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Danielle Sousa
Danielle Sousa
Professora do Centro de Ensino e Apoio a Pessoa com Surdez
Aquisição da Língua de Sinais por Alunos Surdos: Ponto de Contribuição e Relevância na Atuação do Intérprete de Língua de Sinais
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Publicado em 2009
RVCSD - Revista Virtual de Cultura Surda e Diversidade, Edição nº 05
Danielle Sousa
Resumo

A profissão de intérprete de língua de sinais no Brasil vem ganhando cada vez mais espaço e sua atuação em diferentes contextos vêm sendo muito discutida. Atrelada a esta investigação, está o surdo e a aquisição de língua de sinais por parte deste sujeito, além da intimidade que deve possuir com a língua, com a comunidade surda, a constituição da identidade e cultura. A fim de discutir tal relação, este artigo tem como objetivo demonstrar a importância da aquisição da língua de sinais para o surdo e suas implicações para a aquisição de uma segunda língua, baseando-se em uma perspectiva de desenvolvimento lingüístico efetivo, para que seja satisfatória a atuação do intérprete de língua de sinais. A análise do tema em questão baseia-se em pesquisas bibliográficas e empíricas.

1. Língua de Sinais

Temas como surdez, aquisição de língua e linguagem por sujeitos surdos e atuação dos profissionais intérpretes de língua de sinais em diferentes contextos, vem sendo discutidos por profissionais em diferentes espaços, estando diretamente ou indiretamente envolvidos com a história, o trabalho e o desenvolvimento na educação de surdos. No que tange à educação de surdos, destaca-se aqui a aquisição da primeira língua, ou seja, a língua de sinais, que muitas vezes acontece de maneira tardia ou não é realizada, comprometendo o desenvolvimento lingüístico e global do surdo, assim como a atuação do intérprete de língua de sinais que exerce suas atividades na área educacional.

A língua de sinais, considerada a língua natural dos surdos por se desenvolver naturalmente e por permitir que qualquer conceito seja expresso através dela, ainda não é considerada por muitos uma língua, mas somente um conjunto de gestos, mímicas, embora estudos comprovem que esta possui status de língua e apresente sintaxe, gramática e semântica de maneira completa, como afirma Sacks (1998), e o que a difere das línguas orais é o seu canal de comunicação que é o gestual-visual. Além disso, ela se articula por meio das mãos, expressões faciais e corporais. Porém, um dos fatores que impede o acesso do surdo à língua de sinais nos seus primeiros anos de idade é esta concepção errônea de que ela é apenas pantomima e não oferece recursos lingüísticos satisfatórios para uma comunicação efetiva. Sabe-se que muitos surdos nascem em famílias ouvintes e estas muitas vezes não aceitam a surdez e a língua de sinais como uma língua que proporciona ao surdo a oportunidade de se comunicar.

Neste processo de aquisição da língua de sinais, é interessante que a família também participe do aprendizado da mesma, para que tenha condições de interagir com os filhos, perceber e ajudar em suas diferentes necessidades e acompanhar o desenvolvimento da criança. Em relação à criança surda, é imprescindível que seja oferecida o mais cedo possível a oportunidade do contato com adultos surdos, usuários da língua de sinais, para a aquisição da mesma. A respeito desta afirmação Silva (2001, p.47) sustenta:

Outros estudos feitos por vários pesquisadores assinalam que os surdos, a exemplo dos ouvintes, podem se desenvolver linguisticamente, desde que sejam expostos à Língua de Sinais o mais cedo possível; se isto não acontecer, o desenvolvimento global do indivíduo surdo poderá ser afetado de modo significativo.

Guarinello (2007, p.48) reitera:

(...) para que as crianças surdas venham adquirir a língua de sinais como primeira língua, é necessário que elas sejam expostas a usuários competentes dessa língua, ou seja, adultos surdos fluentes, que vão responder tanto pela exposição como pelo ensino da gramática para as crianças e seus pais, que, em 95% dos casos, são ouvintes.

