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Reflexões a partir da Observação de uma Aula de Língua de Sinais Brasileira como primeira Língua
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Publicado em 2008
Revista Eletrônica Domínios de Lingu@agem [online], Ano 2, nº 1
Maria Cristina Pires Pereira
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Resumo

Apesar dos avanços, em termos de legislação, os educadores da linguagem que trabalham com crianças e jovens surdos ainda carecem de conhecimentos teóricos consistentes que embasem as suas práticas. O que vem acontecendo é a reprodução de estratégias sem uma devida reflexão sobre elas. As aulas de língua de sinais brasileira (Libras), conseqüentemente, transformam-se em aulas de tradução para a língua portuguesa. Através de uma observação de uma aula de Libras como primeira língua e de uma entrevista com o professor surdo, proponho alternativas com viés interativo.

1. Introdução

Tenho acompanhado, nas escolas, o movimento dos surdos em tornar a sua língua, a língua de sinais brasileira (Libras), um componente curricular obrigatório em sua educação. E mesmo com a regulamentação da Libras, por meio do Decreto Federal 5.626, de 22 de dezembro de 2005, não existe ainda uma sistematização explícita sobre seu ensino como primeira língua. Neste decreto constam referências vagas ao “uso e difusão da Libras para o acesso das pessoas surdas à educação” e que para garantir o atendimento educacional especializado, as instituições federais de ensino devem, além de outros aspectos “promover cursos de formação de professores para o ensino e uso da Libras” e “ofertar, obrigatoriamente, desde a educação infantil, o ensino da Libras”.

O Brasil vive o mito da língua única, a língua portuguesa, e os cursos de formação dos educadores e pesquisadores da linguagem focam, quase que exclusivamente, em seu estudo e ensino. No entanto, centenas de línguas indígenas, de imigrantes e as línguas de sinais ficam esquecidas ou, no máximo, relegadas a um papel secundário, como curiosidades, embora ofereçam um vasto campo de investigações. Na área das línguas de sinais, temos duas línguas descobertas no nosso país, a Libras, antigamente chamada de língua de sinais dos centros urbanos, e a língua de sinais, autóctone, Urubu-Kaapor de uma tribo indígena.

As crianças surdas devem ter, o mais cedo possível, um ensino de língua de sinais o mais qualificado possível e o que vem acontecendo são políticas emergenciais, advindas de estudos superficiais, sem grande incentivo e divulgação das pesquisas existentes. Para tentar alcançar um nível desejado de conhecimento lingüístico é preciso que, cada vez mais, sejam abertas oportunidades de estudos não só da língua de sinais como primeira língua, mas também em seu promissor campo como segunda língua para professores de surdos, intérpretes de língua de sinais e para seu ensino na graduação e cursos livres.

Este trabalho enfocou o ensino formal da Libras, para crianças e adolescentes surdos, como primeira língua, em ambiente escolar, e em como a concepção de linguagem que o professor possui pode permear a prática escolar.

2. Referencial Teórico

A Libras é a primeira língua de boa parte da população surda, no Brasil. As concepções de língua, linguagem e lingüística não podem mais ignorar a existência das línguas de sinais. Recentemente, em dezembro de 2006, aconteceu o 9ª Congresso Internacional de Aspectos Teóricos das Pesquisas nas Línguas de Sinais, na Universidade Federal de Santa Catarina, em que lingüistas do mundo inteiro fizeram comunicações e conferências sobre os mais diversos aspectos das línguas de sinais, como, por exemplo: Diachronic Lexical Change in Flemish Sign Language; Deixis, Anaphora and Highly Iconic Structures: cross linguistic evidence on American (ASL), French (LSF) and Italian (LIS) signed languages; Investigating Sociolinguistic Variation in New Zealand Sign Language; Frames of Reference in German Sign Language e muitos outros. Este recorte nos lembra do imenso universo que as línguas de sinais vislumbram para os pesquisadores e o quanto ainda nos falta conhecer e investigar.

