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Desafios no processo de letramento de alunos surdos
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Publicado em 2020
Revista (Con)Textos Linguísticos, Vitória, v. 14, n. 27, p. 307-319
Sílvia Andreis Witkoski
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Resumo

A legislação brasileira, a partir do Decreto nº 5.626/2005, estabeleceu o direito do aluno surdo à educação bilíngue, na qual a Língua de Sinais constitui-se a primeira língua e a Língua Portuguesa a segunda, na modalidade escrita. Diante desta prerrogativa, alerta-se para a necessidade de formação docente para atuar junto a esta nova realidade, pois não é viável perspectivar que apenas por meio da disciplina de Libras, que passou a ser incluída nas grades curriculares dos cursos de formação de professores, por determinação do decreto supracitado, seja suficiente para tal. Isto porque as singularidades linguísticas deste alunado são distintas dos ouvintes, já que o processo de letramento destes não se dá pela lógica fonocêntrica, mas ocorre a partir da visualidade, ou seja, pela apreensão da sua representação gráfica, por meio de processos de percepção e memória. Diante do referido, o letramento para o aluno surdo precisa ser perspectivado como segunda língua, de modo a estabelecer permanentemente estudos comparativos entre a Libras e a Língua Portuguesa, a fim de desenvolver a consciência metalinguística, o que aponta para a complexidade dos desafios de formação docente para atuar junto a estes, em especial em situação de inclusão.

O Decreto nº 5.626/2005, além de regulamentar a Lei nº 10.436/2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), na qual foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão de pessoas surdas no Brasil, também estabeleceu inúmeras prerrogativas em relação à educação destas, como o direito a uma educação bilíngue, em que a Língua de Sinais (LS) constitui-se a primeira língua (L1); e a Língua Portuguesa (LP) a segunda (L2), na modalidade escrita.

Conforme este decreto, as crianças surdas podem frequentar escolas bilíngues ou comuns da rede regular de ensino. Nas primeiras, o professor deverá ser bilíngue, enquanto nas segundas, este precisa estar ciente da singularidade linguística destes alunos, além de prever a presença de tradutores e intérpretes da Libras em sala de aula. Ainda de acordo com esta legislação, para que a formação docente possa atuar junto a este alunado, no capítulo II, art. 3º, é estabelecida a obrigatoriedade da inclusão da Libras como disciplina curricular obrigatória em todos os cursos de formação de professores, tanto em nível médio como superior (BRASIL, 2005).

Ao considera-se que as crianças surdas apresentam singularidades linguísticas distintas das ouvintes, em que a L1, a língua natural, é a Libras, e a LP é a L2, tem-se um primeiro indício do quão complexo se constitui o processo de mediação do letramento, em especial, no sistema inclusivo.

Neste sentido, ressalta-se que as aulas em escolas regulares são ministradas por meio da língua oral e o ensino da LP segue a lógica fonocêntrica. Contudo, observa-se que o aluno surdo, obviamente, pela própria surdez não tem acesso natural à LP, ou seja, conta apenas com a tradução na Libras (quando o seu direito ao intérprete é respeitado), que se constitui de modalidade diferente, isto é, visual-espacial.

Nesta perspectiva, reitera-se que o processo de letramento dos surdos dá-se pela visualidade – via percepção e memória visual. Para este alunado, no caso de surdez pré-linguística profunda, tendo em vista que o som se constitui como um fenômeno abstrato, a aprendizagem da língua escrita ocorre por meio da apreensão da representação gráfica desta. Conforme Fernandes (2006) aponta, as palavras são processadas como um todo, sendo reconhecidas ortograficamente e ligadas a uma significação. A partir deste processo cognitivo conseguem aprender as estruturas linguísticas sem conhecer o som respectivo.