2. Língua de sinais, cultura, identidade e bilinguismo

A criança surda, assim como a ouvinte, para se tornar um falante competente na sua primeira língua, precisa estar em ligação com ela, e a interação com adultos surdos proporcionará, além da aquisição da língua, a construção da identidade, sendo que isto acontece através do contato com a comunidade surda. De acordo com Perlin (2005, p.77), “As identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da cultura surda, elas moldam-se de acordo com a maior ou menor receptividade cultural assumida pelo sujeito.” É nas relações com a comunidade surda que o indivíduo irá se reconhecer e se aceitar enquanto surdo, definir suas características, comportamento e percepção do mundo. Neste momento, o surdo tem a oportunidade de se identificar com a cultura, com a língua, com os costumes e valores e de perceber suas potencialidades enquanto sujeito de uma minoria lingüística. Partindo do contato prévio com a língua de sinais e com a comunidade, para aquisição da língua pela criança e para a constituição de sua identidade, ressalta-se a possibilidade do surdo interagir com uma segunda língua, e para isto faz-se necessária a aquisição da primeira. Skliar (apud GUARINELLO, 2007, p.33) confirma que “a experiência prévia com uma língua contribui para aquisição de segunda língua, dando à criança as ferramentas heurísticas necessárias para a busca e a organização dos dados lingüísticos e o conhecimento, tanto geral como específico, da linguagem”.

A abordagem educacional que traz em sua proposta a acessibilidade de duas línguas no ambiente escolar é o bilingüismo. Seu surgimento deve-se às reivindicações dos surdos pelo direito a sua língua e às pesquisas lingüísticas sobre língua de sinais. Estudos comprovam que essa abordagem é a mais coerente para o ensino de crianças surdas, trazendo em sua filosofia a importância da aquisição da língua de sinais, para que a partir dela seja ensinada uma segunda, ou seja, a língua majoritária, preferencialmente na sua modalidade escrita. Quadros (1997, p.27) afirma que:

O bilingüismo é uma proposta de ensino usada por escolas que se propõem a tornar acessível à criança surda duas línguas no contexto escolar. Os estudos têm apontado para essa proposta como sendo mais adequada para o ensino de crianças surdas, tendo em vista que considera a língua de sinais como língua natural e parte desse pressuposto para o ensino da língua escrita.

De acordo com Guarinello (2007), o bilingüismo pode ser apresentado de duas maneiras: a simultânea ou sucessiva. A primeira se destina ao ensino da segunda língua concomitante ao da primeira, mas em momentos diferentes. No simultâneo, a criança surda terá um instrutor surdo para a aquisição da primeira língua e para a segunda, a língua majoritária da comunidade ouvinte, um instrutor ouvinte. Em relação ao bilingüismo sucessivo, a criança surda estará exposta ao ensino da língua majoritária após a aquisição da primeira. Isto implica um domínio da primeira língua, a língua de sinais. Seja no bilingüismo sucessivo ou simultâneo, nota-se a importância da aquisição da língua de sinais como primeira língua e quão necessário é que essa aquisição tenha como interlocutores os surdos, pois é no contato com os seus pares semelhantes que acontece com espontaneidade e rapidez a aquisição da língua de sinais.

A partir desta integração com surdos adultos, utentes da língua de sinais, a criança surda não aprenderá só uma língua, pois durante este processo ela se desenvolverá como pessoa, construirá sua identidade e edificará a partir das relações dialógicas com a sua comunidade, constituirá e compartilhará idéias, sentimentos. Todos esses aspectos fazem referência ao desenvolvimento das potencialidades da pessoa surda, expostas por Skliar (1998, p.26) da seguinte forma:

(...) potencialidade como direito à aquisição e desenvolvimento da língua de sinais como primeira língua; potencialidade de identificação das crianças surdas com seus pares e com adultos surdos; potencialidade do desenvolvimento de estruturas e funções cognitivas visuais; potencialidade para uma vida comunitária e de desenvolvimento de processos culturais específicos; e; por último, a potencialidade de participação dos surdos no debate lingüístico, educacional, escolar, de cidadania, etc...

Skliar aponta a aquisição da língua de sinais como primeira potencialidade e a partir desta, outras podem ser desenvolvidas, pois é interessante e importante um bom desempenho na sua primeira língua para que outros aspectos na vida do surdo sejam aprimorados. Lamentavelmente, muitos surdos não adquirem a língua de sinais como primeira língua ou passam por este processo de aquisição de forma tardia. Isto implica em uma série de dificuldades que é manifestada quando este é inserido em uma sala de aula inclusiva, pois estes obstáculos acabam também envolvendo um profissional que trabalha diretamente com o surdo em sala de aula, o intérprete de língua de sinais.