Estas pesquisas precisam ultrapassar o campo acadêmico e adentrarem no campo do ensino-aprendizagem, principalmente no nosso país, pois segundo Matêncio (1994:78):

O hiato que se constituiu entre os avanços científicos na área da linguagem e sua incorporação na formação de professores, bem como em sua prática em sala de aula, reflete os problemas no ensino no Brasil: só muito tardiamente os avanços científicos nas áreas mencionadas têm sido incorporados ao ensino de terceiro grau e, portanto, reestruturados para inclusão nos níveis iniciais

A idéia dominante, principalmente na própria comunidade surda, era de que o simples “contato” com surdos adultos, sinalizadores, seria suficiente para que as crianças surdas adquirissem e aprendessem a Libras. Talvez, em termos de aquisição sim, mas a partir do momento em que a Libras entra como componente curricular, no ensino formal, se faz necessária uma sistematização e um estudo de quais as melhores maneiras de apresentar e desenvolver o estudo da língua de sinais como primeira língua. As dificuldades, nesse sentido, são muitas e “(...) deveriam ser repensadas por uma pedagogia da língua reveladora de aspectos de uma educação lingüística que conceba a língua em sua heterogeneidade” (FLORES, 2006: 12), ou seja, não somente no seu aspecto normativo, mas também quanto ao uso da língua.

No caso da Libras, refletir sobre as lições que, até agora, aprendemos com o ensino da língua portuguesa pode ser de grande valor na escolha da abordagem que será utilizada pelo professor.

3. Metodologia

Dois métodos de coleta de dados foram utilizados para esta pesquisa: uma entrevista aberta com o professor da disciplina e uma observação de uma aula de primeira língua, no caso a Libras.

O Professor

O professor é graduado em Pedagogia e mestre em Educação. A formação que teve para ministrar aulas de Libras foi obtida em um curso promovido pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) que tem a duração de quatro meses e forma instrutores surdos de Libras. Antes do curso de graduação Letras-Libras, lançado em 2006, somente pessoas surdas eram formadas para ministrar a Libras, por uma política de reserva de mercado.

O professor, daqui por diante referido com o nome fictício de Max, é surdo profundo, congênito e foi educado, até a pré-adolescência, só com a oralização, ou seja, somente com os recursos da leitura orofacial 1, sem língua de sinais. No depoimento, Max relatou que teve muito apoio da família, principalmente de sua mãe, para entender o que estava se passando em um mundo sonoro, ela foi a sua primeira intérprete. Por vezes, a mãe até desligava o som da televisão para que se sentisse igual a Max, pois ele seguidamente lhe pedia para dizer o que estava se passando na TV e assim ela dizia ao filho que, naquele momento, os dois estavam nas mesmas condições e que iriam tentar decifrar juntos o que estava sendo noticiado.

Enfrentou uma crise pessoal e escolar, na escola regular, pelos limites que a comunicação oral lhe impunha, e foi colocado, como último recurso, em uma escola particular para surdos, em Porto Alegre. Neste momento, relata um renascer para o mundo das interações lingüísticas, quando aprende a língua de sinais, e não depende de mais ninguém para intermediar suas conversas e para receber informações. Concluiu o ensino médio nesta mesma escola para surdos e entrou na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Canoas/RS, onde após alguns semestres sem intérprete de língua de sinais (ILS) conseguiu o acompanhamento e interpretação para a Libras até a sua formatura. Um ano depois, entrou para o mestrado em Educação, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também teve o acompanhamento de ILS durante toda a pós-graduação, inclusive com apoio à redação de língua portuguesa que, hoje, considera a sua segunda língua.

Apesar de ser um exímio leitor orofacial e não apresentar grandes problemas em interações na língua portuguesa (desde que os interlocutores falem de frente para ele e articulando bem as palavras), prefere a Libras por, a seu ver, expressar melhor o seu pensamento, essencialmente, visual.

No trecho a seguir, Max faz um breve relato de sua preparação como instrutor de Libras. As perguntas, feitas por mim, por meio de correio eletrônico, estão numeradas e as respostas de Max estão transcritas em sua versão original, sem correções gramaticais. Optei por não alterar o seu depoimento para que se possa ter uma visão mais clara de como a língua portuguesa é utilizada por pessoas surdas, mesmo por aquelas que estão no topo da escala acadêmica na comunidade surda.

  1. no curso de formação de instrutores, tiveste alguma teoria de aprendizagem de linguagem?
    Não teve teoricamente, principalmente estivemos treino "classificatorio" CL.
  2.  já leste ou estudaste algo sobre aprendizagem de linguagem?
    Sim, por conta propria!!! No curso não tive oportunidade.

Max teve que complementar sua própria formação, movimento que também acontece com qualquer educador graduado e pós-graduado, pois o processo de formação “é um processo que transborda em larga medida os cursos de formação propriamente ditos, e que envolve a aquisição, a mobilização e a articulação/transformação de saberes e competências heterogêneos” (SIGNORINI, 2005: 96) e não deve estancar em um determinado momento de um curso.