Como agravante, entende-se persistir uma lacuna com relação à questão da formação dos docentes diante desta nova realidade, já que na legislação não está claro de que forma esta será promovida significativamente. Neste sentido, observa-se que apenas a inserção da disciplina da Libras nas grades curriculares dos diferentes cursos de formação de professores não promove tal formação; já que essa formação tem como foco principal o ensino desta língua, não sendo, portanto, plausível supor que ainda viabilize a compreensão em profundidade dos processos diferenciados de aprendizagem do aluno surdo, contemplando as especificidades de cada área dos diferentes cursos de formação na qual está inserido.
Diante deste cenário, entende-se ser fulcral discutir os desafios no processo de letramentos de alunos surdos. Neste artigo, portanto, problematizam-se as singularidades linguísticas para esses alunos, desnudando, assim, a complexidade dos processos diferenciados de letramento destes e de formação docente para atuar junto a eles.

Libras como L1: implicações linguísticas

A linguagem como mediadora das interações é fundamental para a relação humana, pois é por meio dela que são estabelecidas as relações dos sujeitos entre si e do indivíduo consigo mesmo e com a cultura. Deste modo, é por seu intermédio que ocorre o processo de significação das relações e o acesso ao saber, aos valores e às normas de conduta (VIGOTSKY, 1989).

Neste sentido, a importância de um ambiente comum linguístico para o desenvolvimento da criança é crucial. Porém, a maioria das crianças surdas não usufrui do mesmo privilégio. Em média, 95% dessas crianças nascem em famílias ouvintes (falantes de uma língua oral), contudo, em decorrência da surdez, não têm acesso natural a esta.

Diante deste cenário, o ideal é que a partir do momento em que é diagnosticada a surdez, seja ofertado ao filho o contato com usuários da LS, a fim de que ele possa aprendê-la naturalmente, tendo, desta forma, acesso em plenitude a esta língua, visto que não há impeditivo sensorial para tal. Paralelamente, o desejável é que a família se empenhe também em aprendê-la, com o objetivo de se criar um ambiente linguístico comum entre ela e o filho surdo.

Entretanto, constitui-se relevante ressaltar que, a maior parte das famílias não trilha este caminho, optando pela normalização da criança surda por meio dos processos corretivos da medicalização 2 da surdez. Assim, optam, majoritariamente, de forma exclusiva pelo uso dos aparatos tecnológicos da surdez, como aparelhos auditivos e, mais recentemente, implantes cocleares 3, além de submetê-los a um intenso tratamento fonoaudiológico de terapia da fala e leitura labial, a fim de desenvolverem oralidade.

Nesta perspectiva, faz-se relevante mencionar que este investimento no processo de invisibilização da surdez é resultante de uma falta de informações sobre o papel fulcral da LS para o desenvolvimento da criança surda. Contaminados pelos preconceitos que historicamente ainda persistem em relação a esta e seus usuários, temerosos quanto ao futuro de seus filhos, num processo de negação, os pais acabam optando por privá-los da Libras e, consequentemente, de uma língua plena (ANDREIS-WITKOSKI, 2017). Vale observar que por intermédio da oralização, em um processo longo, exaustivo e demorado, estes não conseguem adquirir uma “boa linguagem oral” (SOUZA, 1998, p. 9).

Além disso, a falta de acesso em tenra idade à LS incorre no fato de que, posteriormente quando esta criança chegar à escola, já com 5 e 6 anos, a grande maioria se constitui como órfão de uma língua, sendo este um dos fatores que repercutem no atraso da aquisição da linguagem escrita, já que para o desenvolvimento dela se faz imprescindível que a criança tenha uma língua estruturante do pensamento, que no caso da surda é a LS (HONORA, 2014).

Faz-se relevante mencionar que a lacuna de uma língua plena implica em enormes prejuízos cognitivos e afetivos para o desenvolvimento da criança surda. Assim, há a ausência da possibilidade de compartilhamento das relações interpessoais – a qual é privada, pois não tem acesso às formas de linguagem que utilizam de recursos da audição, bem como o desenvolvimento que decorre destas trocas realizadas cotidianamente pelas crianças ouvintes nos contextos familiares e sociais. Em decorrência também deste fator, é usual que estas ao chegarem à escola apresentem uma enorme restrição de informações que comparativamente às ouvintes da mesma idade possuem. Neste sentido, faz-se essencial destacar a importância das informações prévias no processo de construção de novos conhecimentos.