3. Intérprete de Língua de Sinais

Antes de abordarmos sobre as dificuldades encontradas por este profissional frente ao surdo com dificuldades lingüísticas em língua de sinais, comentários serão feitos acerca deste profissional em relação ao seu papel em sala de aula e suas atribuições. Ressalta-se que as observações demonstradas têm como objetivo contribuir de forma crítica, para o avanço na atuação deste profissional, assim como na educação de surdos.

O intérprete de língua de sinais é o profissional que tem domínio da língua de sinais e da língua oral. No nosso país, este profissional domina a língua brasileira de sinais (Libras) e a língua portuguesa, podendo também dominar outras, como inglês, francês, alemão, etc. Tal profissional exerce sua função em diferentes ambientes e situações em que exista uma ação recíproca entre surdos usuários da língua de sinais e ouvintes que não sinalizam. Assim sendo, ele deve lembrar-se da importância da qualificação para a sua atuação, por isso deve conhecer e aplicar as técnicas de interpretação e tradução, ter contato com a comunidade surda para conhecer e manter-se atualizado sobre as gírias, termos próprios utilizados na comunidade, sobre a história e costumes. Além disso, este profissional deve buscar novos conhecimentos na área, cursos de formação e permanente leitura e pesquisa.

O intérprete pode atuar em diversos ambientes, como foi supracitado, e a escola é um dos lugares onde este profissional pode estar. Sua função pode ser exercida em diferentes séries do ensino regular e este realiza suas atividades sozinho, ou seja, não há revezamento com outro profissional intérprete, para que ambos possam ter minutos de descanso, a fim de que não desenvolvam doenças relacionadas ao trabalho, mas este é um assunto que não trataremos agora.

4. Os surdos e os intérpretes de língua de sinais

O número de alunos presentes na sala de aula onde o intérprete atua pode variar. Encontram-se salas com um ou treze alunos surdos e, dentre estes, alguns não demonstram fluência na língua de sinais, ou seja, o intérprete poderá estar em uma sala com alunos com diferentes níveis de proficiência na língua ou sem nenhum conhecimento. Percebe-se que crianças surdas são inclusas nas escolas públicas sem antes ter adquirido a língua de sinais, isto implica em sérios entraves no desenvolvimento do indivíduo, além de acarretar dificuldades no processo interpretativo, no que tange a interpretar para o surdo ou interpretar o surdo.

Neste processo de interpretação de língua de sinais, podem existir problemas no ato de linguagem. Estes podem acontecer por diferentes motivos, mas, muitas vezes, o intérprete é o primeiro a ser julgado como culpado, como aponta Pereira (p.137):

Estes conflitos são maximizados por estereótipos dos quais é difícil nos livrarmos, tais como o velho traduttori, tradittori, que coloca a profissão sob permanente desconfiança, pois se algo vai mal no ato de linguagem, o primeiro a ser apontado como culpado é o intérprete.

Sabe-se que alguns profissionais da área atuam sem o devido preparo, sem conhecer e sem fazer uso das técnicas de interpretação e tradução, modelos e estratégias, mas torna-se necessário refletir que surdos com pouca fluência ou nenhuma na sua primeira língua podem causar desvios no ato de linguagem no momento da interpretação. Estas dificuldades encontradas pelo surdo e pelo intérprete às vezes se estendem ao professor, quando este o avalia da mesma forma que o ouvinte, não levando em consideração a singularidade e a dificuldade lingüística sucedida da não alfabetização em língua de sinais.

As produções textuais dos surdos também são questionadas, por estar fora do padrão esperado, mas como adquirir uma segunda língua efetiva se a aquisição desta depende da primeira? Em relação a este questionamento, Silva (2001, p.47) comenta da seguinte forma: “(...) nota-se que não se podem separar as dificuldades que o surdo apresenta com a escrita sem estar atento ao que aconteceu com o processo de aquisição da língua (gem) de que ele faz uso e o que ocorreu com o processo da alfabetização.”

Silva (2001, p.46) reitera sobre essa questão:

Os problemas dos surdos com a aquisição da escrita estão mais relacionados aquisição e ao desenvolvimento de uma língua efetiva que lhes permita uma identidade sociocultural, ou seja, ‘estar insertos no contexto social’; só assim poderão entender as diferenças existentes entre sua própria língua e as outras.