No relato de sua vida escolar, Max revelou que não teve a disciplina de Libras no ensino formal, nunca estudou a língua de sinais. Seu contato com a língua de sinais, até o seu curso de instrutor, foi informal.

Max é um reconhecido professor de Libras, como primeira e segunda língua, mas apresenta, segundo ele mesmo, falhas em sua formação. Tentou remediá-las com estudos autodidatas, mas isto nem sempre preenche as necessidades deixadas por um curso rápido de instrutores de Libras. Estes problemas transparecem na dinâmica da sala de aula, como veremos adiante.

Os alunos

A turma observada foi um terceiro ciclo do ensino fundamental em que estavam presentes cinco meninos e quatro meninas. Os alunos serão referidos da seguinte forma: C. 10 anos; K. 10 anos; A. 12 anos; R. 12 anos; B. 13 anos; M. 13 anos; RA. 15 anos; RO. 15 anos; CA. 16 anos.

A Observação

A observação foi feita em uma escola particular, de confissão religiosa, que é específica para surdos, e conta com todo o ensino básico, desde o ensino infantil até o ensino médio. Todas as aulas são ministradas em Libras, de acordo com a proficiência de cada professor, sendo que existem professores surdos e professores ouvintes.

O prédio da escola foi especialmente construído para surdos: as salas têm dimensões pequenas, para um número reduzido de alunos; as janelas são posicionadas acima do nível dos olhos (maior canal de recepção das pessoas surdas) para evitar excesso de estímulos visuais externos e as mesas são permanentemente posicionadas em semicírculo para que todos possam ver a sinalização uns dos outros.

Cabe salientar que eu, a observadora, sou intérprete de língua de sinais e durante todo o tempo compreendi todas as conversas que se passaram na aula. Esta nota tem seu lugar, pois muitas filmagens e observações em escolas de surdos são feitas por pessoas que ou não conhecem profundamente a língua de sinais ou têm conhecimentos que não permitem uma compreensão total das interações realizadas na aula, o que influencia de uma maneira importante. Os alunos primeiramente, perguntaram ao professor quem eu era e ele disse para perguntarem diretamente a mim. Alguns, ainda assim, perguntaram a Max se eu entendia a Libras no que ele os desafiou a comprovarem conversando comigo. Logo eu estava cercada dos alunos que, além das perguntas básicas sobre meu nome, sinal 2, idade e o que estava fazendo lá, também me perguntaram se eu era surda. Apesar de ser intérprete e me considerar com uma boa proficiência em Libras, não deixei de me espantar, pois a escola é de e para surdos e, se supõe, que os professores ouvintes também devem ter uma proficiência tão boa quanto a de qualquer intérprete. Mesmo tendo respondido que eu era ouvinte, alguns alunos ainda assim não acreditaram e tentavam a confirmação sinalizando “é verdade?”, “é ouvinte mesmo?” e outros afirmavam que eu estava mentindo e que era surda, me fazendo passar por ouvinte. Max teve que confirmar e dizer que eu tinha sido a intérprete dele na universidade e na pósgraduação para que os alunos aceitassem que eu era realmente ouvinte.

Logo no começo da aula procurei me posicionar em um lugar perto do fundo da sala, pois as distrações visuais são percebidas de uma maneira mais focada nas crianças surdas e se constituem em verdadeiros “ruídos visuais”.

A disciplina de Libras conta com um período semanal de cinqüenta minutos e a língua portuguesa com três períodos semanais.

Passo, a seguir, ao detalhamento das atividades presenciadas.

Primeira atividade

A primeira etapa do trabalho proposto pelo professor foi uma espécie de ditado com as configurações de mão. Foram utilizadas duas configurações, que constam no alfabeto datilológico 3, “B” e “Y” 4.

Ilustração 1 - Configuração de mão em “B”

Ilustração 2 - Configuração de mão em “Y”

O professor ditava sinais que possuíam as configurações de mão, anteriormente citadas, e os alunos tinham que escrever a palavra correspondente em língua portuguesa.

A seguir, detalho a produção dos alunos, sem correções ou alterações. Cabe ressaltar que Max, no fim da aula, recolheu a folha das atividades e, gentilmente, as cedeu para mim. Fiquei, assim, com todo o registro escrito da observação.