A importância também das interações sociais para a constituição do leitor é outro aspecto relevante a ser considerado, visto que repercutem no processo de letramento. A narração de histórias realizada pelos familiares constitui-se em uma forma de se valorizar e incentivar a leitura, contribuindo para a constituição da criança como leitora, pois, é a partir dessas práticas de mediação cultural que, também se expressa o afeto. Conforme Grotta (2000), a qualidade afetiva das interações com a escrita, por meio da mediação da leitura, é que se estimula a prática da leitura, ou seja, desperta o prazer inicial desta apreciação.

Diante desta questão, vale ressaltar que estas interações geralmente não ocorrem ao filho surdo, tendo em vista que este não tem acesso natural à língua oral. E ainda que esse filho esteja passando por intenso processo de oralização, a aprendizagem de fragmentos desta não possibilita que sejam realizadas trocas com qualidade. Assim, apenas em um ambiente bilíngue, com os familiares mediando as relações via LS (L1), é que se pode promover um processo similar ao estabelecido com os ouvintes que, obviamente, já possuem acesso ao universo simbólico cultural. Neste sentido, a contação de histórias em Libras seria o ideal a fim de aproximá-lo desse universo, possibilitando o acesso ao acervo literário, assim como conduzi-lo aos benefícios correlatos a esta prática e, consequentemente, ao processo de letramento.

Sobre esta aproximação da criança surda à escrita, por meio da literatura, destaca-se que a importância da narração em LS envolve os artefatos culturais da cultura surda. Desta forma, não se trata apenas de traduzir uma história, mas de utilizar as expressões próprias da comunidade surda na contação de histórias, isto é, como cada personagem pode ser identificado com um nome visual 4. Vale destacar, que a partir desta prática promove-se a esta criança surda “a leitura da imagem poética. [...] O prazer de ler as palavras sinalizadas acompanhadas das expressões faciais e corporais e o enlevo da leitura da imagem” (MORAIS, 2012, p. 91) por meio de sua língua natural.

Língua Portuguesa como L2 e o processo letramento do aluno surdo

É fundamental que se considere uma característica fulcral dos sujeitos surdos para perspectivar o processo de letramento destes: são indivíduos que aprendem o mundo por meio de experiências visuais (QUADROS, 2004). Com o intuito de compreender o processo, transcreve-se o depoimento da surda Witt (2013, p. 55):

Meus olhos são minha vida, são meu canal primordial, mais intenso, mais completo, mais arguto com a realidade, sendo que a percepção é maior, por exemplo, se alguém me pergunta como ocorreu um fato, explicarei o que vi, e não ouvi, se é feita esta mesma pergunta para o ouvinte, ele declarará pelo contrário: mais do que ouviu do que viu.

Diante desta singularidade, ressalta-se a importância do aspecto visual da leitura-escrita (GESUELI, 2004) para os surdos, tendo em vista que, por não acessar a LP na sua modalidade oral, não possuem uma consciência fonológica pelo som (RIBEIRO, 2013). Deste modo, o processo de letramento de surdos difere radicalmente dos ouvintes, pois ocorre por meio dos aspectos visuais e não pela lógica fonocêntrica, tal como com os alunos que ouvem. Assim, para o aluno surdo:

[...] a situação em que se encontra possui características especiais: o português é para eles uma segunda língua, pois a língua e sinais é a sua primeira língua, só que o processo não é de aquisição natural por meio da construção de diálogos espontâneos, mas o de aprendizagem formal na escola. O modo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa será, então, o português por escrito, ou seja, a compreensão e produção escritas, considerando-se os efeitos das modalidades e o acesso a elas pelos surdos (BRASIL, 2004, p. 115).