Assim, os surdos, durante a sua permanência na escola, tornam-se sujeitos atrasados em relação ao nível da série, devido ao fator repetência, ou são aprovados para a série seguinte sem perceber, por exemplo, a função social da escrita, sem saber construir posicionamentos que devem ser manifestados na sua primeira língua.

Olhando atentamente para este cenário, nota-se que muitos aspectos estão envolvidos no processo de educação dos alunos surdos até chegar à atuação do intérprete de língua de sinais.

A aquisição em língua de sinais que, geralmente, acontece de maneira atrasada. E a família, que muitas vezes não comparece de forma participativa na educação dos filhos, não percebendo a importância da alfabetização em língua de sinais. Por outro lado, percebe-se que a maioria das famílias, com filhos surdos, pertence ao grupo social menos privilegiado, ou seja, com baixo poder aquisitivo, sendo muitas vezes não alfabetizada. Logo, a baixa escolaridade pode fazer parte da realidade da família que muitas vezes não contesta a educação escolar dos filhos surdos. Ou seja, não ficam atentos a primeira língua, que deve ser adquirida o mais cedo possível e, sem a atenção voltada para o desenvolvimento dos filhos, acabam não levados em consideração todo o processo educativo. Dessa forma, são necessários programas ou projetos que esclareçam e orientem as famílias ouvintes com filhos surdos, sobre a relevância da alfabetização em língua de sinais por surdos fluentes e utentes desta, para uma comunicação dos filhos com os pais e para uma interação significativa dos surdos com o outro e com o mundo, além da sua construção como sujeito.

Outro aspecto mencionado anteriormente é a importância da comunidade surda, pois o que irá suscitar os surdos a participar e se integrar a esta comunidade são as possibilidades comunicativas, a língua de sinais. Isto torna um convívio interessante e confortável.

Ressalta-se aqui o quanto é indispensável que o profissional, seja ele intérprete de língua de sinais ou professor, conheça a história da educação dos surdos e as dificuldades que estão atreladas a esta educação. Os intérpretes devem lembrar que o contato com a comunidade surda e conhecimento sobre a cultura surda é essencial, sendo importante também um perfil de pesquisador, leitor em constante formação.

Em relação aos surdos, estes devem reconhecer o papel fundamental do intérprete, buscando com este profissional uma relação de parceria e interação harmoniosa, lembrando que ele não é a garantia que acessibilidade está se cumprindo, uma vez que existem outros pontos que devem ser considerados, para que a acessibilidade realmente aconteça. Faze-se referência ao que foi exposto citando Stumpf (apud PEREIRA, ano, p.151): “Com a língua de sinais os surdos podem, através do intérprete, compreender e ser compreendidos, e os ouvintes são colocados no mesmo nível, precisam também do intérprete ou de aprender uma língua que não é a sua língua natural.”

Ainda não existem muitas pesquisas e soluções sobre essas dificuldades que o intérprete de língua de sinais vivencia, mas é possível realizar uma reflexão, é necessário que haja uma conscientização de ação mútua por parte dos sujeitos envolvidos no processo tradutório e interpretativo, pois neste ato as responsabilidades não pertencem somente a um indivíduo, é preciso lembrar que o êxito ou não neste processo de interação pertence a todos os interlocutores envolvidos: surdos, intérpretes de língua de sinais e ouvintes.

Bibliografia

GUARINELLO, Ana Cristina. O papel do outro na escrita de sujeitos surdos. São Paulo: Plexus, 2007.

PEREIRA, Maria Cristina Pires. Interpretação Interlingüe: as especificidades da interpretação de língua de sinais. Cadernos de Tradução, vol. 1, nº 21, p.135-156, 2008.

PERLIN, Gladis Teresinha. O lugar da Cultura Surda. In: THOMA, Adriana da Silva; LOPES, Maria Corcini. (orgs.). A invenção da surdez: cultura, alteridade, identidades e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, p. 73-82, 2004.

QUADROS, Ronice Müller. Educação de Surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artemed, 1997.

SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

SILVA, Marília da Piedade Marinho. A construção de sentidos na escrita o aluno surdo. São Paulo: Plexus editora, 2001.

SKLIAR, Carlos. Os Estudos Surdos em Educação: problematizando a normalidade. In: SKLIAR, Carlos (org.). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, p.7-32, 2005.

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