C. 10 anos: brincar, sofre, avião, brasil, peixe, biblioteca.
K. 10 anos: brincar, sotre, avisão, Brasil, peixe, biblioteca.
A. 12 anos: brincar, sofre, avião, brasil, pexie, liblioteca.
R. 12 anos: brincar, fone, avião, Brasil, peixe, biblioteca.
B. 13 anos: brnicar, setore, avião, Brasil, peixe, Biblieteca.
M. 13 anos: Birca, ossfra, aivão, Brasil, peixe, biblioteca.
RA. 15 anos: brincar, sofre, avião, Brasil, peixe, biobe (incompleto).
RO. 15 anos: Branca, avião, Brisal, Peixe.
CA. 16 anos: brincor, sofre, avião, Brasil, peixe, Biblioteca.

Segunda atividade

Logo em seguida foi feito um ditado de frases em Libras em que os alunos escreviam em língua portuguesa.

O professor primeiro sinaliza e depois os alunos escrevem. Nas repetições das frases, os alunos têm que parar de escrever para olhar a sinalização novamente. Os alunos escreveram as seguintes frases:

C. 10 anos

  1. A avó quer comer banana.
  2. O homem está brincar mas homem muito rápido caiu com bicicleta.
  3. O avião dois bateu caiu.
  4. O professor está correr não vai com árvore bateu caiu.
  5. O pai e a mãe está passear praça sol lindo. O pai e a mãe está muito cansando. O pai e a mãe está comer bananas.

K. 10 anos

  1. Vovó quero de comer banana.
  2. O menino está brincar de bicicleta muito rápido rua ate caiu na chão ele esta dor no corpo.
  3. Dois avião está bateu caiu chão.
  4. A professora estava correr ate bateu a árvore professora caiu.
  5. As pais passear muito matas forte sol paus esta muito calor ate canando as pais quero senta na chão comer na banana.

A. 12 anos

  1. Vovó quero come banana.
  2. O homem vai bicicleta ancoteceu caiu.
  3. Avião dois bateu está caiu [caho].
  4. A professora corre de vão viu já bateu é árvore.
  5. Mãe e pai vai passear viu árvore tem muito sol, mãe e pai está muito carlor de, mãe e pai muito cansando espera está sentar a caho uso comer é banana.

R. 12 anos

  1. Vovó quero comer bananca.
  2. Homem bicicleta rápido caiu.
  3. Avião bateu outor avião.
  4. Professor não viu árvore.
  5. Mãe pai mata sal mãe fala cansando senta comer banaca descansar.

B. 13 anos

  1. avó comer quero banana.
  2. Menino bicicleta correr caiu bicicleta.
  3. Avião viu tem beta[m] avião.
  4. Professor viu não correr Arvera.
  5. [em branco].

M. 13 anos

  1. A vovô quer banana.
  2. O homem bicicleta susto caiu rua.
  3. Avião dois bateu avião.
  4. Aprofessor corre viu árvore.
  5. Apais foi muito Árvore de muito sol é para muito verão senta comer gostoso muita todos Banana.

RA. 15 anos

  1. Vovo que comer banana.
  2. Homem foi rápido caiu da bicicleta.
  3. [3] avião bateu caiu na rua.
  4. Professor não viu bateu na arvore.
  5. Pai e mae vai passear sol estava muito carlor mae e pai estava muito cansando.

RO. 15 anos:

Não escreveu nada.

CA. 16 anos

  1. Vovó comer banana.
  2. [em branco].
  3. Avião.
  4. Professor árvore.
  5. Pai e mãe Vai passear sol rua carlor LEGAL sentar comer banana muito.

Terceira atividade

Foi escrito no quadro, em língua portuguesa, o texto:

Tião é um menino triste.
Não tem casa, não tem pai, não tem mãe.
Vive sozinho na rua.

Os alunos, que quisessem, iam à frente da aula e liam o texto, sinalizando em Libras. Quase todos os alunos tentaram ler, menos um. Tentarei mostrar aqui como seria uma estrutura em Libras, utilizando glosas:

/T-I-Ã-O/ /menino/ /triste/
/casa/ /não-ter/ /pai/ /não-ter/ /mãe/ /não-ter/
/viver/ /sozinho@/ /rua/ ou /rua/ /viver/ /sozinh@/

A maioria dos alunos fez uma sinalização aproximada do português sinalizado em que se utiliza a estrutura da língua portuguesa com o léxico da Libras. Neste caso, vários sinais artificiais são criados para suprir o descompasso da tradução literal sinalpalavra e vice-versa. Irei colocar entre colchetes estes sinais artificiais ou inversão da estrutura da Libras. Exemplo:

/Tião/ {é} {um@} /menino/ /triste/
{não} {ter} /casa/ {não} {ter} /pai/ {não} {ter} /mãe/
/viver/ /sozinho@/ N-A 5 /rua/

Após esta observação, procedo a uma análise das atividades dirigidas pelo professor e proponho algumas alternativas, baseada em uma visão, predominantemente, interacionista.