Nesta perspectiva, reitera-se que o processo de letramento dos surdos dá-se por meio da visualidade: via percepção e memória visual. Para este alunado, no caso de surdez pré-linguística profunda, o som se constitui como um fenômeno abstrato e a aprendizagem da língua escrita ocorre pela apreensão da representação gráfica desta. Conforme Fernandes (2006), as palavras são processadas como um todo, sendo reconhecidas ortograficamente e ligadas a uma significação. A partir deste processo cognitivo, conseguem aprender as estruturas linguísticas sem conhecer o som respectivo. Tal processo diferenciado implica no fato de que:

A maioria dos surdos olham as palavras e memorizam as suas letras. Conseguem grande parte das vezes, memorizar todas as letras das palavras. Por vezes, entretanto, não memorizam a ordem exata das letras da palavra. Daí trocam-nas. É bastante comum esta troca. [...] À medida que a palavra se torna mais familiar [...] torna-se mais fácil memorizar a ordem das letras dessa palavra (NASCIMENTO, 2010, p. 41).

Ao considera-se a singularidade do processo referido, faz-se relevante ressaltar que as semelhanças visuais podem levar a confusão de leitura. Neste sentido, exemplifica-se com o equívoco de um aluno surdo que, ao ver no texto a palavra “santo”, a leu como “santos”, identificando-a como o nome do time de futebol que torcia. Esta confusão entre as palavras, decorrente do fato de serem graficamente semelhantes, apesar de no texto em questão ter ficado sem sentido, nem por isso foi questionada na leitura que teceu (ANDREIS-WITKOSKI, 2011).

Situações como a relatada, usuais entre este alunado, desnudam o quanto os processos de letramento mediados têm sido negligenciados, apontando para o fato de que a língua escrita tem sido ensinada de forma mecânica, como “ensinam-se as crianças a desenhar letras e a construir palavras com elas, mas não se lhes ensinam a linguagem escrita” (VIGOTSKI, 1984, p. 119). Deste modo, formam-se “copistas e decodificadores” (SOUZA, 1998, p. 150) e não sujeitos letrados; na medida em que pressupõe-se serem capazes de estabelecer uma “relação entre o que lê e compreende, acionando os seus conhecimentos prévios para produzir significado para o objeto que leu” (SIMIONATO; KLEIN, 2015, p. 145).

Ressalta-se que o letramento pressupõe “a ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita de um grupo social ou um indivíduo” (SIMIONATO; KLEIN, 2015, p. 145). Contudo, o ensino aos surdos tem sido voltado apenas para o estudo de itens lexicais, “de palavras, pensando a linguagem como um aglomerado de vocábulos” (BOTELHO, 2010, p. 52), sequer relacionadas a um tema significativo. Assim, desconsidera-se a relevância de que para se constituírem como leitores é fundamental que seja apresentado uma pluralidade de gêneros textuais, e a partir do estudo de blocos de sentido, sejam alertadas as semelhanças visuais entre palavras, que podem gerar confusão na interpretação dos significados, para que o vocabulário seja perspectivado por meio da associação semântica (NASCIMENTO, 2010).

Diante do referido, enfatiza-se o fato de que o processo de letramento dos surdos precisa partir da premissa de que para os surdos a L1 é a LS, e a LP é a L2, o que implica que a Língua Portuguesa seja ensinada como metodologia de segunda língua. Desta forma, assim como para os ouvintes no ensino de uma nova língua se faz necessário considerar o conhecimento prévio de sua primeira língua, o mesmo ocorre em relação aos surdos. Assim, o processo de letramento do surdo precisa ser vivenciado, primeiramente, na Libras e que, a partir dela, aprenda a LP. Deste modo,

Visando o uso da Língua Portuguesa, os alunos surdos devem ser expostos tanto a leitura como a produção de diferentes gêneros e tipos textuais. Estas práticas, no entanto, devem ser vivenciadas primeiramente na Língua Brasileira de Sinais, a sua primeira língua (SÃO PAULO, 2008, p. 16).

Nesta perspectiva, reitera-se que toda a mediação textual precisa ser feita em LS, pois não se trata apenas de traduzir o texto escrito da LP para a Libras, uma vez que as duas línguas não possuem uma correspondência isomórfica entre sinais e palavras. Ressalta-se também que as diferenças entre ambas não podem ser reduzidas em relação à produção e percepção das línguas, restringindo-as ao fato de a LP ser oral-auditiva e a LS visual-espacial. As divergências entre elas ultrapassam a questão da modalidade, de modo que a estruturação da LP difere da LS.

