessário, igualmente, equacionar a construção de um efectivo bilinguismo na educação de Surdos o que implica mudanças significativas pressupondo, nomeadamente, que os conteúdos sejam trabalhados em Língua Gestual Portuguesa, ocupando a Língua Portuguesa um espaço curricular específico e adoptando metodologias de ensino/aprendizagem de segunda Língua. Há que romper com a prática instituída de ensinar esta Língua aos Surdos de forma semelhante ao que se faz com os ouvintes que a têm como Língua materna ou de, numa lógica de oposição, pura e simplesmente banir o seu estudo dada a importância atribuída à Língua Gestual. Essa parece-nos uma atitude que apenas contribui para um menor desenvolvimento das capacidades de interacção do Surdo com um contexto maioritariamente ouvinte o que pode reduzi-lo a uma cidadania mitigada. O desenvolvimento de estudos sobre esta temática afigura-se fundamental para que se consigam encontrar respostas adequadas sobre como compatibilizar esta dualidade (Língua Gestual/ Língua Portuguesa) no contexto de uma sala de aula regular.

No quadro da posição que estamos a esboçar devemos realçar que o reconhecimento da Língua Gestual implica, na nossa opinião, assumir uma postura sobre a cultura que a construiu e constrói quotidianamente, ou seja, há que inserir componentes específicas no currículo que reflictam essa cultura. Por outro lado, há que criar condições para que os Surdos tenham “voz” e se consigam narrar enquanto pessoas Surdas. Isso implica muito mais do que apenas desenvolver esforços para a introdução da Língua Gestual nas escolas como uma ferramenta de acesso ao currículo. Aliás, esse processo apresenta diversos aspectos contraditórios pois, frequentemente, destina-se, somente, somente a Surdos e, quando envolve ouvintes, surge quase apenas como uma curiosidade de um novo código a ser aprendido o que se pode situar numa perspectiva de “multiculturalismo benigno” (Stoer e Cortesão, 1999), ou seja, de mera aceitação passiva da diferença, com alguns laivos “folclóricos”. Ora, defendemos, neste contexto, algo de diferente que possa ser um efectivo ponto de partida para provocar situações de interacção que conduzam ao conhecimento, reconhecimento e construção social da importância da Língua Gestual enquanto marca identitária de uma comunidade o que passa por um estudo da cultura Surda, feito por Surdos e ouvintes, numa perspectiva de inter/multiculturalidade.

Isso implica, igualmente, a redefinição de uma política de apoio à família dos Surdos, sobretudo quando os pais são ouvintes, de modo a estes poderem fazer uma escolha consciente dos modelos comunicativos e da inserção educativa sabendo-se que isso pode interferir, decisivamente na construção de uma identidade por parte da criança Surda. Autores como Perlin (2001) apontam que quando existe, por parte dos pais, ignorância ou oposição ao “mundo dos Surdos” isso pode conduzir os filhos a uma identidade Surda incompleta ou flutuante, em qualquer dos casos, tardia. Daí que a família do Surdo deva, também, ser envolvida num contexto de inter/multiculturalidade em que a escola tem um papel fundamental, entre outros aspectos, concebendo a formação adequada e contínua no domínio da Língua Gestual de modo a que as interacções familiares sejam mais adequadas.

A exposição à Língua Gestual passa, ainda, pela criação de respostas educativas assentes em recursos humanos que disponham de formação nesta área. Neste domínio, salientam-se os docentes e a necessidade da sua construção como um profissional reflexivo que assume a ruptura com um olhar “não daltónico” de “indiferença à diferença”. Assim, consideramos que não basta ter informação/formação sobre a surdez, mas que têm de ser desenvolvidos vários processos de modo a que, na sequência do que Cortesão (1998, 2000, 2001, 2003) concebe, deixe de ser um professor monocultural e se construa como um professor inter/multicultural. Essa mudança deve implicar, igualmente, uma reformulação dos currículos e práticas das escolas de formação no sentido de formar os docentes para a diversidade sob pena destes se alhearem de uma realidade por demais evidente e de constituírem um péssimo serviço à educação.

Não podemos esquecer, num “currículo contra-hegemónico”, que desejamos e acreditamos possível, embora talvez não no imediato, a formação de novas profissionalidades como os intérpretes de Língua Gestual e os docentes Surdos. Defendemos a formação de Surdos para serem efectivamente docentes em situação de igualdade com os demais e, nesse sentido, julgamos que quando tal for conseguido será uma prova de avanço no seu processo de educação. Recusamos, por conseguinte, que se veja o papel dos Surdos apenas como auxiliares do professor numa postura de menoridade que seria um reflexo das suas fracas competências linguísticas e académicas. Aceitamos que isso possa ser, nas circunstâncias actuais, um passo no sentido da sua (trans)formação de formadores em docentes, mas não concebemos a sua eternização neste estatuto. Isso passa pela modificação de condições a “montante”, ou seja, pelas mudanças que a educação escolar tem de fazer no sentido de construir uma resposta para a população com surdez que a valorize na sua especificidade e consiga aproveitar a sua riqueza na forma como interpreta o mundo através de uma experiência visual.

Os aspectos aqui apresentados não pretendem esgotar as características de um currículo que defendemos como possibilidade para uma educação escolar que envolva, positivamente, os Surdos, mas apenas serem pistas para um processo de reflexão que sabemos dever ser mais explorado a nível de conceptualização teórica e de investigações e para o qual pensamos ter contribuído um pouco.

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