4. Proposta

Todos os três momentos das atividades tiveram a presença da língua portuguesa, embora a aula fosse de Libras como L1. Esse fato, de certa forma, contradiz várias concepções lingüísticas sobre primeira língua e, até mesmo, as reivindicações lingüísticas e políticas da comunidade surda. Na verdade, o material coletado serviria para uma análise da língua portuguesa entre os alunos surdos e não para um estudo da Libras como primeira língua.

O que ocorre é um contínuo processo de tradução entre a Libras e o Português. Certamente, reconheço a importância da língua portuguesa para as pessoas surdas, principalmente na sua modalidade escrita, como instrumento de participação e poder na sociedade majoritária ouvinte, mas em momentos separados e não exercendo um domínio franco em sala de aula.

A proposta apresentada não pretende ser fechada em si mesma e poderia ser incrementada com uma participação mais ativa dos alunos, promovendo o “desenvolvimento de uma comunidade de aprendizagem na qual alunos e professores, juntos, determinem os assuntos, perguntas e estratégias de investigação (KLEIMAN e SOARES, 1999: 28), além de valorizar conhecimentos advindos de várias experiências, desenvolvendo a autonomia dos alunos, o espírito de colaboração e o interesse em conhecer, em saber, em investigar. Esta parceria colaborativa entre professores e alunos vê o professor como ”parceiro privilegiado, justamente porque tem maior experiência, informações e a incumbência, entre outras funções, de tornar acessível ao aluno o patrimônio cultural (...) e portanto, desafiar através do ensino os processos de aprendizagem e desenvolvimento infantil” (REGO, 1995: 115). Oportunizar aos alunos situações em que a interação e a colaboração se estabeleçam pode incrementar as experiências de aprendizagem e ampliar o espectro de desenvolvimento para os aprendizes.

Proponho atividades que utilizam somente a Libras em sala de aula. Existem muitos aspectos específicos da Libras que podem ser explorados (QUADROS,2000: 56):

  • estabelecimento do olhar;
  • exploração das configurações de mãos; dos movimentos dos sinais (internos: dos dedos e externos: de relações gramaticais no espaço); das diferentes funções do apontar; do alfabeto manual; da orientação da mão;
  • utilização de sinais com uma mão, duas mãos com movimentos simétricos, duas mãos com movimentos não simétricos, duas mãos com diferentes configurações de mãos;
  • uso de expressões não manuais gramaticalizadas (interrogativas, topicalização, foco e negação);
  • utilização de classificadores;
  • especificação do tipo de ação, duração, intensidade e repetição (adjetivação, aspecto e marcação do plural);
  • estabelecimento de referentes presentes e não presentes no discurso.

E várias outras atividades que possam tirar proveito da riqueza visual e cinestésica de uma língua visual e gestual.

Diante disso, proponho como que todas as atividades sejam registradas no sistema Signwriting 6, possibilitando uma “escrita” diretamente em língua de sinais, sem a interferência da língua portuguesa e sem a necessidade que os alunos traduzam seu pensamento de uma língua para outra.

No ditado utilizando as configurações de mão, eu proporia além de configurações existentes no alfabeto datilológico, outras que não representam nenhuma letra do alfabeto latino, por exemplo:

Configuração de mão: punho fechado, todos os dedos em total flexão, menos o
dedo indicador que fica semiflexionado, em forma de gancho.

Ilustração 3 - representação em Signwriting dos sinais para /SEXTA-FEIRA/ e /COMPUTADOR/

Configuração de mão: punho aberto com todos os dedos semiflexionados.

Ilustração 4 - representação em Signwriting dos sinais para /JACARÉ/ e /MACACO/

Os sinais aqui registrados foram feitos em um editor de textos, gratuito, disponível na Internet no portal do Signwriting. Este editor, o Signwriter, apesar de trabalhoso, pode ser utilizado por qualquer pessoa para escrever sinais, desde que se saiba, obviamente, as convenções e símbolos do sistema de escrita. Poderia, portanto, ser utilizado pelos alunos no laboratório de informática, o que consistiria de um desdobramento desta primeira tarefa em que os alunos escreveriam os sinais à mão.