Na Libras, os sinais dos verbos permanecem iguais, ou seja, não sofrem flexão de tempo. A marcação do tempo realiza-se por meio da introdução de um sinal auxiliar de advérbio que acompanha o verbo. Deste modo, o verbo AMAR, por exemplo, que na Língua Portuguesa é flexionado para marcar o tempo, na Libras permanece inalterado. É o advérbio, associado a este que delimita o tempo: EU AMAR AGORA, EU AMAR PASSADO, EU AMAR FUTURO, determinando tempo presente, passado ou futuro, respectivamente (ANDREIS-WITKOSKI, 2015, p. 164).

As diferenças entre uma e outra indubitavelmente precisam ser comtempladas no processo de letramento do aluno surdo. Neste sentido, quando o aluno surdo é usuário da LP como segunda língua, conforme Karnopp (2004), faz-se imprescindível que as práticas de leitura e escrita sejam mediadas por parte de um professor fluente em LS, que possa permanentemente tecer comparações entre ambas, ou seja, que estabeleça as relações e as diferenciações entre os dois sistemas linguísticos.

A importância da tematização das línguas também é explicitada por Quadros e Schmiedt (2006), ao afirmarem que:

Falar sobre os processos de interações comunicativas, sobre a língua de sinais e sobre a língua portuguesa escrita são formas de desenvolver a conscientização do valor das línguas e suas respectivas complexidades. Este exercício dará subsídios para o processo de aquisição da leitura e escrita em sinais, bem como para o desenvolvimento da leitura e escrita do português como segunda língua (QUADROS; SCHMIEDT, 2006, p. 31).

A importância do processo de letramento dos surdos ser mediado a partir de estudos comparativos entre a LS e a língua oral do país, na modalidade escrita, constitui-se inclusive no pilar do Modelo Bilíngue Sueco, uma referência de qualidade na área de educação de surdos, que trabalha com uma metodologia contrastiva entre ambas.; o que, sem dúvida, abre caminho para o desenvolvimento da consciência metalinguística (SVARTHOLM, 1999). Conforme esta metodologia, a partir de uma postura reflexiva entre as línguas em processo, o professor permanentemente pontua: “isto é língua de sinais; isto é sueco” (DAVIES, 1991 apud GÓES, 2002, p. 58).

Diante do discutido, vê-se o quão complexo se configura o processo de letramento do aluno surdo, em especial em situação de inclusão. Isto porque, é preciso considerar que nas escolas regulares o ensino da LP é mediado por esta na modalidade oral e seguindo a lógica fonocêntrica. O acesso do aluno surdo, nesse contexto educacional aos processos de letramento, dá-se, no máximo, por meio de uma tradução realizada pelo intérprete da Libras, quando presente. Desta forma, nesse cenário, este alunado é forçado a passar pelos mesmos processos de letramento que o ouvinte, desconsiderando que suas singularidades são diferentes dos colegas que ouvem, logo, suas necessidades também.

Neste sentido, o que se observa é que ainda que o professor tenha concluído a disciplina de Libras durante a graduação, isso não o torna fluente na língua, assim como não proporciona um conhecimento profundo das singularidades linguísticas dos alunos surdos e das estratégias de mediação que deveriam pautar sua atuação junto a eles. Portanto, nota-se a necessidade urgente de problematizar os processos de formação docente, ou seja, é preciso dimensionar adequadamente a demanda de surdos incluídos em escolas regulares, bem como o próprio conceito de inclusão. Isto porque ainda parece vigorar o que Farias (2006) aponta como o mito da inclusão:

Muitos desconhecem que os surdos não partilham da “visão ouvinte do mundo” e acreditam que a simples imersão deles em ambientes de oralidade é suficiente para que adquiram a língua oral. Trata-se do mito da imersão. A pura imersão, entretanto, não garante a aquisição da LP por surdos (FARIAS, 2006, p. 271).

Ainda, sobre a questão da inclusão de alunos surdos, também é importante pontuar que se constitui como inviável que um mesmo professor trabalhe, concomitantemente (ao mesmo tempo e espaço), dois processos distintos de letramento, para que assim se respeite as singularidades dos alunos ouvintes presentes em sala de aula, bem como as dos alunos surdos.