A Libras, mesmo se a considerarmos como uma língua ágrafa, pode ser trabalhada como um gênero oral no sentido que as interações, e informações são feitas de uma forma presencial, assim como as culturas de línguas orais e que são ágrafas. Contação de histórias, piadas e outros gêneros podem ser trabalhados de muitas maneiras criativas que coloquem em questão, para as crianças surdas, “as diferentes formas de dizer, determinadas por diferentes situações comunicativas (BARBOSA, 2000: 154), pois, “aprender a falar é apropriar-se dos instrumentos para falar em situações de linguagem diversas, isto é, apropriar-se dos gêneros” (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004: 171). Obviamente, no caso da Libras, falar em língua de sinais e não necessariamente da forma vocal/oral.

5. Considerações Finais

O Brasil está vivendo uma efervescência no que tange à Educação de Surdos. Nos últimos anos as conquistas em termos de legislação vêm amparando profundas modificações de concepção da surdez. No entanto, a Educação de Surdos precisa passar por profundas mudanças conceituais, de uma educação de “deficientes” para uma educação de uma minoria lingüística. Esta concepção já é sentida, mas ainda não ultrapassou o campo do ideal.

Este trabalho é um passo, mesmo que incipiente, na direção de um estudo voltado, especificamente, para a área da Lingüística, nas abordagens de Libras como primeira língua. Outros trabalhos estão, aos poucos, surgindo para embasar a prática dos educadores de surdos. Uma sugestão seria uma assessoria permanente de grupos acadêmicos que, periodicamente, fizesse o intercâmbio que seria proveitoso para todos: os professores fornecendo situações reais de indagações e conflitos na educação e os pesquisadores, por meio deste material, buscassem entender melhor os fenômenos que acontecem nas escolas e dessem o retorno novamente aos educadores. Uma parceria assim, funcionaria não só em escolas com pessoas surdas, mas especificamente nesse caso, seria um grande recurso de evolução na educação e na lingüística.

Notas

1 Também referida como “leitura labial”. Preferi o termo mais técnico por expressar não só a leitura dos movimentos labiais, mas de toda a face.
2 Todas as pessoas, surdas ou ouvintes, que participam da comunidade surda e são falantes de Libras, recebem um sinal pessoal, que passa a ser a sua identificação pessoal na comunidade. É um sinal que reflete alguma característica física ou psicológica pela qual passamos a ser conhecidos.
3 O alfabeto datilológico, também chamado de alfabeto manual, é uma forma de representar as letras do alfabeto da língua oral, no caso do Brasil, o alfabeto latino, por meio de configurações de mão.
4 Fonte das gravuras disponível no portal http://www.libras.org.br.
5 Configurações de mão correspondentes à letra N e à letra A.
6 Sistema de registro gráfico de línguas sinalizadas que vem se popularizando muito nos últimos anos. Para maior detalhamento acessar <http://www.signwriting.org>.

Bibliografia

BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Do Professor Suposto pelos PCNs ao Professor Real de Língua Portuguesa: são os PCNs praticáveis? In: ROJO, Roxane (org.). A Prática de Linguagem em Sala de Aula: praticando os PCNs. Campinas: Mercado de Letras, 2000.

BRASIL. Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. In: Diário Oficial da União de 23 de dez. de 2005, Brasília, p. 28. Congresso Internacional de Aspectos Teóricos das Pesquisas nas Línguas de Sinais, 6 a 9 de dezembro de 2006, Florianópolis, Brasil. Florianópolis: Lagoa Editora, 2006.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. O Oral como Texto: como construir um objeto de ensino. In: ______. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

FLORES, Valdir do nascimento. A Heterogeneidade dos estudos da Linguagem e o Ensino de Primeira língua (do que falam os lingüistas?). Calidoscópio, vol. 4, n. 1, p. 7-14. São Leopoldo: Unisinos, 2006.

KLEIMAN, Ângela B.; MORAES, Silvia E. Leitura e Interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas: Mercado de Letras, 1999.

MATÊNCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Leitura, produção de textos e a escola: reflexões sobre o processo de letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1994.

QUADROS, Ronice Müller de; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de Sinais Brasileira: estudos lingüísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

SIGNORINI, Inês. O Relato Autobiográfico na Interação Formador/Formando. In: KLEIMAN, Ângela B.; MATÊNCIO, Maria de Lourdes M. Letramento e Formação do Professor: práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas: Mercado de Letras, 2005.

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