Desta feita, entende-se que a situação de inclusão tem subtraído seu direito de ser contemplado em seu processo diferenciado de letramento, isto é, o uso de uma metodologia contrastiva bilíngue. Inclusive esta é a base de sustentação dos argumentos utilizados pela maioria dos surdos para a preferência por escolas bilíngues de surdos. Assim, um surdo defende que por meio da “metáfora das mãos” a criança surda:

Precisa escola bilíngue porque Libras e Português junto, igual como uma mão Libras, outra Português, e as duas andam juntas, então eu consigo aprender, a desenvolver (ANDREIS-WITKOSKI, 2012 – grifos da autora).

Considerações finais

A criança surda apresenta singularidades linguísticas diferentes da ouvinte, ou seja, para a criança surda a primeira língua é a LS e a segunda a LP; o que implica que o processo de letramento escrito utilize metodologia de segunda língua. Deste modo, faz-se imprescindível que este processo seja perspectivado a partir de vivências primeiramente na Libras, para que se desenvolva a competência discursiva por meio de estudos comparativos entre a LS e a LP, utilizando uma metodologia contrastiva entre ambas.

Contudo, faz-se relevante observar que o ensino de língua ainda se mantém atrelado às práticas pedagógicas que alimentam a noção de que aprender português é aprender palavras, isto é, itens lexicais (GÓES, 2002). Desta feita, anula-se a premissa de que o estudo do vocabulário precisa ocorrer a partir de suas relações semânticas, já que o seu significado não se dá isoladamente, mas sim de acordo com o contexto situacional.

Os desafios no processo de letramento dos alunos surdos são ampliados em situação de inclusão, à medida que seus processos de aprendizagem são divergentes dos ouvintes. Isto porque, a criança surda ao não ter acesso natural à língua oral, e, assim, por não ouvir, não tem consciência fonológica pelo som (RIBEIRO, 2013). Desta forma, para este aluno a aprendizagem da LP, na modalidade escrita, ocorre a partir da sua visualidade, por meio dos processos de percepção e memória. Contudo, dentro da escola regular, tendo em vista que a maioria dos alunos são ouvintes, o ensino da Língua Portuguesa não apenas é ministrado pela língua oral, mas pela lógica fonocêntrica. Assim, pressupor que, no processo de letramento, apenas a tradução da fala do professor para a LS pelo intérprete da Libras para o aluno surdo será funcional, é desconsiderar absolutamente suas singularidades e necessidades correlatas.

Diante das questões referidas, aponta-se para a urgente necessidade de rever os processos de formação dos docentes para atuarem no ensino de alunos surdos. Neste sentido, observa-se que apenas a inclusão obrigatória da disciplina da Libras nas grades curriculares dos cursos de formação de professores é diminuto para tal finalidade. Isto porque o principal objetivo é o ensino desta língua, não sendo viável pressupor que, em apenas uma disciplina, possa se desenvolver o estudo aprofundado das singularidades linguísticas deste alunado, a compreensão de seus processos diferenciados de letramento, perspectivando estratégias de mediação que as contemple.

Notas

2. Medicalização da surdez constitui-se em uma série de mecanismos pedagógicos corretivos, instaurados “nos princípios do século XX e vigentes até nossos dias [...] de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e pela violência institucional.” (SKLIAR, 2013, p. 7).
3 Implante coclear é um dispositivo eletrônico, colocado cirurgicamente na zona craniana posterior do pavilhão auricular, que tem como função transformar os sons e ruídos captados do ambiente em energia elétrica, desenvolvendo a sensação auditiva no implantado (COELHO; MENDES, 2014).
4 “A comunidade surda não se refere às pessoas pelo nome próprio, mas pelo sinal próprio recebido no “batismo” quando o surdo ingressa na comunidade” (DALCIN, 2006, p. 205). O mesmo processo é adotado na contação de história de modo que cada personagem é “batizado” com um sinal visual que é atribuído pelos surdos e compartilhado entre os mesmos, sendo utilizado no lugar do nome escrito na língua oral.

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